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Literatura e cinema - Vol. 4
Sumário

I. Prefácio – Fábio Lucas   

II. Apresentação – Marcos Silva

III. Introdução – Sergio Rizzo

IV. Princípios – José Domingos de Brito: Dos mistérios da criação literária

 

 

Parte I

Depoimentos

 

Adolfo Bioy Casares - Agustina Bessa-Luís - Alain Robbe-Grillet - Alan Pauls - Alberto Moravia - Alexei Bueno - Amos Oz - Anthony Burgess - Antonio Olinto - Antonio Skármeta - Antonio Tabucchi - Augusto Roa Bastos - Autran Dourado -Bernardo Élis - Blaise Cendrars - Cabrera Infante - Cacá Diegues - Dean Koontz - Érico Verissimo - Fernando Monteiro - Frederick Forsyth -Gabriel Garcia Márquez – Georges Simenon - Glauber Rocha - Gíorgio Bassani - Gore Vidal - Graham Greene - Guillermo Arríaga - Harold Robbins - Hector Babenco - Henry Miller - Humberto Solás - Jean Claude-Carriere  - João Gilberto Noll  John Bart - John Cheever - John Le Carré - John Updike - Jorge Amado - Jorge Fons - Jorge Luis Borges  José Saramago - Juan José Saer - Julio Cortázar - Kazuo Ishiguro - Manuel Puig - Manuel Vázquez Montalbán - Marcelo Maroldi - Marguerite Duras - Mario Vargas Llosa - Moacyr Scliar - Monteiro Lobato  Nadine Gordimer - Nelson Pereira dos Santos - Nelson Rodrigues - Norman Mailer - Paul Auster - Pedro Almodóvar - Ricardo Piglia - Roberto Santos - Roddy Doyle - Ruy Guerra - Saul Bellow - Sérgio Sant'Anna  Sidney Sheldon - Susan Sontag - Suso Cecchi d'Amico - Sylvio Back - T. Coraghessan Boyle - Tom Wolfe- Tomás Gutiérrez Alea - Tonino Guerra - Truman Capote - Umberto Eco - Valêncio Xavier - Will Self  William Faulkner - William Styron

 

Parte II

Bibliografia resumida

 

CÂNDIDO, João - ORTIZ, Anna Maria Balogh - JOHNSON, Randal - AVELLAR, José Carlos - ISAMEL, J.C. - GIMFERRER, Pere - POOLE, Steven - GUILHERME, Augusto   DOCTOROV, E.L. - CARDOSO, Luiz Miguel Oliveira - ANDRADE, João Batista de FURTADO, Jorge - SANTOS, João Manuel dos - FONSECA, Rubem 

 

 

I. Prefácio

Fábio Lucas

         Ao inteirar-me do novo produto da enciclopédica curiosidade de José Domingos de Brito, colecionador contumaz da sabedoria alheia, resolvi percorrer o sinuoso caminho do parentesco da Literatura com o Cinema, na medida  em que ambas as atividades artísticas visam a dominar a atenção do leitor/espectador através do andamento de uma narrativa. O mito de Sheherazade se redescobre. A arte de contar um enredo torna-se a própria razão de viver do narrador. Como ninguém pode sobreviver sem fantasia, o mundo dos negócios logo se apropriou da função de narrar e a massificou.

          Ambas as artes, Cinema e Literatura,tomam os olhos como ponto de entrada  na consciência ativa do observador, mas de modo diferente. A escrita pede leitura, cujas imagens, colhidas na tradução das palavras arranjadas seqüencialmente, projetam-se no campo da mente. O suporte, a folha escrita (ou o visor ou painel do monitor da informática) oferece aos olhos a reversibilidade, pela qual a atenção busca aclarar o entendimento não captado na primeira tentativa.

           O Cinema, entretanto, se dispõe habitualmente num painel mais amplo, assistido por uma platéia de freqüentadores. Traz, portanto, desde o início, o caráter de espetáculo. São imagens fotográficas em movimento. E, pela duração do espetáculo, aparelhou-se para desenvolver-se sem reversibilidade. Transposto, todavia, ao formato de vídeo ou de DVD, permite um acompanhamento individual, doméstico e pessoal, ganhando igualmente a propriedade da releitura da totalidade ou de trechos que escaparam da atenção ou do entendimento momentâneos.

