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Bibliografia
Cinema e literatura

 

1972

GEDULD, Harry, M. Los escritores frente al cine. Madrid: Editorial Fundamentos, 1981. (Tradução de Authors on film. Indiana University Press, 1972)

   O interesse dos escritores pelo cinema teve início praticamente com os princípios da cinematografia, na década de 1890. É a história de uma admiração que se converte gradualmente em desencanto. Os primeiros textos deste livro constitutem uma crônica da alegria dos escritores ao assistir o nascimento de uma nova musa, regozijando-se diante de sua magia  e sua força anunciando as promessas que oferecia aos artistas do século 20. Mas nos textos finais escutamos, frequentemente, vozes de desilusão: - desilusão do meio e do que supõe para o trabalho literário, desilusão da indústria cinematográfica como instrumento voluntário do capitalismo, desilusão dos pusilânimes critérios dessa indústria, de sua decadência interna e puritanismo externo, da prostituição dos talentos, dos gostos do público e, por fim e como consequência de tudo isso, desilusão da integridade e o valor de tudo aquilo que tenha um certo pendor a cultura de massas.

   Para os profissionais do cinema e talvez para o aficcionado médio, esta reação tem muito a ver com a fábula da raposa e as uvas: com o ressentimento do escritor ao obscurecer a popularidade de sua arte diante do impulso de novos meios de comunicação. De fato, a evidência nos leva a pensar que o realizador de cinema criativo sofreu mais que o escritor criativo. Filmes como Greed (avareza), de Stroheim, Viva México, de Eisenstein ou The red badge of courage, de John Huston, existem só em forma mutilada e incompleta, enquanto que as obras literárias que foram despedaçadas em adaptações cinematográficas permaneceram invioladas em sua forma original. Frente a todas suas lamentações sobre a prostituição do escritor em Hollywood, o certo é que poucos - se houve algum - escritores foram levados a força à Hollywood, e muitos dos que a condenaram embolsaram gostosamente os benefícios sem comprometer-se de nenhum modo a mudar o sistema. Por outro lado, a experiência de Hollywood inspirou realmente numerosos romances (além de um número considerável de filmes). Se as adaptações cinematográficas violaram com frequência a letra e o espírito de suas fontes literárias, não devemos esquecer que, a título de recompensa, incontáveis escritores a partir de Joyce e Virginia Woolf, tomaram emprestado técnicas cinematográficas para adaptá-las a suas próprias obras literárias. Mesmo assim, se o filme contribuiu com não pouca frequência à degradação do gosto público, não podemos subestimar o fato de que, em certas ocasiões, se mostrou capaz de elevar a arte. É curioso que alguns dos escritores que aparecem neste livro, situados entre os mais sensíveis porta-vozes de seu tempo, foram dos mais insensíveis no que se refere ao cinema. Sua insensibilidade se extende desde a intolerância ignorante das técnicas cinematográficas até a recusa global do meio com base em preconceitos pessoais ou políticos. E sem dúvida, uma vez e outra, se detecta uma fascinação irresistível por aquilo que se está atacando, se sente que apesar de suas acusações, o escritor tem acariciado uma sutil atitude de amor-ódio pelo cinema.

   Esperamos que este livro revele muitos aspectos das atitudes adotadas pelos homens de letras. O material que compõe está dividido em cinco partes. Com elas se quis simplesmente indicar a existência da amplas semelhanças ou relacões sobre o tema abordado. Se observará, sem dúvida, que alguns capítulos se encaixariam melhor em mais de uma parte. A primeira parte do livro contém artigos, ensaios e estudos referentes ao cinema mudo e a transição do mesmo para o cinema falado. A segunda parte oferece uma seleção de declarações gerais sobre o meio cinematográfico ou dos diretores de cinema e suas mensagens. Seguem vários capítulos que abordam problemas, impicações e reflexões do escritor quanto a escrita para o cinema (roteiro). A quarta parte está dedicada a experiência de Holywood tal como a vêm quatro romancistas norte-americanos. O livro termina com vários capítulos, em sua maior parte de natureza mais superficial, sobre uma pequna galáxia de estrelas de Holywood.

   Convém insistir que o livro é deliberadamente um conglomerado. O editor não pretendeu selecionar nem dar forma ao material em si mesmo para que expressasse alguns temas preconcebidos que satisfizessem seus próprios preconceitos, bastante duvidosos. No lugar disto, foi tecido uma extrensa trama com o fim de expor a maior diversidade de aspectos possível sobre o interesse ou o compromisso do escritor com o cinema. Viajamos também entre a pesquisa e o superficial, com a convicção - certa ou falsa - de que costuma ser tão revelador apresentar um autor que trata um tema serio superficialmente como apresentá-lo reflexivo e grave perante todo o tema. Assim, o leitor se encontrará às vezes mais interessado e surpreendido perante a formulação de qualquer idéia ou expressão de determinadas atitudes e graus de sofisticação que perante o que se está comentando verdadeiramente.

   Neste ponto, cabe ao editor retirar-se e levantar a cortina. Qualquer intento por sua parte de apresentar ao leitor o plantel de colaborações mais distinguidos que nunca contribuiram com nenhum livro sobre cinema publicado até agora, seria supérfluo ou imperdoavelmente presunçoso. (Introducão do autor).

 

1977

CÂNDIDO, João. Relações entre o cinema e a literatura: triplo mortal sem rede. O Estado de São Paulo. 01/05/1977  

