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Romance inédito

 

        Primavera dos mortos

                                                 Jorge Fernando dos Santos

                                   

                                               Quarta Parte

                                      Capítulo 38 - Galeno Valadares

 

DEPOIS DE OUVIR o sacristão, escolhi padre Wenceslau como o próximo da lista. O velho austríaco que nunca se esforçava para ser simpático mandou dizer que não era bandido para entrar numa delegacia de polícia.

Eu poderia mandar prendê-lo por desacato e por não colaborar com as investigações, mas preferi evitar o desgaste. Na manhã seguinte, fui pessoalmente à casa paroquial a fim de ouvi-lo, ainda que informalmente, sem a presença do escrivão.

A empregada atendeu depressa às minhas palmas. Era uma negra gorda de sorriso branco e me lembrou a Irene boa do famoso poema de Manuel Bandeira. Expliquei que desejava falar com o vigário. Ela convidou-me a entrar e foi chamá-lo na igreja, do outro lado da praça.

Enquanto esperava, andei pela casa, observando detalhes que pudessem me ajudar a decifrar a personalidade do excêntrico morador.

Um cheiro de carne cozida vindo da cozinha impregnava o ambiente. Era uma residência confortável para os padrões do lugarejo.

A sala, conjugada com a copa, tinha um conjunto estofado com encerado preto, uma mesinha de centro com tampo de vidro sobre um tapete de pele de onça e um televisor Telefunken de 20 polegadas.

A mesa de fórmica azul, com seis cadeiras, combinava com a cristaleira cheia de garrafas coloridas e copinhos de licor. O único quadro na parede era um retrato desbotado do Papa Pio XII, morto há muitos anos.

Além da entrada, havia um corredor que levava à cozinha, ao banheiro e a dois quartos. Bastou uma rápida olhada para que eu identificasse o aposento do padre. A cama de solteiro era larga e feita em peroba, a exemplo do guarda-roupa.

Havia um crucifixo na parede azul celeste e um criado mudo em cima do qual descansava um rádio Phillips de madeira. Embaixo do basculante, uma escrivaninha com quatro gavetas de um lado e uma cadeira com almofada azul-marinho, na qual me sentei sem nenhuma cerimônia.

O gaveteiro estava trancado. Tirei do bolso do paletó o canivete suíço e tratei de arrombá-lo. As duas gavetas superiores não revelaram nenhuma surpresa, mas na terceira saltou-me aos olhos um passaporte de capa vermelha.

Era um documento oficial do Vaticano com a foto do padre ainda jovem, embaixo da qual se lia o nome de Anton Franz Vseslav, nascido em Baden, Áustria, em 1909.

Dei uma rápida folheada e constatei que só havia o carimbo de entrada no Brasil, datado de 16 de junho de 1945. Desde a sua chegada, o vigário nunca havia saído do País, deduzi. Mas essa não foi a grande descoberta do dia.

Na gaveta inferior, havia alguns antigos exemplares da revista O Cruzeiro com reportagens sobre a guerra e os julgamentos de Nuremberg. Entre elas, encontrei um velho cartão de identidade carimbado com uma águia agarrada à suástica.

O documento era uma credencial da Shutzstaffel, a SS criada por Adolf Hitler em 1925 e ampliada quatro anos depois por Heinrich Himmler, passando de 300 para 50 mil homens. Era a polícia de elite do Partido Nazista e não propriamente do Estado alemão. Funcionava como o esquadrão de segurança do Fürher e cometeu as maiores atrocidades durante a guerra, sendo diretamente responsável pelos campos de extermínio onde milhões de judeus, ciganos e outros inimigos do nazismo foram assassinados.

A foto era do jovem padre usando um quepe no qual se destacavam a caveira e a águia nazista dessa vez identificado como capitão Franz Walzer Lichberg.

Como o senhor se atreve? A voz era de padre Wenceslau, falando às minhas costas. Fiquei de pé e me voltei para ele. As faces vermelhas e a testa suada do velho ariano denunciavam o seu nervosismo.

Eu é que pergunto, o que significa isso?, exclamei, mostrando-lhe o cartão amarelado pelo tempo.

Isso é uma invasão de domicílio, um abuso de autorridade, protestou o velho, carregando no sotaque devido ao nervosismo.

Nesse instante, compreendi o que parecia ser óbvio. A exemplo de outros criminosos de guerra, o capitão da SS havia conseguido um salvo-conduto para escapar dos tribunais aliados e veio parar no Brasil, disfarçado de padre: lobo em pele de cordeiro sob as bênçãos da Santa Madre Igreja, ruminei.