          O Cinema é um gênero cujo suporte formou-se timidamente no século XIX como gravador da imagem visual externa, em movimento, mas cuja propagação e enorme influência cultural tomaram e, de certo modo, definiram o século XX. Foi o arauto do império estadunidense, sua maior expressão e característica.

          Sua história perfaz duas etapas: a do cinema mudo e a do cinema falado e sonoro (1930). A primeira descoberta do processo visual de narrar foi a montagem de séries de quadros em movimento, com a arte de ligar cenas e diálogos, dar-lhes consistência, harmonia e continuidade. Com a descoberta dos neurologistas, de que o lado esquerdo do cérebro é o centro da linguagem, pois abriga a razão, a lógica,  a memória e a associação inteligente de idéias e percepções; por sua vez, no lado direito situam-se a visão, a imaginação e a música, enquanto o cérebro processa constantemente os dois hemisférios a fim de que funcionem em velozes conexões harmoniosas; com tais descobrimentos, portanto, o cineasta Jean-Claude Carrière desenvolveu a noção de que o grande cineasta é aquele capaz de fundir sempre o verbal com o visual (ainda que reconheça que os japoneses, inversamente, armazenam a linguagem no lado direito, juntamente com as imagens e a música. (Cf. A Linguagem secreta do Cinema, Rio, Ed. Nova Fronteira, trad. de Fernando Albagli e Benjamin Albagli, 2006, p. 25).

          A gramática do Cinema foi-se estabelecendo aos poucos. A tentação do visível, do corriqueiro e do banal, entendido esse termo como algo depreciativo em face das tendências da acomodação e do menor esforço, levou o Cinema à indústria, à produção em série, ao chamativo superficial, mecanicamente, transportando os sinais inclusos da ideologia, da publicidade e do consumo de massa. O pragmatismo estadunidense, ao mesmo tempo em que levou o Cinema à glória, às platéias do mundo inteiro, degradou-o à sua forma de mais baixo nível.

          A montagem progrediu e acabou, no seu modo, por influenciar as outras artes. O romance, por exemplo. A adoção da câmera móvel e a proliferação das câmeras multiplicaram as propriedades do olhar e, na Arte, ensinaram a explorar segmentos de beleza eventualmente inobservados na vivência cotidiana.

          Juntamente com os sons e as cores, o cineasta pôde desenvolver com perfeição o artifício do flash-back. E mais: com a utilização de planos, foi capaz de instalar na tela as dimensões subjetivas que afetam o protagonista da ação narrativa. Para culminar, a gramática do Cinema foi capaz de introduzir, entre sons da fala e da música, intervalos de silêncio, intensificadores  da narrativa. O tempo real, no cinema, desapareceu. O episódio filmado do início ao fim perdeu interesse. A linguagem se tornou cada vez mais elíptica, metafórica.

          O escritor, na busca do registro da condição humana, tem diante de si inumeráveis caminhos. Mas somente se sentirá original quando souber tornar todos os elementos de sua temática uma coleção de situações comuns a todos os seres humanos, portanto, universais. E, ao mesmo tempo, sob uma perspectiva exclusiva, única e inalienável. É seu estilo.

          Quando o Cinema conquistou os seus atributos de linguagem singular  dissociada da Literatura e do Teatro, foi também tentado a transpor para a realidade fílmica o complicado jogo de imagens, articulações e tramas consagrados na Literatura e no Teatro.

          No início de sua carreira, o Cinema necessitou urgentemente de argumentos que encantassem o público. A Literatura, no romance, já havia sensibilizado e hipnotizado os leitores mais exigentes. Daí a tentação de percorrer a mesma trajetória narrativa. Como, entretanto, anular o estilo do escritor e viver apenas do encadeamento dos episódios? A transposição dos enredos romanescos para o Cinema tornou-se moda.

          Possuem eles, entretanto, recursos diferenciados para atingir a atenção do leitor. Grandes obras literárias inspiraram, não raro, filmes medíocres. Simultaneamente, filmes  admiráveis procederam de obras literárias de estrutura medíocres

          As duas artes, a literária e a fílmica, acabaram criando os seus lugares-comuns, detestados pela Crítica, ou seja, pela percepção do público mais exigente, formador da opinião. Ambos os veículos constituem apelo aos destinatários da mensagem, sem os quais não logram subsistir.