Analisa a relação existente entre o conto de Lygia Fagundes Telles, A caçada, e o filme As três mortes de Solano, de Roberto Santos. “Até que ponto deve o cinema ser fiel a uma obra literária transplantada para a tela? Em que consiste essa fidelidade? Deverá o diretor de um filme inspirado num romance ou num conto prender-se pura e simplesmente à trama, deixando de lado as ambigüidades que enriquecem a criação literária?” são questões formuladas na sinopse do artigo. Conforme o autor, trata-se de uma obra cinematográfica autônoma, que se afasta da simples adaptação do livro. “Uma obra de ruptura, que pode mostrar os novos caminhos do cinema brasileiro. Um filme no qual o público não reconhece a obra literária que o inspirou nem com ele se identifica, mas é obrigado a adotar uma posição crítica contrária a habitual”. Inicia apontando, segundo Pio Baldelli, quatro possibilidades nas adaptações de obras literárias para o cinema: 1- a mais comum, o saque puro simples, uma redução simplista à trama, consistindo numa caricatura da obra original; 2- obediência e respeito ao texto original, onde o conteúdo da obra literária é passado ao espectador, mas a linguagem cinematográfica é apenas complemento do texto; 3- parceria entre o autor da obra e o diretor do filme, onde tenta-se completar o texto com as adições permitidas pelo cinema; 4- criação de uma obra autônoma, “nutrida por estímulos culturais originais e independentes” expressados pelo meio cinematográfico. É esta a possibilidade buscada nesta adaptação. Roberto Santos, experiente diretor e calejado em adaptações, foi mais fundo neste filme ao ponto de “provocar rebelião no público, que não acha no filme a sua interpretação da obra literária”. A divisão do filme em três movimentos permite níveis diferentes de leitura “que interpelam e questionam cada espectador como indivíduo e não como parte da massa, obrigando-o a uma análise não no campo psicológico, mas no sociológico”. A história é uma metáfora da luta pelo poder, onde o intelectual Solano (dono das idéias) disputa com o milionário Faro (dono do dinheiro) o poder representado no filme por uma velha tapeçaria à venda num antiquário. No primeiro movimento, mais próximo do conto, é o nível da realidade e da alucinação: o intelectual quer comprar a tapeçaria, mas enfrenta a relutância da dona do antiquário (Norma). A tapeçaria representa a cena de um caçador medieval na floresta, atrás de sua presa. Solano observa-a e entra numa alucinação imaginando-se na cena. O movimento se conclui ao se localizar na cena. O segundo movimento foge das aparências do conto e mostra um grupo teatral numa peça, onde Solano disputa com faro uma tapeçaria pertencente a Norma. “A realidade do primeiro movimento passa a ser a representação do segundo”. Como a peça estreou mal, os atores passam a discutir como salvar o barco e dão opiniões sobre a tapeçaria (o poder). Nos ensaios o ator que faz Solano discute em termos ideológicos com o ator que faz Faro. Novos ensaios se realizam e Norma decide que não pode vendê-la de modo algum, pois aquilo é um talismã familiar. Neste confronto. Solano percebe encontrar-se num jogo do qual não consegue sair. Misturando realidade e representação e numa alusão ao primeiro movimento, Solano empunha arma e diz “Vai deixar a bruxa (o nome da tapeçaria na peça) para mim. E mais tarde nós vamos nos encontrar. Nesse bosque velho e antigo de pesadelos onde você já me matou uma vez”. Mais uma vez realidade e representação misturam-se e o segundo movimento termina com Solano indo de encontro ao seu destino. O terceiro movimento apresenta Solano,Faro e Norma nos papéis de palhaço, caçador e cigana, num circo mambembe. A tapeçaria, agora, está com o palhaço achando que desta vez será o caçador e conseguirá vendê-la à cigana, alegando seus poderes mágicos. A tapeçaria levanta-se no ar, ele penetra na tapeçaria e diz: “Eu não falei? É o paraíso, madame. O paraíso”. A resposta de Norma é esclarecedora: “Eu sei, meu querido, eu sei”. Outra vez, levado por Norma, Solano está enredado nas malhas do seu destino, que torna a cumprir, fechando o filme, enquanto a tapeçaria volta para as mãos de Faro e Norma. O filme se ordena, portanto, “em torno de três personagens: Solano (dono das idéias), Faro (dono do dinheiro) e Norma (o sistema, detentor do poder), que manipula os outros personagens, levando-os a um confronto de resultado já previsível”. Trata-se de um filme de questionamento, onde “o espectador é obrigado a não se identificar” com os personagens, ficando sempre de fora em posição de análise crítica. Tais preocupações (a luta pelo poder, a relação opressor/oprimido) são constantes na obra do cineasta Roberto Santos.                  

1983

ORTIZ, Anna Maria Balogh. O texto literário no cinema. O Estado de São Paulo, 27/06/1982

A autora mostra a complexidade do processo de adaptação de uma obra literária para o cinema a partir de alguns bem sucedidos projetos, tais como os dois livros de Graciliano Ramos Vidas secas, dirigido por Nelson Pereira dos Santos em 1963 e São Bernardo, dirigido por Leon Hirszman em 1972, que também dirigiu a adaptação da peça de Gianfrancesco Guanieri Eles não usam black-tie, em 1980; os contos de Guimarães Rosa, A hora e a vez de Augusto Matraga e de Lygia Fagundes Telles, A caçada, que resultou em As três mortes de Solano e o romance de Fernando Sabino O homen nu, filmados por Roberto Santos em 1966, 1976 e 1968 respectivamente. Tais adaptações, aperfeiçoadas pelo cinema novo, atingem sucesso de bilheterias comprovado em adaptações mais recentes das obras de Jorge Amado e Nelson Rodrigues. Detalha as diferenças entre os processos da elaboração e fruição das obras literárias e cinematográficas: o trabalho individual tanto na elaboração como na fruição no primeiro caso e o trabalho coletivo e a acessibilidade no segundo. Uma diferença significativa é como os resultados de uma e de outra obra são recebidos pelo público. A multiplicidade de sentidos espelhada em cada uma são absorvidos de modos totalmente diferentes. Na literatura isto se manifesta “através do uso poético de uma única materialiadade: a palavra”. No filme é preciso a “interação de materialidades diversas: a palavra, o ruído, a música e a imagem com os subsistemas que ela abarca”. No processo de adaptação o cineasta pode optar por uma adaptação parcial da obra, por uma síntese das obras de um autor, pela tradução fiel etc. Neste ponto a autora pergunta: Qual das capas de significação (e interpretações posíveis) co-presentes no(s) texto(s) literário(s) será privilegiada pelo cineasta-tradutor na tradução filmica? E passa a responder com alguns exemplos. Em Vidas secas “ainda que fiel ao romance propõe uma questão ineludível na análise das adaptações”. Tanto no cinema como na literatura, a transmissão da temporalidade é feita de modo diverso. No romance as divagações dos personagens “oscilam entre as agruras passadas (seca na caatinga), as incertezas futuras (de novo a caatinga seca ou a longínqua cidade grande) e as conquistas do presente (sobrevivência e permanência na fazenda)”. No cinema “elimina-se a alternância temporal constante no romance em benefício da espacialidade como critério condensador e organizador dos episódios na seguinte ordem: Caatinga – fazenda – cidade – fazenda – caatinga”. No universo do romance,” os tempos virtuais” constituem um desafio para o cinema. Por isto, “o belo sonho de Baleia moribunda povoado de preás enormes não é retomado no filme”. Pela mesma razão a revolta de Fabiano nos é mostrada de modo bem diverso no filme, onde os cangaceiros são aparentemente mais “reais” do que no romance. Em outra partes do  romance os tempos virtuais manifestam o temor da família quanto ao futuro. No filme, a tensão de tais temores é transmitida através do ruído agudo e irritante das rodas de uma carroça “que parecem girar com a mesma dificuldade com que os retirantes cumprem sua trajetória”. Tal ruído - representa o poder fatal da natureza - se intensifica e acompanha os retirantes “que surgem nas sequências iniciais da imensidão da caatinga seca e nela parecem desaparecer nas sequências finais”. Em São Bernardo, a filmagem enfrenta outro desafio: a tradução de conceitos abstratos. Por isto, o primeiro capítulo do livro, onde Paulo Honório tece elocubrações sobre sobre a melhor forma de narra a história da posse de São Bernardo são eliminadas na adaptação. “O filme traduz a oposição primordial entre as personalidades e trajetórias de ambos através de usos diversos da luz e da cor da movimentação dos atores no espaço”. Por exemplo, a “penumbra que invade o lugar e o discurso de Madalena constituem uma antecipação de sua morte. O uso de luzes banhando sua silhueta  (recurso freqüente no filme) parece destacá-la como individualidade inassimilável como simples objeto de posse do universo rígido e materialista de Paulo Honório. No caso de As três mortes de Solano, “Roberto Santos inclui indagações sobre a maneira de contar a estória ausentes no conto”. No livro, a grande dúvida está em saber qual o papel do narrador na tapeçaria que representa a caçada. No cinema, o cineasta traduz esta dúvida na versão fiel da estória representada pela primeira morte de Solano. “As duas versões seguintes constituem sobretudo uma experimentação sobre as possibilidade de transposição do conto original ao nível metafórico, simbólico, metalingüístico”. A segunda morte no moderno cenário de um teatro e a terceira num circo decrépito, conforme demonstrado no primeiro resumo desta bibliografia. Diante da experimentação sobre o “como” transmitir um significado conhecido, e que reside a maior originalidade do filme, “o cineasta-tradutor testa os limites de sua arte”. Neste ponto, a autora pergunta: “até onde o cineasta-tradutor pode jogar com as formas de construir a significação de um filme sem afetar outro fator básico: a comunicação (a relação obra – espectador) e alterar a essência do texto que traduz? No caso da adaptação cinematográfica de uma peça teatral, não obstante as expressões aparentemente similares, parece representar um desafio maior ainda. É sabido que a peça foi estreada em 1958 no Teatro de Arena, um “espaço que oferece vantagens em relação ao italiano tradicional na medida em que oferece uma maior proximidade de espectador-ação (ator) e mais opções em termos de ângulo de visão (a arena)”. O cinema “permite uma mobilização ponderável nestes sentidos”, pois a câmera pode nos levar ora à intimidade dos atores, ora ao plano geral, além de permitir outros ângulos. “No cinema há maior mobilidade para a filmagem de espaços diferentes, mas limitada para mudanças nos cenários teatrais”. Existe uma diferença fundamental entre os modos de “ver” e vivenciar uma cena no teatro e no cinema. No filme chama a atenção as cenas de rua e grandes massas que o “argumento da peça (seu comprometimento ideológico) parecem demandar e que, no entanto, são impensáveis no teatro: a forma original”. Por outro lado, no teatro, o espectador compartilha o mesmo espaço com os atores “e captando um momento único: a função daquela noite”. A autora conclui que “se todo o “ver” pressupões uma ideologia, o resultado de várias visões nascidas de processos de representação diversos certamente constitui um desafio que está por merecer uma análise mais aprofundada.             