O senhor não ter o dirreito de entrar no meu casa e revirar os gavetas, protestou o falso vigário.

Calma, herr Lichberg, exclamei sem alterar a voz. Não precisa gritar que eu não sou surdo e, além do mais, quem deve explicações aqui é o senhor...

Ele tentou arrancar os documentos da minha mão e eu o empurrei com violência, fazendo-o se sentar na cama.

O velho de batina surrada levou as mãos ao rosto vermelho num gesto tresloucado. Puxei a cadeira para perto da cama e me sentei diante dele.

Não vim aqui para prendê-lo. Portanto, não há motivos para entrar em pânico, avisei.

Então, o que o senhor deseja?, disse ele, um pouco mais calmo.

Preciso interrogá-lo sobre a morte de Gláucia Maria, respondi.

Wie bitte? O homem suspirou de ansiedade. Os olhos azuis brilharam como bolas de gude e por um momento pensei que fossem saltar das órbitas.

Quero saber a verdade sobre o caso, ressaltei, mas ele negou veementemente saber de alguma coisa.

Ich verstehe nich, balbuciou, fazendo cara de inocente.

 

Perdi a paciência e bati a palma da mão no tampo da mesa, produzindo um forte estalo.

A verdade, capitão, quero toda a verdade, gritei, atraindo para o quarto a empregada bonachona. Quando a porta se abriu, ambos nos voltamos para ela, que perguntou o que estava acontecendo.

O velho se levantou, disse que estava tudo bem e ordenou a ela que continuasse a preparar o almoço. Encaminhou-a para fora do quarto e trancou a porta para que pudéssemos continuar a conversa sem interrupções.

Disse que não poderia revelar segredos de confessionário.

Eu aceitaria a desculpa se ela viesse de um sacerdote, retruquei. Como oficial da SS, o senhor com certeza não jurou guardar segredos e sim arrancá-los a todo custo dos seus interrogados.

Mein name ist Anton Franz Vseslav. Ich bin Pater, insistiu o farsante no próprio idioma.

Já chega!, gritei mais uma vez e, na réstia de luz sob a porta, pude ver a sombra da empregada que provavelmente tentava ouvir a discussão. Se continuar mentindo, serei forçado a conduzi-lo à delegacia, ameacei.

Por um instante, o nazista se calou. Sentou-se na cama nitidamente derrotado. Em seguida, admitiu a verdadeira identidade e explicou que seu trabalho durante a guerra havia sido realizado nas frentes de batalha.

Minha missão era evitar que jovens oficiais desertassem ou cometessem alta-traição, acrescentou em tom de desabafo.

Eu não estava interessado em ouvir seus pecados e menos ainda em perdoá-los, até porque era ele quem se habituara a exercer o papel de vigário.

Quero apenas que me conte o que sabe sobre as mortes de Gláucia Maria e Leôncio Duarte, insisti. Caso contrário, serei forçado a denunciá-lo por falsidade ideológica e a entrar em contato com a embaixada de Israel. Os israelenses, com certeza, vão gostar de saber do seu paradeiro.

O homem arregalou os olhos e passou as mãos na cabeça, sentindo-se moralmente derrotado. Para ele era o fim do mundo. Imaginei que tudo o que ele menos queria na vida havia acabado de acontecer. Depois de tantos anos escondido sob a batina de um falso padre, ele havia sido desmascarado pelo homem que mais hostilizava em Morro do Calvário.

Toda aquela empáfia ariana havia desaparecido de repente. Padre Wenceslau, ou melhor, o capitão Franz Walzer Lichberg inspirou-me um pouco de dó. Há tanto tempo na polícia, eu já havia lidado com quase todo tipo de gente. Investiguei crimes dos mais variados, mas nunca pensei topar pela frente com a figura abjeta de um carrasco de guerra.

  

O curioso, no entanto, é que esse detalhe me escapou naquele momento. Eu estava tão obcecado em desvendar os crimes ocorridos há três anos naquele lugarejo que seria capaz de negociar com o diabo em pessoa para elucidar o caso.

Os crimes do capitão Lichberg haviam sido cometidos há muitos anos, sob as ordens de um governo dominado pelo ódio e pela loucura. Ao deparar com a expressão de derrota naquele rosto vermelho e enrugado, senti vergonha de mim mesmo. Mas essa sensação durou pouco, um átimo talvez. Naquele momento, minha determinação era maior que qualquer outra coisa. A chantagem que fiz foi em nome da lei e da certeza de que aquele velho era a chave do grande mistério a ser desvendado.

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