          Apanhadas pela indústria e pelo mercado, em muitos casos perderam a liberdade de autonomia. Ficou difícil, pelo efeito industrial, manter a mais ousada tentativa de soberania do diretor: o cinema-de-autor.

          Depois de apoiar-se no enredo de epopéias e romances clássicos, a indústria cinematográfica tomou o rumo de criar um especialista em transformar o motivo romanesco em peça-básica para orientação do diretor e dos atores: o roteiro. Texto que realiza uma espécie de lipo-aspiração do texto literário, retirando-lhe as “gorduras” que não podem aparecer na mensagem estritamente visual. Realizado o roteiro e transposto do papel para a película, encerra-se a utilidade do roteiro. Seu destino, quase sempre, é o lixo.

          Vivemos, na Literatura e no Cinema, uma crise do sujeito, esta herança renascentista do antropocentrismo. Míngua, aos poucos, a doutrina do herói,do homem representativo, do empresário empreendedor, sempre a puxar a sua combinação de fatores de produção para a situação exclusiva de monopólio. Emergiu no contexto do século XX o herói da consciência, mais inseguro acerca de suas potencialidades, irônico, cético, contestatário. Anti-herói.

          Também a narrativa fílmica foi perdendo sua unidade. A televisão com os seus recursos eletrônicos de efeito instantâneo, ajudou a desconstruir a unidade narrativa. Passou-se até, sob o impulso da vulgaridade, a influenciar a linguagem visual, através dos vídeoclips, de seqüência  esquizofrênica e barulhenta, afetando, inclusive, o sublinhamento musical.

          Vivemos sob o domínio do visível fácil, graças ao cinema, à TV e aos computadores: exploram-se movimentos simples e baratos, emoções sem ambigüidade, a fim de tornar cristalinos o enredo e, se possível, a mensagem publicitária. Somente a filmografia com intenções artísticas logra aproximar-se das zonas de mistério e ambigüidade. Jean-Luc Godard, por exemplo, empenhou-se em valorizar o supérfluo.

          O Cinema, todavia, não consegue livrar-se do prestígio das Letras. Desde o início buscou inspiração e argumentos nas peças teatrais e nos romances mais conhecidos. Quem não se lembra do desempenho de Lawrence Olivier em  Hamlet (1948),  Prêmio da  Academia de Artes  Cinematográficas dos Estados Unidos da América? Da voz e das declamações de José Ferrer em Cyrano de Bergerac (1950)? De Vivien Leigh em A Streetcar Named Desire, filme extraído da peça de Tennessee Wiliams?

          Jean Cocteau procurou levar o Surrealismo à expressão fílmica em Sang d’um poète (1930). Vladimir Mayakovski estudou e teorizou sobre o cinema-literatura e chegou a produzir filmes. Aliás, no cinema soviético houve a adaptação do romance de Gorki A mãe (Mat, 1926) pelo diretor Vsevolod Pudovkin.

          Na cinematografia universal, poucos diretores terão sentido tanto a atração pelas obras literárias quanto Luchino Visconti, com Ossessione (1942) no início de sua carreira, filme baseado no livro de James Cain The Postman always rings twice e proibido pela censura fascista. Na França houve um movimento film d’art  que tentou acompanhar o Naturalismo no cinema. Capelanni havia levado Les Miserables de Victor Hugo ao cinema (1912).

          No Brasil, a Paulista Film, de Miguel Milai e Antônio Leite, fez uma adaptação de Os Faroleiros de Monteiro Lobato em 1920. Roberto Santos tentou a transposição de A hora e a vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. Valter Lima Júnior tomou como tema O menino de engenho de José Lins do Rego. Anselmo Duarte dirigiu O Pagador de Promessas de Dias Gomes.

          O principal diretor e roteirista a lidar com a ficção brasileira foi Nelson Pereira dos Santos cujo Vidas Secas (1963), baseado no romance de Graciliano Ramos, ganhou três prêmios em Cannes (1964).