1983

JOHNSON, Randal. Literatura e cinema – Macunaíma: do modernismo na literatura ao cinema novo. São Paulo: T.A. Queiroz, 1983.

Apresentado originalmente como tese de doutoramento defendida em maio de 1977 na Universidade do Texas, este livro confronta duas linguagens (a literatura e o cinema), com o objetivo de mostrar como, por que e quando elas se encontram. O aor pretende – e quase sempre consegue – mergulhar nas camadas dessas duas linguagens em direção ao seu horizonte comum, deixando para trás, numa superação dalética, a conversação literatura/cinema. Peirceano convicto, o autor quer, como o mestre, “tornar clara as nossas idéias” (as dele e as nossas) sobre um assunto tão complexo como é o estudo comparativo entre duas linguagens. Para essa tarefa, toma o exemplo de Macunaíma ( o livro e o filme), não antes de fazer oportunas observações sobre as relações entre o romance e o filme e sobre o modernismo e o cinema novo. Na esteira de todo estudo semiológico que se preza, este também não prescinde da ótica ideológica. Diante da ideologia sempre nos vemos cercados pelo embaraço da riqueza. Afinal, o que não é ideológico, se até os gestos o são? Os antropólogos socorreram a tempo os lingüistas quando estes estavam perdendo o pé no universo dos ritos, daí antropologia cultural e lingüística estarem modernamente tão ligadas. Neste sentido, a escolha de Macunaíma, mesmo dispensada a análise comparativa livro/filme, é exemplar, pois nos remete a um momento riquíssimo da cultura brasileira. O curioso é que o modernismo, marco da emancipação cultural do Brasil, não foi uma emancipação “política”, devido à indefinição ideológica dos seus participantes, fortemente influenciados pelos movimentos anarco-sindicalistas europeus. Isso muita gente ainda teima em negar. A paixão de Randal Johnson pelo cinema brasileiro não ficou apenas nesta tese: ele acaba de publicar nos Estados Unidos, uma antologia intitulada Brazilian cinema, com textos de importantes ensaístas brasileiros a respeito do assunto, além de artigos do próprio ator e de Robert Stam, este também o autor de O espetáculo interrompido: a literatura e o cinema de desmistificação, outro “brazilianist”, que, como Johnson, viveu algum tempo nestes trópicos. (Resenha de J.C. Ismael, publicada no Estado de São Paulo, 02/10/1983   

                                                                                                               

1986

AVELLAR, José Carlos. Há uma gota de literatura em cada cinema. In: O cinema dilacerado. Rio de Janeiro: Alhambra, 1986 p. 207-236

A partir de uma especulação: “Talvez o cinema, a invenção da máquina de filmar e o contato regular com a projeção de fotografias em movimento, tenha levado as pessoas a ver, a pensar e a se expressar diferentemente”, o autor pergunta brincando: “o cinema inventou o homem do século 20 ou o homem do século 20 inventou o cinema?”. Tal especulação tem inicio a partir da análise do livro Amar, verbo intransitivo, de Mario de Andrade. Não por acaso, um romance cinematográfico, como o próprio Mario escreveu em carta a Sérgio Milliet em setembro de 1923, enquanto preparava o livro. É preciso lembrar que “Braque e Picasso já tinham resolvido os problemas de montagem de filmes pintando num rosto de perfil os olhos e a boca como se tivessem sido filmados de frente”. Logo, “fizeram cinema sem se servir da câmera de filmar, solucionando problemas de construção cinematográfica que os filmes só levantariam mais tarde”. Carlos Drummond de Andrade também fez o mesmo em dois poemas de seu Alguma poesia (escrito entre 1923 e 1930): “um filme de sete planos no Poema de sete faces e um filme de planos curtos e fixos interrompidos por cortes secos no Cota zero: stop”. Diante destes exemplos , o autor pergunta: o cinema não estaria presente “não só nos filmes mas também nos quadros, nas poesias, nos romances, nos textos para teatro,, na música, na arquitetura, em tudo enfim, como estrutura comum, como modo de ver e pensar o mundo contemporâneo?” O romance de Mario de Andrade, “não corre como texto propriamente dito, como conversa escrita ou falada, como carta ou como bate-papo, como informação contínua e linear. Corre como um filme”. Quase 50 anos depois, Eduardo Escorel e Eduardo Coutinho resolveram filmar o romance de Mario, mais interessados na história de Carlos e Fraulein do que na forma usada por Mário. O resultado - Lição de amor – foi uma “construção mais linear, destacando mais o enredo do que a estrutura fragmentada da narração. Outro exemplo de romance cinematográfico não pensado pelo autor como filme: Vidas secas, de Graciliano Ramos. A transposição feita aqui por Nelson Pereira dos Santos é diferente, tomou o livro mais como roteiro, devido a estrutura narrativa do romance, que é mais próxima do romance e do interesse do cineasta em documentar a agonia daquela família, aquelas “vidas secas”. O mesmo aconteceu com a filmagem de São Bernardo, também de Graciliano Ramos. Ao filmar, Leon Hirszman “disse que se comportara como um músico que interpreta a melodia escrita por outro músico”. Nem precisou fazer roteiro, o livro foi o próprio roteiro, a fonte de trabalho para toda a equipe. O personagem Paulo Honório conta sua história para a câmera, assim como no romance conta para o livro. Segue-se uma análise cinematográfica do romance entremeada com uma análise literária do filme, colocando-o numa perspectiva política, a ditadura, que o país vivia na década de 1970. Uma época em que havia um estímulo às adaptações literárias. Em 1975 foram selecionados cinco roteiros pelo Instituto Nacional do Cinema para concorrer à  Coruja de Ouro, todos eles tirados de livros: Guerra conjugal (Dalton Trevisan); A extorsão (Rubem Fonseca); O casamento (Nelson Rodrigues); A lenda de Ubirajara (José de Alencar) e Lição de Amor (Mário de Andrade). “De um certo modo nos textos modernistas é que nasceram os roteiros de filmes que fizemos a partir de década de 1960”. Se em 1922 a literatura usou o cinema como ponto de apoio para exorcizar o anacronismo, “a partir da década de 1960, e mais acentuadamente a partir de 70, o cinema usou a literatura como ponto de apoio para se livrar da prosa acadêmica do cinema estrangeiro e passar a escrever brasileiro. A experiência modernista começou a ser repetida num outro contexto”. Tal questão nos remete ao roteiro. Por que anotamos os filme no papel antes de filmar? Que relação existe entre o texto e o filme que nasce dele? Nelson Pereira dos Santos ao adaptar Tenda dos milagres, de Jorge amado, tomou o livro apenas como indicação básica. Ele disse “Um filme a gente filma, não escreve”. No cinema mais artesanal, o roteirista é dispensável, “quem escreve mesmo é a câmera”. Sua utilidade se faz sentir no cinema industrial, com uma divisão de trabalho bem definida. O roteirista Leopoldo Serran diz: “não creio mesmo em cinema de roteiro, em marcar no papel como fazer o filme. Meu trabalho é literário, mas eu preciso saber quem vai dirigir o filme para tentar descobrir o que ele quer e se eu posso trabalhar com ele”. Seus roteiros são talvez um dos sinais do toque de literatura que passou a alimentar parte da produção cinematográfica da metade da década de 1970 para cá. São roteiros satisfeitos com ele mesmo, “acabado nele mesmo, contente com a função de estimular a criação de imagens em movimento”. Cacá Diegues diz que seus filmes são escritos como “uma espécie de novela cinematográfica”, procedimento seguido também por  Orlando Senna e Geraldo Sarno. “A narração já não depende da fotografia que faz do real, mas de uma certa gota de literatura que informa previamente cada uma das fotos. O cinema passa a ser menos fotografado e mais literatura”. De qualquer modo, a questão do roteiro permanece: de onde vem o hábito de escrever os filmes antes de filmá-los? A resposta tem muitos desdobramentos. Um deles é a relação de troca de informações entre “a imagem e a palavra, entre cinema e literatura, vontade de ser uma coisa e outra”. O fato é que “textos interferem no modo do cinema. Filmes interferem no modo da literatura”. Para concluir, o autor afirma que “a presença de uma gota de literatura de 1922 no cinema de 40 anos mais tarde (bem como a presença de uma gota de cinema na literatura de 1922) é uma coisa natural”. Foi o resultado de uma busca comum, “de descobrir e inventar o país e liberto deste sentimento colonizado”. Um sentimento que nos leva a reproduzir formas, modelos e sistemas de trabalho copiados dos países hegemônicos. Neste sentido, o AI-5 foi um esforço reacionário e conservador para impedir nosso desejo de sermos independentes    

