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Primavera dos mortos
Jorge Fernando dos Santos
Parte 1
Capítulo 4 - Ascânio Benevides
FECHADA EM luto desde as mortes do marido e da irmã, Siá Zizinha vivia de lembranças que não chegavam a ser saudades, compreende?
Naquele sábado de primavera, ao ver a caveira branca sobre o monturo de folhas à sombra do frondoso jatobá, a prima, cujo rosto guardava vestígios de antiga beleza, na certa pressentiu que seus dias de sossego sobre a terra estariam contados.
Ela tirou da cama o filho Hilário, um rapaz de quase 30 anos com a idade mental de uma criança, compreende? Ordenou a ele que fosse à minha casa avisar-me sobre a estranha aparição.
Também mandou chamar na casa paroquial o padre Wenceslau, nosso amigo, confessor e conselheiro nas horas mais graves. Meia hora depois, servia-nos café adoçado com rapadura em derredor do fogão a lenha.
O temporal arrasou o cemitério, comuniquei, segurando a caneca esmaltada com as duas mãos na vã tentativa de aquecê-las.
Disse também que nos meus 60 anos quase completos, metade desse tempo dedicado à vida pública, jamais havia visto coisa igual, compreende? O muro caiu e várias ossadas foram desenterradas pela força das águas.
Lá fora, cumprindo minhas ordens, seu Vicente, funcionário municipal encarregado do cemitério, um negro alto e magro de rosto bexiguento e dentes muito brancos, colocava a caveira num saco de aniagem.
O achado seria recolhido ao porta-malas do velho Buick chapa branca da prefeitura que ele mesmo havia estacionado em frente da casa de Zizinha. Depois seria levada de volta ao túmulo de onde havia saído, compreende?
Sinal dos tempos, resmungou o vigário, mirando a cena pela janela enquanto a prima lhe servia um pedaço de broa de milho.
Era um austríaco com tanto tempo de Brasil que o sotaque só se manifestava nos momentos de aflição e nervosismo, compreende? A batina preta estava tão surrada que havia adquirido aquela cor foveira que dizem ser de burro fugido.
A tempestade só não foi mais forte pela graça de Santa Bárbara, disse a prima. Essa noite eu queimei palma benta e rezei o terço com o Hilário.
Foi sim, assentiu o rapaz sentado no rabo do fogão com as mãos sobre os joelhos, ensaiando um sorriso débil que não chegou a concluir.
Raspei a garganta e olhei meu nariz refletido no café que se esfumaçava dentro da caneca. Mesmo sendo sábado, mandaria o secretário de obras convocar os servidores para o serviço extraordinário. Era preciso reparar os danos causados pela chuva e recolocar os mortos de volta nas covas o quanto antes, compreende?
A missa das oito horas será por intenção das almas, anunciou padre Wenceslau, enxugando o suor do rosto com um lenço encardido.
Só espero que os restos mortais de Leôncio e Gláucia Maria não tenham sido arrancados da terra pela chuva, disse Siá Zizinha. Já basta terem sido arrastados pelo Ribeirão das Mortes, suspirou com um rabo de olho no vigário.
Ele, por sua vez, não disse nada. Apenas arqueou a sobrancelha esquerda, desenhando uma interrogação sobre o olho, cuja pálpebra superior era ligeiramente caída. Acho que o assunto não era agradável para nenhum de nós, compreende?
Ainda não fizemos o levantamento dos túmulos revirados e de quantos esqueletos foram levados pela enxurrada, informei. Mas vou cuidar disso pessoalmente, logo depois da missa.
Em seguida, a prima beijou a mão do padre em sinal de respeito, como ainda era costume naquele tempo. Hilário sorriu mecanicamente, com o olhar perdido como se sua mente estivesse em outro mundo.
Dali a pouco, o vigário e eu sentávamos no banco traseiro do Buick. Seu Vicente assumiu o volante, girou a chave e deu a partida, indo nos rumos da prefeitura.
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