          Mais tarde, Nelson Pereira dos Santos iria dirigir Memórias do Cárcere (1983), adaptando a obra de Graciliano Ramos. Da obra de Jorge Amado, realizou Tenda dos Milagres (1975)  a partir do romance do escritor baiano. E ousou levar ao cinema alguns contos de Guimarães Rosa, no filme A terceira margem do rio (1993) baseado em “A terceira margem do rio”, “A menina de lá”, “Os irmãos Dagoberto”, “Fatalidade” e “Seqüência”, narrativas pertencentes a Primeiras estórias de João Guimarães Rosa. Relatos que guardam, em comum, personalidades e condutas ligadas a psicologias exóticas, desviantes do comportamento usual.

          Como diz Jean-Claude Carrière, que aponta a incrível velocidade com que a técnica modifica a linguagem fílmica em curtos períodos e como grande parte das pessoas confundem efeitos especiais com Arte, “o próprio ato de escrever é perigoso, pois carrega consigo um tipo de prestígio venerável que é, com freqüência, sua única justificativa. Está escrito, portanto é verdadeiro; portanto, não farei mais nada por ele. Quando um roteiro é concluído, muitos cineastas o chamam de “A Bíblia”, como se fossem as Sagradas Escrituras. E eu percebo com freqüência, durante os ensaios de uma peça, por exemplo, que se damos oralmente uma fala  para um ator, sem escrevê-la,  ele a trata despreocupadamente  e   muitas vezes com fértil inventividade. Se você  escreve a mesma fala numa folha de papel, ou melhor ainda, a entrega datilografada, o ator a respeita imediatamente. Isto pode até paralisá-lo.” (cf. Jean-Claude Carrière, A linguagem secreta do Cinema, p. 139).

          Também o público tem por  costume efetuar a relação positiva entre o Cinema e a Literatura. Quando os romances começaram a servir de argumento para os filmes, os negativistas decretaram a morte do livro. Diziam: quem iria ler Guerra e Paz de Tolstoi durante meses, se se pode conhecer a estória em poucas horas numa sala de cinema? Mas, com o tempo, verificou-se o contrário: após assistir ao filme, as pessoas  se interessam pelo conhecimento da obra que o inspirou. Quem não se lembra da corrida dos espectadores em busca da tradução de O Doutor Jivago de Pasternack, após levado o filme aos cinemas brasileiros?

          De qualquer modo, Cinema e Literatura compartilham a tarefa de levar a fantasia, o sonho e o encanto da narrativa ao espectador. São dois idiomas diferentes, com suas leis e limitações. Apanhados pela indústria da cultura e levados os seus produtos ao mercado, tendem a coisificá-los e, pior ainda, degenerar a estatura humana e a integridade moral de diretores, atores, roteiristas, autores e leitores. O capitalismo se apropriou da indústria cinematográfica através de inacreditável engrenagem de  publicidade  e de  vendas. O  veículo, que teve o seu  começo como uma espécie de parque de diversões, se transformou, mais do que em entretenimento ou divertido relato de estórias românticas, num poderoso fator de fixação, na consciência coletiva dos povos, da marca ideológica e comercial dos produtores e divulgadores.

          Na Literatura, como no Cinema, é possível , ainda, situar núcleos de resistência à massificação consumista. A arte, com seu valor estético, é atividade de natureza não utilitária, em sua essência. Mesmo quando cai no mercado, recusa a perda de identidade.

 

Fábio Lucas

Professor, Crítico literário e membro das Academias Paulista e Mineira de Letras.

 

II. Apresentação

Marcos Silva

 

Desde que o cinema é cinema, a literatura tem sido um de seus pontos de partida. Os “filmes de arte” franceses do início do século XX procuravam se legitimar como obras sérias e eruditas a partir de textos clássicos e intérpretes teatrais. A relação logo teve mão dupla, quando literatos e dramaturgos começaram a se inspirar no cinema para formar narrativas e poesia, questão presente em diferentes literaturas, inclusive na brasileira – os modernistas são exemplos claros desse argumento. E a relação cinema/literatura continua até hoje, englobando dos clássicos mais antigos à narrativa e à poesia em produção, mais os filmes como tema e fonte de inspiração da linguagem escrita.

 

As diferenças entre textos literários e filmes neles apoiados são marcadas pelas historicidades específicas de cada linguagem: nenhum filme “repete” uma obra literária, nenhuma obra literária “repete” um filme, quer pelas diferenças de linguagem, quer pelo momento próprio de produção e circulação de cada um de seus resultados.