dos modelos propostos pelos paises industrializados.     

                                                                                                

1991

ISMAEL, J.C. Hemingway no cinema. O Estado de São Paulo, 06/07/1991

Porque a obra de Hemingway, tão ligada a aventura e tão glorificada pelo público, não obteve prestigio quando transposta para as telas do cinema? Anthony Burgess acha que “a natureza essencialmente ‘literária’ de sua obra frustra a transposição para a linguagem visual do cinema”.  Mas há quem ache o contrário, pois seu estilo enxuto tem tudo para ser a matéria-prima de filmes muito mais importantes que os produzidos até agora. Logo após o sucesso editorial de O sol também se levanta, Louis B. Mayer se interessa pela sua filmagem, mas não consegue devido a desavenças com Hemingway em 1926. Mais tarde Adeus às armas, saudado como um dos melhores romances de guerra, interessa ao diretor Frank Borzage, que convence a Paramouth a bancar o projeto. O filme estréia em 1932 com Gary Cooper e Helen Hayes nos papéis principais e obtém apenas um Oscar para o diretor de fotografia Charles Lang. Em 1951 “a Warner faz uma tola refilmagem com William Holden e Nancy Olson”, chamada Quando passar a tormenta, com direção de Michel Curtis. Uma terceira versão é feita em 1957 contando com o grande roteirista Ben Hecht e estrelada por Rock Hudson e Jennifer Jones, com direção de Charles Vidor. O filme, desta vez, consegue destacar dois italianos: o ator Vittorio de Sica e o autor da trilha sonora, Mário Nascimbene. Em 1943 é a vez de Por quem os sinos dobram, sobre a Guerra Civil Espanhola, onde Hemingway participou como jornalista. Com Gary Cooper e Ingrid Bergman nos papéis principais, sob a direção de Sam Wood, o filme arranca “lágrimas da platéia e tímidos aplausos da crítica”. O próximo filme é baseado na novela To have and have not (1937), considerada “a pior coisa escrita por seu autor”. Para compensar, a Warner contrata William Faulkner para, em parceria com Jules Furthmam, escrever o roteiro. O filme - que no Brasil foi intitulado Uma aventura na Martinica – mesmo dirigido por Howard Hawks e tendo Humphrey Bogart como ator, foi mais elogiado pelas canções de Hoagy Carmichael e Johnny Mercer e pela estréia de Lauren Bacall. Em 1950 o diretor de Casablanca, Michael Curtiz refilma a novela com o título de Breaking point (Redenção sangrenta), mas também fracassa apesar da presença de John Garfield no elenco. Em 1946 a Universal se dispõe a adaptar um conto que não oferecia possibilidades para ser filmado, mas foi o que mais agradou ao próprio Hemingway. The killers (Os assassinos) reuniu uma equipe de profissionais competentes, tendo na direção Robert Siodmak, no roteiro  Anthony Willer, na fotografia Woody Bredel e trilha sonora de Miklos Rozsa. Para completar, o elenco conta Ava Gardner e a estréia de Burt Lancaster e William Conrad. Outro conto é filmado em 1947 sob a direção de Zoltan Korda, com Gregory Peck, Joan Bennet e Robert Preston, intitulado The macomber affair (Covardia). Este “é tido por muitos críticos como o melhor filme que um texto de Hemingway”. Dois anos depois, o diretor Jean Negulesco realiza Under my skin (Vingança de um destino), também extraído de um conto, mas não escapa do desatre. Mais um conto - The snows of Kilimanjaro (As neves de Kilimanjaro) – vira filme com a direção de Henry King em 1952. É a história de um escritor em crise existencial que escolhe a África para morrer. Apesar de ser estrelado por grandes atores: Ava Gardner, Gregory Peck, Susan Hayward e Leo G. Carrol, o filme alcança resultados apenas sofríveis. Em 1957 a Fox resolve filmar aquele que é considerado o mais biográfico romance de Hemingway, The sun also rises (O sol também se levanta), sua primeira obra que interessou aos cineastas. Não obstante o elenco imbatível: Tyrone Power, Erroll Flyn, Ava Gardner e Mel Ferrer, seu lançamento em 1957 não causou o estouro de bilheteria pretendido. A história de um grupo de expatriados que procura Paris na década de 1920 como um refúgio para “escapar do tédio existencial, com todas as elocubrações a que o assunto dá direito” foi considerada “intelectualizada” demais. Em 1952, O velho e o mar foi lançado e não se imaginava que pudesse ser filmado. A Warner acreditou no projeto e convidou Peter Viertel para fazer o roteiro. Apesar dos esforços do diretor John Sturges, da trilha sonora de Dimitri Tiomkim e da interpretação de Spencer Tracy, o filme foi outro fracasso. Para concluir, temos a filmagem da novela póstuma Islands in the stream, resultando em A ilha do adeus, dirigido por Franklin Schaffner em 1977. Segundo Anthony Burgess “o livro só interessa aos estudiosos da psique atormentada de Hemingway”, cuja temática o diretor não soube captar. É a história de um pintor e escultor (interpretado por George C. Scott) que perde toda a família e que faz de tudo para distrair a dor de tantas mortes. A história se constitui para Hemingway em “material de primeira para mais uma variação daquele que pode ser considerado o tema único de sua obra: o homem carrega, na certeza da morte, ferimento incurável, e por isso procura na ação a única transcendência única”. Pois, bem, e quando nem a ação é mais possível, agravado até pela impossibilidade de escrever sobre ela, o que fazer? “Hemingway deu a resposta na solidão da sua casa, em Ketchum, no dia 2 de junho de 1961”.                            

AVELLAR, José Carlos. A literatura dentro do cinema. O Estado de São Paulo, 20/04/1991.

A sinopse deste artigo diz que “a tensão entre letra e imagem, entre cinema e literatura está presente em quase todos os trabalhos de Bertolucci, especialmente em O céu que nos protege, com participação do autor do livro inspirador do filme”. Relata uma cena do filme, onde os atores (três turistas) conversam animadamente num café em Marrocos. “A movimentação no café por trás dos três turistas americanos é ação secundária, é movimento que do ponto de vista dramático não se mexe”.  Mas bem lá no fundo da cena algo se mexe sem que o espectador perceba seu movimento. Trata-se de um homem sozinho sentado noutra mesa do café. Ele traz “o rosto marcado pelo tempo com uma expressão quieta e sofrida”. Parece não fazer parte da cena, “não se parece com a gente do Marrocos nem com os outros turistas. Está ai como um figurante mal escolhido para a cena”. O homem é Paul Bowles, o autor do romance que serve de base para o filme de Bertolucci. Ele está ali “como o autor da história que está sendo contada, como o criador daqueles personagens que conversam diante dele”. É como se o autor estivesse interpretando o autor, “um personagem que não existe na ficção que escreveu para contar o que viveu de verdade com sua mulher no Marrocos” na década de 1940. Quando os turistas se retiram do café, a câmera se aproxima do rosto “deste estrangeiro nem dentro nem fora da história”. O homem faz um breve comentário e fica parado, calado. A câmera dá um close em seu rosto, “junto com uma voz sussurrada, conversa interior”, refletindo sobre a cena que acabou de passar, bem como lamentando que o começo da história ocorresse daquele modo. Trata-se de um jogo de espelhos onde o autor do livro, Bowles, se vê frente a frente com o ator John Malkovich, que interpreta o papel do autor, para falar de si mesmo. Bowles só volta a aparecer no final do filme, no mesmo café para fazer o mesmo jogo de espelhos, agora entre o autor e a personagem que ele criou para falar de sua mulher. Dá-se, então outro breve comentário/diálogo sussurrado tal como no inicio do filme. Bertolucci disse que pediu a Paul Bowles que apenas “mostrasse no rosto o sofrimento da memória, uma vez que o filme ocorreu 40 anos depois do acontecido e narrado em livro. Explicou, também, que “decidiu chamá-lo para este  pedaço do filme porque desejava colocar a literatura dentro do cinema, em pessoa”. Pois, na adaptação “fora obrigado a eliminar tudo que existia de literatura para ficar só com a história, para chegar mais perto dos personagens”. É o que faz Bertolucci em seus filmes: “eliminar a natureza literária de um texto para melhor adaptá-los para o cinema”. Isto foi feito neste filme; em Antes da revolução (1964), inspirado em Stendhal; Partner ((1968), inspirado em Dostoievski; A estratégia da aranha (1970), baseado em Borges e O conformista (1970), baseado em Moravia. Esta prática não se dá apenas com textos literários, mas também com textos originalmente feito para cinema, como La commare secca (1962), baseado em Passolini, como “aqueles que escreveu com outros colaboradores especialmente para seus filmes, Último tango em Paris (1972), 1900 (1976), e o Último imperador (1987). A tensão entre a escrita e a imagem, entre literatura e cinema, é uma tensão aguda nos filmes de Bertolucci, mas certamente presente em todo e qualquer filme”. Andrzej Wajda utilizou o mesmo recurso em Crônica de acontecimentos amorosos (1985). Chamou o autor do romance em que se baseia  o filme, Tadeusz Konwicki para atravessar a cena como o autor entre seus personagens. O espectador que perceber o escritor Paul Bowles no fundo da cena, o autor como espelho, a literatura dentro do cinema, compreenderá “de que modo se dá esta tensão entre palavra e imagem no filme”. O que predomina na cena são os atores falando e gesticulando muito, enquanto no fundo observa-se um homem (o próprio autor) que nada diz e nada faz, mas que está ali para expressar “a ação importante de verdade na estrutura do filme”. Os atores falam, comentam, se excedem em palavras, mas a imagem não parece interessada em acompanhar o que eles dizem. “Sai noutra direção, vê outras coisas. Não diz, não narra, não escreve: torna presente”. O espectador pode se surpreender com o  longo final do filme sem palavras. Mas, o fato é que as palavras estão lá, mas sem legendas. São conversas em árabe que, obviamente, nada se entende e não precisa para se entender a história que termina. O que importa (para o espectador) é o quadro, a luz, a cor, o rosto, o som. Bertolucci, de certo modo, como Paul Bowles, também se coloca diante do espelho e não apenas neste filme. Quando o protagonista leva a mulher “para ver o ponto em que a gente se sente mais perto do céu que nos protege das coisas que existem lá fora está fazendo do espaço aberto do Saara algo parecido com o apartamento em que os amantes de Último tango em Paris se refugiavam de suas identidades e do resto do mundo; e parecido ainda com os muros da cidade proibida onde o último imperador era isolado do resto do mundo”. O espectador, dentro da sala fechada do cinema, também está protegido das coisas que existem lá fora; “porque vê um personagem que age bem como o espectador está agindo no instante em que vê o filme: um personagem que se despersonaliza para viver uma experiência dos sentidos”. Bertolucci se serve da música utilizada em O céu que nos protege do mesmo modo que se serviu em Último tango em Paris e O último imperador. O modo como usou a fotografia – o tom amarelo-alaranjado intenso, vivo – predomina em outros filmes: O conformista, A estratégia da aranha e La luna, só que nestes utilizou a cor azul. Quem perceber e compreender a presença de Paul Bowles no fundo da cena inicial e final do filme, “estará mais perto dessa coisa que nos filmes de Bertolucci fica por trás da história, como quem não diz nada nem faz nada: a textura da imagem, a natureza da imagem”. Estará mais perto do que importa nestes filmes: as cores bem realçadas, a fala de quando em quando, língua estrangeira como palavras que não se entende. “Existe uma coisa que é só livre associação, como um sonho; que é só a parte sensual da imagem (que é só cinema); que envolve e fecha o espectador num espaço mágico; que é imagem cujo sentimento e entendimento depende necessariamente da condição de espectador de cinema”.                        

1992

DOCE, Claudia C. Rio. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Cinema e Modernismo. Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC. Doutorado sob orientação de Raul Antelo. Fev. de 1992.

Este trabalho pretende mostrar a função do cinema, enquanto nova possibilidade de expressão, mas também como um dos principais veículos da indústria cultural, para a construção de uma sensibilidade dita moderna. Para isso, percorreremos alguns trabalhos de escritores latino-americanos, notadamente, no Brasil ( Guilherme de Almeida, Aníbal Machado, Oswald de Andrade) e na Argentina (Susini e Obligado), trabalhos estes elaborados  para o cinema ou sob forte influência dele, todos durante as décadas de 30 e 40, período de acelerada industrialização e forte arregimentação  ideológica sob a política de boa vizinhança. A questão, portanto, consiste em analisar os mecanismos de intercâmbio simbólico que tais escritores mantiveram com a indústria cinematográfica, com mútuos empréstimos e concessões.