 

Mesmo um diretor muito fiel à matéria literária original (como o Nelson Pereira dos Santos de Vidas secas, em relação ao romance de Graciliano Ramos; ou o Luchino Visconti de Morte em Veneza, diante da novela de Thomas Mann) se vê obrigado a pensar em soluções narrativas e poéticas que digam respeito à imagem em movimento e ao som. No caso de Nelson, a profunda indagação de Graciliano sobre o que é um ser humano, qual a humanidade daqueles seres, foi transmutada na imagem do grupo de retirantes que chega e parte, ao som de um carro de bois, veículo inexistente, em termos visuais, na cena filmada. Luchino mesclou a requintada apresentação de época – arquitetura, cores da pintura Impressionista e Pós-Impressionista, indumentárias – a uma reflexão sobre o conjunto da obra de Thomas Mann, citando personagens e situações de seu romance Doutor Fausto, e evocando o compositor Gustav Mahler (autor de músicas apropriadas para a trilha sonora do filme) no personagem Gustav Von Aschenbach, em termos biográficos e até na aparência física.

 

O momento de cada fazer é outra faceta que conduz a inevitáveis diferenças. Mantendo os mesmos dois grandes exemplos anteriores, Graciliano editou seu romance em pleno Estado Novo, questionando o anúncio das mudanças que os anos de 1930 no Brasil faziam. Nelson realizou seu filme em uma época em que se discutiam “Reformas da Base” para a sociedade brasileira (governo João Goulart), sendo a Reforma Agrária um de seus principais itens. Thomas Mann, por sua vez, apresentou uma Europa prestes a ruir, escrevendo a novela antes da Primeira Guerra Mundial. E Luchino Visconti fez seu Morte em Veneza depois de duas Guerras Mundiais, que englobaram o Holocausto Nazista e o Bombardeio Atômico de cidades japonesas pelas tropas estadunidenses. Mesmo respeitando seus pontos de partida literários, Nelson e Luchino não conseguiriam ser Graciliano e Thomas. E um grande artista nunca precisa se tornar clone de outro grande artista.

 

A literatura trabalha, quase sempre, com a palavra escrita como recurso único de elaboração (vamos esquecer, momentaneamente, a poesia visual ou material e as histórias em quadrinhos); e o cinema parte da imagem em movimento para incluir palavras, desde sua preparação até aos diálogos entre personagens ou às vozes narrativas nele presentes, mais outros sons – música, ambiente etc.

 

O cinema se relaciona muito freqüentemente, portanto, com a literatura. O cinema mais elaborado artisticamente transforma essa abordagem em reflexão profunda, porque mergulha com recursos de grande arte – razão sensível e expressiva – nas experiências humanas que aquela outra modalidade de grande arte elaborou verbalmente.

 

Seria tolice, então, comparar uma obra literária ao filme que se produziu a partir de seus termos. Sempre estaremos diante de obras diferentes. Nada garante que um grande texto resulte em um filme maior. E um livro medíocre pode ser transfigurado em grande cinema, se o diretor do filme tiver estatura para tanto.

 

Muito melhor será reafirmarmos a permanente necessidade de livros e filmes, ainda mais se forem grandes livros e grandes filmes. São suportes de pensar e sentir. São lugares de memória para quantos os lerem ou a eles assistirem. Um não substitui o outro, ao contrário do que jovens vestibulandos e seus professores supõem, quando assistem a filmes baseados em leituras obrigatórias – que tal pensar também em filmes obrigatórios em seus exames?

 

Certamente, no exemplo dos vestibulandos, fica patente a funcionalidade do filme em relação ao tempo de lazer (ou auto-aprofundamento) de que dispõe cada um, de acordo com sua idade e sua classe social. Reafirmando a necessidade de todos terem acesso aos bons filmes, é preciso enfatizar também a necessidade de todos terem acesso aos bons textos literários como tópicos de primeira necessidade na sobrevivência humana.

Evocar as relações entre cinema e literatura é festejar apoios e apropriações que ambos se fazem reciprocamente, com a condição de continuarem a existir em suas especificidades. Precisamos de bons filmes e de bons livros. Descobrir os labirintos de espaço e tempo que Alain Resnais nos apresenta em No Ano passado em Marienbad (argumento do escritor Alain Robbe-Grillet) não nos eximirá de procurar outros mundos nas palavras de João Guimarães Rosa, em Grande sertão: veredas (filmado, sem maiores arroubos, pelo cineasta Renato Geraldo Santos Pereira).

 

E esses são apenas dois exemplos, em um infinito universo de livros e filmes que podem marcar nossas vidas com a aventura da indagação sobre o mundo. Esta coletânea contribui de maneira muito especial para compreendermos em maior profundidade os diálogos entre cinema e literatura, acompanhando falas de artistas que atuam nesses dois campos e nos ajudam a entender mais faces de sua produção.Entendendo melhor os cineastas e literatos, bem como as obras que deles recebemos, tão importantes para nossas vidas, nós nos entenderemos ainda mais.

 

 

Marcos Silva

Professor da FFLCH/USP e coordenador da

coletânea Clarões da tela

 

                                                                 III. Introdução

 

Repórter fotográfico notável que se transformou em (ou se promoveu a?) um dos mais importantes cineastas no domínio industrial durante a segunda metade do século 20, o norte-americano Stanley Kubrick (1928-1999) era alguém bem mais próximo da imagem do que da palavra. Envolvia-se sempre, contudo, no processo de roteirização de seus filmes. Quase todos foram adaptados de matéria-prima literária. Essa predileção por adquirir os direitos de adaptação de romances para o cinema e trabalhar com liberdade sobre eles o levou a formar produtivas parcerias com diversos autores.

 

O escritor policial Jim Thompson (1906-1977), por exemplo, escreveu os diálogos de O Grande golpe (1956) – baseado em livro de Lionel White – e, ao lado do próprio cineasta e do também escritor Calder Willingham (1922-1995), assinou o roteiro de Glória feita de sangue (1957), baseado em romance de Humphrey Cobb. Terry Southern (1924-1995) foi parceiro de Kubrick em Dr. Fantástico (1964), inspirado em romance de Peter George. O conto O sentinela, de Arthur C. Clarke, deu origem a 2001 – uma odisséia no espaço (1968), cujo argumento foi criado especialmente para o cinema por Kubrick e Clarke, e depois transportado para livro pelo escritor.

 

O próprio cineasta escreveu os roteiros de Laranja mecânica (1971), baseado no romance homônimo de Anthony Burgess (1917-1993), e Barry Lyndon (1975), adaptação do romance de William M. Thackeray (1811-1863). Gustav Hasford e Michael Herr o ajudaram a roteirizar Nascido para matar (1987), baseado em livro de Hasford, e Frederic Raphael foi seu parceiro em De olhos bem fechados (1999), adaptação de romance de Arthur Schnitzler. Foi com o russo Vladimir Nabokov (1899-1977), no entanto, que Kubrick criou uma espécie de jurisprudência, responsável por estabelecer coordenadas fundamentais em sua carreira e por iluminar alguns aspectos das relações entre a literatura e o cinema.

Lolita foi publicado na França em 1955. Kubrick e seu parceiro na primeira fase da carreira, o produtor James B. Harris, leram o romance enquanto trabalhavam em Spartacus (1960), para o qual o cineasta havia sido chamado às pressas em substituição, com as filmagens emandamento, ao então já veterano Anthony Mann. Convencidos de que o livro – pivô de um dos grandes escândalos literários do século 20 – oferecia potencial para um filme de sucesso, venderam os direitos de O Grande Golpe para a United Artists com o objetivo de levantar os US$ 150 mil exigidos pela compra dos direitos de Lolita e de Gargalhada no Escuro, outro romance de Nabokov, com trama semelhante – que, temia Kubrick, poderia ser adaptada rapidamente por um aventureiro, esvaziando o impacto de um filme sobre o primeiro.