1993

GIMFERRER, Pere. Literatura y cine. In: Itinerario de un escritor. Barcelona: Editorial Anagrama, 1993. p. 74-98

Transcrição de uma conferência proferida pelo autor em 27/11/1990, como inauguração do ciclo “Literatura i cinema occidentals” do Cine Club Sabadell, de Barcelona. Coloca o assunto sob uma dupla perspectiva: um cineasta diante da literatura e a relação, em sentido amplo, entre literatura e cinema. Para isto enfoca dois diretores conhecidos: Jean-Luc Godard e Vincent Minnelli. Godard, “um cineasta que queria ser escritor, quando iniciava uma história, escrevia: “O trem chega a estação”. E passava horas refletindo: ‘Bem, o trem chega a estação. Por que não dizer: o trem chega a estação. O dia está bonito’”. Este é o problema essencial da diferença entre estes meios. Na literatura não é essencial dizer se o dia está bonito ou chove. Mas, no cinema é inevitável demonstrar se o dia está assim ou assado, se há pessoas na plataforma ou se está vazia, como são estas pessoas etc. Escritores como Dostoievski, Balzac ou Dickens “têm uma linguagem muito visual e constituem a base de boa parte de nossa cinematografia”. Quando descrevemos uma casa num romance, não necessitamos mais falar disto se não quisermos. Porém, no cinema quando se filma uma casa, esta casa será filmada com tudo que faz parte dela sempre sempre que ocorra alí uma cena qualquer. Diante disto, existem diversas atitudes. A mais extrema é de diretores como Minnelli ou Visconti, que fazem com o visual se converta em protagonista narrativo do filme. Já no caso de Godard, “com uma inclinação mais literária, não podia deixar de pensar”: “Por que fragmentar a realidade? Por que não a conto inteira ?” Godard é o limite do intelectual que fica entre o cinema e a literatura. Minnelli também conseguiu um resultado visual que marcou época e atingiu seus objetivos de cineasta: uns personagens que se constroem numa espécie de mundo privado, uma projeção de um sonho interior, que vai sendo destruído pela realidade. O trabalho feito por Minnelli gerou uma tradição iconográfica que influenciou Visconti, De Sica e Bertolucci, entre outros. Trata-se de “uma influência semelhante aquela que se dá com a literatura”. Com este exemplo, o cinema pode reafirmar sua própria tradição, independente da literatura. Até aqui temos falado do aspecto visual. Falemos, agora, do aspecto argumento. O cinema argumental parece destinado a contar histórias, “e neste sentido se encontra no mesmo ponto do ano 1915, quando Griffith realizou O nascimento de uma nação”. Qual pode ser o modelo para contar histórias? O teatro ou o romance. A principio foi o teatro, mas não tardou para que se tomasse o romance como modelo. Utilizou-se o tipo de narração de Dickens, que tinha o hábito de ler Dostoievski e apresentar os personagens como este fazia, ao mesmo tempo em que isolava elementos da filmagem, enfocando apenas um aspecto. Este é o principal feito de Griffith. Pode-se filmar uma parte da face, um detalhe. Esta é a base a partir da qual o cinema funciona desde 1915 até agora. Nos anos 1920, a idéia é que o cinema ainda que a totalidade da imagem caiba dentro de cada plano, pode, com a montagem, que se converte no mais importante, fragmentar ao máximo a realidade. Exemplo disto é O encoraçado potemkim, de Eisenstein. A parte as questões teóricas, não se pode desconsiderar os aspectos técnicos. As câmaras daquela época não tinham a mobilidade de hoje, não havia gruas e tampouco “travellings” manuais etc. Com tais técnicas não haveria necessidade de fragmentar tanto a realidade, como fez Eisenstein. “A fragmentação da imagem corresponde a um determinado momento da história do cinema em consonância com as teorias da vanguarda nas artes plásticas”. Mais tarde poderá se fragmentar ao máximo, sabendo que cada imagem será completa em si mesma – será um fragmento da realidade, mas completa enquanto imagem -, ou bem se pode não fragmentar e restituir a ilusão da totalidade do espaço e do tempo. Ou seja, aproveitar ao máximo uma possibilidade latente do cinema. É o que faz Godard, que se decide a fazer cinema por que não quer separar o trem que chega a estação do bom tempo em que isto acontece, quando se põe a dirigir, se dedica sistematicamente, a fragmentar a realidade. “Ele não foi um grande escritor, mas foi um grande escritor para o cinema. Seu material literário só existe como material para o cinema, carece de valor autônomo”. Sua fragmentação reflete a fragmentação do mundo moderno e o caráter enciclopédico que sua geração possui de toda a história do cinema. Assim, chegamos a numa estética moderna, a estética do instante, que se dá em diversas artes: plásticas, com a arte abstrata, a gestual; o instante musical, o poético. O poema quer deter o instante, decompô-lo, para deter a percepção corrente do tempo e ver o que há por trás dessa percepção. O mesmo se dá com a literatura moderna, com o monólogo interior no romance de James Joyce, ou na proposta de Proust, Em busca do tempo perdido. De qualquer modo, trata-se de fazer algo que funciona a partir da força visual. No cinema, “todas a sensações, todas as emoções, todas as idéias, devem ser postas visualmente”. Mesmo com os diretores europeus, ou com os americanos mais jovens, o princípio continua: necessariamente, o tratamento visual deve ser o único que importa ante o espectador. Como dizia Hitchcock: “Um cinema é uma sala de poltronas que é preciso encher”. Só pode aspirar a entreter com sua força visual. Mais uma pergunta: “por que o cinema tem que ser sempre uma narração, nos termos formulados por Griffith, inspirando-se em Dickens? Deve ser sempre uma narração de fatos, com sucessão cronológica?” No mundo da literatura, os sistemas de renovação das estruturas narrativas se iniciam nos anos 1920, chegam ao cinema nos anos 1940, são dominantes em ambos durante os anos 1960 e 1970 e, depois tanto o cinema como a literatura acabam por voltar a narração tradicional. Isto me parece um bom sinal, não obstante meu pessimismo em relação a literatura e mais ainda ao cinema. Pessimismo decorrente do fato estarmos vivendo “uma claríssima claudicação do cinema americano”. Deu-se o que se chama de “processo de infantilização do público”. Os filmes não se dirigem ao público adulto, como acontecia nos anos 1960. Parece que desde Guerra nas estrelas, os diretores só pensam nos garotos de 15 anos. Na literatura, isto não ocorre. Atualmente a literatura não é pensada exclusivamente para um público adolescente ou muito infantilizado. Isto nos remete a outra pergunta importante: a literatura e o cinema terão de manter forçosamente uma correlação que determine que o cinema explique sempre histórias? Tudo que passa na tela tem ou não uma explicação lógica? Se tem, estamos fazendo uma narração semelhante a narração literária tradicional. Se não tem, estamos inventando uma possível forma autônoma de narração cinematográfica. Neste caso, temos poucos exemplos, tais como Noturno 29, de Pere Portabella, A idade de ouro, e O anjo exterminador, de Buñuel. Neste ponto, nos encontramos numa situação não muito diferente da literatura. A literatura experimental de Rimbaud, por exemplo, começou com um livro – o único publicado em vida -, que foi distribuído a uma dúzia de leitores e, a partir daí, foram vendidos milhões de exemplares. Assim, “creio que o cinema de narração clássica equivale ao romance clássico, e um cinema mais experimental, destinado a circuitos semelhantes a poesia”, circuitos inicialmente mais reduzidos, mas cada vez mais amplos. “São estas as tendências que vejo desenhadas”.    

  

1996

OLIVEIRA, Ubiratan Paiva de. Harold Pinter, cinema e literatura: os limites da realidade. Tese orientada por Tania Franco Carvalhal. Instituto de Letras da UFRGS. 1996.

Partindo de duas questões teóricas preliminares, uma, da representação (literária e cinematográfica)do real e do imaginário, tanto no ângulo da produção como no da sua recepção e, a outra, da articulação entre formas de expressão artísticas distintas, ou seja, da interdisciplinaridade, este trabalho examina a presença do tema relativo aos limites entre realidade e fantasia no teatro, no cinema e na literatura, centrando sua atenção na obra de Harold Pinter. Consta de duas partes, cada uma com três capítulos. Na primeira, "Os pressupostos," discute-se as questões que fornecem seu substrato teórico. A segunda é dedicada ao corpus, identificando em seu título o tema investigado: "Os limites da realidade." Quanto à questão da representação, procura-se refutar "a afirmação de que a arte seja uma imitação da realidade. Uma releitura da Poética, de Aristóteles, reforçada pela opinião de diversos estudiosos da mesma, permite afirmar que a mÍmese corresponde, isto sim, a uma representação que envolve uma construção em que elementos da realidade são organizados segundo uma verdade criada pela própria obra, de acordo com critérios inerentes a ela. Além disso, através de uma leitura de Kathryn Hume, procura-se afirmar a interação sinestésica quase que permanente dos impulsos realista e da fantasiana literatura, identificando os tipos com que a fantasia se manifesta e as técnicas usadas para sua criação. A primeira parte encerra-se com um exame do relacionamento da literatura com as artes visuais e dramáticas, relações inter-disciplinares que situam este trabalho na literatura comparada.Dentre vários autores cujas obras contribuem para tal fim, destaca-se Martin Esslin, que estabelece os limitesde cada uma das artes dramáticas, identifica contatos delas com a literatura e permite, através de uma leitura de seu estudo sobre o teatro do absurdo, seja estabelecida a evolução que liga Aristóteles a Pinter. O corpus centra-se na obra de Pinterpara o teatro e para o cinema, sem limitar-se a ela,pois são também analisadas obras de outros escritores e cineastas, estabelendo-se aproximações ou contrastes entre elas. No quarto capítulo estão agrupadas obras nas quais desponta a imposição de verdades pela força fisica ou verbal. A luta pelo poder, a expulsão de elementos estranhos, dúvidas sobre a identidade e a inter-penetrablidade arte-vida caracterizam o capítulo seguinte. A ênfase temática do sexto capítulo recai sobre as limitações impostas pela condição humana. Praticamente todas as obras expressam a impossibilidade da existência de certezas absolutas e de uma perfeita distinção dos limites da realidade. Com isso, é possível afirmar não ser o objetivo da arte reproduzir a realidade. Mesmo que o fosse, tal tentativa resultaria infrutífera devido às limitações humanas.

2000

POOLE, Steven. A difícil tradução cinematográfica de Nabokov. O Estado de São Paulo, 10/09/2000

Relata as dificuldades encontradas pelo diretor holandês Marleen Gorris para filmar o romance de Vladimir Nabokov The Luzhin defense, segundo o próprio escritor “uma viagem à mente de desarticuladade um gênio” e seu livro “que mais irradiava calor”

 

PERIN, Jairo. O Tempo e o Vento adaptado: A literatura que se vê. Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC, Dissertação sob orientação de Tânia Regina O. Ramos. 2000.

Esta dissertação tem por objetivo ler a obra O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo, na forma escrita e na adaptação cinematográfica. No texto original a figura gaúcho se reverte e se subverte na troca do espaço rural pelo urbano. Na adaptação, é possível uma outra leitura: o homem gaúcho permanece no meio rural, no campo no pampa. Permitindo uma nova visão da construção do Estado do rio Grande do Sul enquanto Fronteira.

 

DOCTOROV, E.L. Cinema tornou-se a mais forte influência para os romancistas. O Estado de São Paulo, 26/08/2000

2002

CARDOSO, Luiz Miguel Oliveira B. Do romance ao filme: (re)criação em Cântico Final de Vergílio Ferreira. Alceu. Lisboa, v. 2, nº 4, jun. 2002.

A literatura e o cinema enquanto sistemas semióticos com características particulares e distintivas conheceram, ao longo das suas relações, momentos de aproximação, interseção e dissídio. A transposição para o cinema de um texto literário revela não só as dificuldades inerentes à conjugação de sistemas significativos diversos, mas também a tarefa sinuosa de recriação estética em imagem de uma mensagem escrita. A adaptação para o cinema do romance Cântico Final, de Vergílio Ferreira espelha, com singular exemplaridade, linhas de convergência e de divergência entre o texto narrativo e a narrativa cinematográfica. Da comparação entre o romance e o filme nasce uma breve reflexão concernente aos dois sistemas semióticos, revelando ainda questões como a opinião do escritor relativamente ao filme, as dificuldades da adaptação do romance, dada a sua profunda cosmovisão e complexidade ideológica, artística e literária, bem como a liberdade (re)criativa do realizador. (resumo do autor)            

Fonte: <www.ipu.pt/forumedia/ec_6.htm> (07/02/2006)

ANDRADE, João Batista de. Portal dos sonhos. São Paulo: EFSC, 2002.

Portal dos sonhos adquire relevância, tanto para a crítica quanto para o leitor, por permitir uma reflexão sobre a relação literatura-cinema. Poucas formas artísticas estabelecem entre si tantas relações de sentido mútuo, ainda que sujeitas a entreveros e embates, acusações de infidelidade, polêmicas sobre liberdades de criação etc. Até porque são diferenciadas as linguagens e distintos os respectivos códigos e modos de funcionamento: narrativa literária e narrativa fílmica na maioria dos casos contrastam-se. São sempre difíceis as transposições de uma para outra, pois as características intrínsecas do texto literário – elaboração, originalidade, subjetividade, entrelinhas – por princípio não encontram a mesma expressão na narrativa cinematográfica. O livro narra a trajetória de Alexandre, um homem dividido entre as exigências da vida real, o trabalho e a família, e sua capacidade de sonhar. Os descompassos entre os universos real e onírico geram profundo desconforto e angústia em Alex, que acaba por transmitir esse sentimento a Beatriz, sua última filha. O confronto trágico entre as frustrações de Alex e a existência concreta de Beatriz é o fio condutor dessa história, que lida com o sonho, um elemento recorrente no cinema, do expressionismo alemão a Stroheim, de Resnais a Godard. Não poderia ser de outra forma, pois João Batista de Andrade é antes de tudo cineasta – e imprime a Portal dos sonhos o teor, o timbre e o “timing” cinematográfico, e não o literário. A narrativa se faz em quadros e planos, como num filme. Qual diferentes tomadas, utiliza mudanças de foco narrativo (de resto, recurso também comum e genericamente usado na literatura). A narração corre veloz. De uma sequência chega-se a outra sem intermediações, nem explicações. Os personagens são desenhados superficialmente ,sem o esmero e detalhamento descritivo comum à literatura – mas como no cinema, um retratar rápido e sumário (já que o espectador vê), como se o leitor os estivesse vendo em imagem, numa tela de cinema ou de TV, e não delineando-os na imaginação. Assim também a própria ação eas reflexões do narrador aparecem como que anotações geralmente feitas em meio ou à margem do texto de roteiro cinematográfico. Na essência, o texto de Portal dos sonhos não expressa, em sua construção, uma personalidade própria, ficando a meio-caminho entre o cinematográfico e o literário. (Resenha de Mauro Rosso, publicada no Jornal do Brasil, 20/07/2002).