O próprio Nabokov se dedicou, de março a novembro de 1960, em Los Angeles, a escrever um caudaloso roteiro de Lolita. Kubrick e Harris manteriam o nome do escritor nos créditos, sobretudo por angariarprestígio, mas descartaram quase todo o trabalho, por considerá-lo pouco cinematográfico. Havia também a necessidade de respeitar as normas do Código Hays, que fazia a auto-regulamentação da indústria cinematográfica norte-americana e impunha limites para o tratamento de uma série de temas – entre eles, sexo. Além de reescrever o roteiro, Kubrick e Harris trabalharam com base em improvisações durante as filmagens. Em nenhum momento, contudo, avisaram Nabokov a respeito da reescrita e dos improvisos. A estréia do filme confirmou a expectativa de boa bilheteria, mas as críticas foram divididas; parte substancial das objeções dizia respeito ao fato de que a Lolita de Kubrick se distanciava muito da ninfeta de Nabokov.

Do episódio, célebre pela estatura dos personagens e das obras envolvidas, extraem-se os seguintes ensinamentos:

(1) Livro de grande repercussão é meio caminho andado para gerar um filme de grande repercussão. Kubrick, que se notabilizou por realizar filmes-evento, inscritos na agenda cultural de seu tempo, utilizaria-se desse predicado em outras ocasiões. (2) Os elementos de um grande romance podem ser impróprios para a realização de um filme baseado nele. Não por questões de linguagem, mas por circunstâncias específicas da produção cinematográfica em escala industrial: o alto investimento, gerando riscos elevados de perdas, cria a necessidade de atingir ampla massa de espectadores, que pode ser intimidada pelo impacto de certos assuntos (pedofilia, nesse caso) quando tratados em forma de imagens. (3) Livro é livro, filme é filme. Kubrick aprenderia a identificar em obras literárias um certo conceito, espírito ou essência que se prestasse a um argumento para cinema (em Lolita, o processo de loucura e humilhação do narrador, Humbert Humbert), mas se dedicaria, durante o processo de roteirização, a encontrar o seu próprio conceito para o argumento – que, em algumas ocasiões, poderia se orientar por um tom muito distinto daquele do livro, como em Dr. Fantástico, suspense político transformado em chanchada. Lolita viria a se tornar um filme sobre um homem, Humbert Humbert (James Mason), e seu duplo, cínico e fantasmagórico, o Guilty de Peter Sellers. O romance é “quente”; o filme, “frio”. (4) Autores de obras são bons interlocutores durante o trabalho de adaptação, mas devem ser afastados de decisões sobre o destino de personagens, a eliminação ou inclusão de ações, e outros procedimentos que, julgará o escritor, descaracterizam seu trabalho. A rigor, descaracterizam mesmo. O objetivo das intervenções, afinal, é o de caracterizar uma obra cinematográfica, e não literária, cujo autor, em última instância, será outro. Os depoimentos reunidos neste volume exploram múltiplos aspectos desses princípios. Aproveite-se a ocasião para lembrar de que a obra de Kubrick configura valioso objeto de estudo a respeito das relações complexas entre a literatura e o cinema.

Sérgio Rizzo

Jornalista, mestre em Artes, doutorando em

Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações

e Artes da Universidade de São Paulo,

crítico, colunista e professor

 

IV. Princípios

As relações entre o cinema e a literatura são tão fortes que alguns estudiosos chegam a afirmar a sua existência antes mesmo do surgimento do cinema. Para isto evocam uma teoria limite, segundo a qual há uma essência do cinema, de um “pré-cinema” embutido em alguns textos literários “anteriores à forma de expressão cinematográfica, e que teriam como especificidade o fato de os escritores ordenarem o relato em função da incidência do olhar do narrador, da sua ‘ocularização’ da cena a narrar”. Desse modo, a narrativa cinematográfica já se encontrava latente em alguns textos narrativos literários e o surgimento do cinema no final do século XIX foi apenas a “descoberta da tecnologia que permitiu concretizar o modo narrativo que enfatiza a visualização perceptiva da imagem de uma cena” (1).

Por outro lado, a professora Maria Ester M. Borges demonstrou – num curso destinado a analisar tais relações – que estas não se limitam apenas ao “trabalho de adaptação cinematográfica de obras literárias ou à sua incorporação, mas se dão também por meio de diálogos implícitos, citações, evocações oblíquas, ‘transcrições’ e cruzamentos imprevistos” (2). Vê-se, portanto, que estamos lidando com um relacionamento, digamos, umbilical e que, admitido isto, poderíamos dizer que o cinema não existiria da forma como o concebemos hoje caso não recebesse os aportes proporcionados pelos recursos literários.

E o contrário, o cinema influenciando a literatura, também ocorre? Sim. A partir de certo momento o cinema passou a exercer alguma influência sobre a criação literária. “Aquelas longas descrições de paisagens dos antigos romances tornaram-se anacrônicas: a câmera faz isto muito melhor”(3). Há quem admita o roteiro cinematográfico como um gênero literário e até existem escritores que trabalham o texto com um olho na literatura e outro no cinema, ávidos de verem sua obra filmada. Se bem que neste caso verifica-se um interesse mais econômico do que artístico. O público do cinema conta-se aos milhões, enquanto o público da literatura conta-se, quando muito, aos milhares. Porém, os literatos propriamente ditos, que prezam a profissão, não incorrem neste costume.

Na opinião de Jorge Furtado, é natural que alguém “se decepcione quando vê as imagens criadas pelo cineasta e diga: gostei mais do livro” (4). Pois ao ler o romance cada leitor cria suas próprias imagens, que podem ser mais belas ou mais bem feitas do que aquelas que o cineasta imaginou. Vale ressaltar que esta é a opinião de um cineasta. Existem, também, escritores apologistas do cinema como arte. Henry Miller, por exemplo, chega ao cúmulo do absurdo em saudar a substituição da literatura pelo cinema: “O cinema é o mais livre de todos os meios de comunicação, pode-se realizar maravilhas com ele. De fato, eu iria saudar o dia em que os filmes substituíssem a literatura, quando não houvesse mais necessidade de ler” (5). Está visto que tal declaração foi obtida no calor de uma descontraída entrevista e que o ilustre escritor estava querendo brincar com o entrevistador, expondo dessa forma sua predileção pelo cinema. Somente sob este aspecto podemos aceitar sua afirmação. Pois ele, mais do ninguém, devia saber da independência entre estas duas artes e que jamais uma poderá substituir a outra.

Não existe aqui a intenção de entrar na análise detalhada destas relações. O que se pretende com esta coletânea de depoimentos é seguir o conselho do mestre Cyro dos Anjos, para quem os estudos sobre a criação artística não poderão seguir um único método, “mas há de basear-se em depoimentos e reflexões dos próprios artistas sobre a sua própria atividade” (6). Assim, procuramos obter uma grande quantidade de depoimentos de escritores e cineastas para saber como eles próprios enxergam esta relação, como vêem a junção destas distintas áreas de entretenimento e criação artísticas. Infelizmente não foi possível obter a mesma quantidade de depoimentos entre os artistas da literatura e do cinema. Há uma predominância dos escritores, devido ao fato de estes serem mais questionados em suas entrevistas sobre tal relacionamento. Mas, não deixa de ser curiosa a discrepância dos depoimentos mesmo entre os escritores. É sabido por todos a ojeriza que alguns escritores têm pelo romance transposto para o cinema e mesmo a repulsa do leigo quanto a estas transposições. Há, inclusive, um ditado popular dizendo que uma boa transposição cinematográfica é aquela de um romance que ainda não foi lido.

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1 - Urrutia, Jorge. El cine filológico. In: Discursos, n. 11-12. Coimbra: Universidade

Aberta, 1996. p. 37-52.

2 - Borges, Maria Ester Maciel. Ementa do curso Tópicos de teoria da literatura: literatura

e cinema – STL001. Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas

Gerais – UFMG, 2004. Disponível em: <www.letras.ufmg.br/site/ementas0602/

STL001%20Maria%20Ester.doc>. Acesso em: 16 de março de 2007.

3 - Scliar, Moacyr. Cinema e literatura: a conflagrada fronteira. Disponível em: <www.

celpcyro.org.br/cinema_literatura.htm>. Acesso em: 24 de janeiro de 2007.

4 - Furtado, Jorge. A adaptação literária para o cinema e televisão. 10ª Jornada Nacional

de Literatura, Passo Fundo, RS, agosto de 2003.

5 - Os Escritores 2: as históricas entrevistas da Paris Review. São Paulo: Companhia das

Letras, 1989.

6 - ANJOS, Cyro dos. A criação literária: notas de leitura. Coimbra: Tipografia da

Atlântida, 1954 (Separata da Revista Filosófica, ano IV, nº. 12).

José Domingos de Brito

Diiretor de Documentação da

União Brasileira dos Escritores