                                                     2003

FURTADO, Jorge. A adaptação literária para cinema e televisão. 10ª Jornada Nacional de Literatura, passo Fundo,RS agosto de 2003

Aborda o tema sob dois pontos de vista: o técnico ou estético e o ético. No primeiro, apesar das muitas diferenças entre a linguagem escrita e a linguagem áudio-visual, elege três diferenças fundamentais: 1- Na linguagem áudio-visual toda a informação deve ser visível. Isto é óbvio, “mas quem já tentou fazer um roteiro sabe como é difícil evitar a tentação de escrever”. No roteiro as palavras abstratas são proibidas: pensa, lembra, esquece, quer ou percebe são muito difíceis de se expressar no cinema. 2- Diz respeito à natureza dessas linguagens, que pode ser analisada a partir de uma frase de Umberto Eco: “toda a narrativa se apóia parasiticamente no conhecimento prévio que o leitor tem da realidade”. O leitor diante do texto imagina sua própria cena de acordo com sua bagagem, sua vivência. Assim, “o escritor nos informa apenas aquilo que ele julga ser necessário, o leitor imagina todo o resto”. Por exemplo, Kafka inicia A  metamorfose com “Ao despertar após uma noite de sonhos agitados Gregor Samsa encontrou-se em sua própria cama transformado num gigantesco inseto”. Na literatura é considerada, talvez, a melhor primeira frase de um romance. Mas no cinema, é preciso fazer a “parte do trabalho do leitor. Qual a cor do inseto? É uma cama de madeira ou de metal? Qual a cor das paredes do quarto? Como é a luz do quarto? ...”. Por esta razão muitos leitores se decepcionam diante das “imagens criadas pelo cineasta e diga: gostei mais do livro”. Um exemplo oposto pode ser visto num livro de Dashiel Hammet, “o mais filmável dos romancistas”. É a descrição de alguém ao entrar numa casa: “Havia duas mulheres na sala. As duas estavam nuas, mas só uma estava morta”. A cena já está pronta. 3- No cinema, como na música, o tempo de apreensão das informações “é definido exclusivamente pelo autor”, enquanto na literatura (ou na pintura) somos nós leitores que estabelecemos o tempo de leitura. Outras diferenças: o cinema é fruto de um trabalho coletivo, a literatura é sempre individual; mesmo a fruição do cinema é coletiva, enquanto na literatura é individual; a linguagem do cinema é intuitiva, não precisa ser alfabetizado para ver um filme;  o cinema conta com outros recursos não utilizados na literatura, como os movimentos de câmera, os enquadramentos, a música, a cor e a luz. “As relações entre o cinema e a literatura são antigas e nem sempre amistosas”. Antes de surgir o direito autoral, em 1910, muitos cineastas roubavam histórias dos escritores. Desde essa época, milhares de livros têm sido adaptados para o cinema. Segundo Ely Azeredo, a Bíblia é o campeão deles; o segundo lugar é de Arthur Conan Doyle, com mais de 200 versões de Sherlock Holmes; o terceiro lugar é Bram Stoker, com o Drácula. Quanto a qualidade das adaptações, vale lembrar que a frase de Alfred Hitchcock: “livros ruins é que dão bons filme” não é inteiramente verdade. Ele disse isso devido a adaptação que ele fez de um conto policial, escrito pelo desconhecido Cornell Woolrich e publicado numa revista barata intitulado Tinha que ser assassinato. Em 1954 Hitchcock transformou o conto no filme Janela indiscreta, que veio a ser um dos clássicos da história do cinema. Existem alguns bons escritores, cujos livros resultaram em ótimos filmes, como Dashiell Hammet, James Cain, James Ellroy, sem contar Shakespeare em pelo menos três grandes filmes: Ran (baseado em Rei Lear) e Trono manchado de sangue (baseado em Macbeth), de Akira Kurosawa, além do Hamlet de Laurence Olivier. “Mas,o certo é que a boa literatura não necessariamente dá bons filmes”. Basta ver William Faulkner, que nunca deu num bom filme e “foi um roteirista medíocre”. Escritores clássicos, como “Kafka, Dostoievski, Cervantes, Proust, Machado de Assis ou Eça de Queirós ainda não entraram para a história do cinema”. O fato é que “a literatura é uma forma de expressão muitíssimo mais complexa que o cinema, não só pelo seu acesso fácil ao inconsciente alheio”. A sua antiguidade lhe confere tal complexidade, tendo muito o que ensinar ao cinema. Algumas lições apreendidas: Homero ensinou o flash-back “e a idéia que cronologia é vício”; Petrônio ensinou “o poder dramático da prosódia e a subjetividade do discurso”; com Dante verificamos “a vertigem dos acontecimentos, a a rapidez para mudar de assunto”; Boccaccio nos deu a “idéia da fábula como entretenimento; Rabelais, “os delírios visuais e certeza de que arte é tudo que a natureza não é”; Montaigne, “o esforço para registrar a condição humana”; Shakespeare, Cervantes e Giotto, a “corporalidade do personagem e o poder da tragédia”.             

 

CASAROTTO, Abele Marcos. O contestado e os estilhaços da bala: liteatura, história e cinema. Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC. Doutorado sob orientação de Lauro Junkes. Agosto de 2003.

O objeto de estudo centra-se na relação entre literatura, história e cinema. A tese é estruturada em dois capítulos: o primeiro institui os fundamentos teóricos entre literatura, história e cinema, considerando o texto como elemento unificador das três áreas do conhecimento; o segundo estabelece relações entre os textos produzidos antes da Guerra do Contestado, depois, os relatórios, o romance Geração do Deserto, de Guido Wilmar Sassi - texto centralizador da discussão - e o filme a guerra dos pelados, de Sy+lvio Back. Os diversos textos são considerados como estilhaços produzidos pela Guerra do Contestado.

 

GOMES, Júlio César B. Imagens, esquinas e confluências : um roteiro cinematográfico baseado no romance O Quieto animal da esquina, de João Gilberto Noll, seguido de anotações. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Doutorado sob orientação de Maria do Carmo A.C. 2003.

      

Este ensaio pretende, de um lado, identificar e descrever os traços dominantes da literatura e das demais poéticas contemporâneas, e, de outro, relatar o processo de transposição de um texto literário o romance O Quieto Animal da Esquina, de João Gilberto Noll para um texto de cinema, o roteiro cinematográfico homônimo, de minha autoria. Menos uma tese acadêmica do que uma tentativa de se constituir como um objeto artístico em si mesmo tanto em sua condição de roteiro, quanto na de uma aproximação eminentemente subjetiva, não científica, de um modo de expressão este ensaio é uma proposta de discussão sobre a rarefação de limites, sobre o diálogo e a interdependência das artes.
    

2005

FRANÇA, Ivo Renato D'Ávila. Memorial de Maria Moura em dupla poética de olhar: do romance à minissérie de televisão. Universidade Federal de Santa Catarina. Dissertação sob orientação de Odília C. Ortiga. 2005.

O presente estudo tem como objeto uma manifestação particular de intertextualidade que se faz pela transposição de um sistema de linguagem característico da expressão literária, um romance, para outro característico da expressão televisual, uma minissérie de televisão. Assim, o corpus da pesquisa e das leituras procedidas configura duas matérias de substancial diferença: uma é produto de uma arte que se utiliza da palavra, e a outra, de imagens e sons. Para perfazer esse corpus, esta dissertação procede a um duplo olhar sobre a natureza de Memorial de Maria Moura, o romance e sua adaptação para a televisão, revestindo de três faces o objeto de estudo: o texto original, de Rachel de Queiroz; o roteiro de adaptação, de Jorge Furtado e Carlos Gerbase; e a produção televisual, na Rede Globo de Televisão, em recorte da performance da personagem Maria Moura. Essa dupla vertente de leitura aborda, primeiro, o processo de adaptação do romance ao roteiro e, depois, o recorte da construção da personagem no romance e na minissérie. Como etapas da tarefa de cumprir esse objetivo geral, este estudo assume na qualidade de objetivos complementares a leitura do romance e sua contextualização, em relação aos demais romances da escritora, e à historiografia e à crítica literárias brasileiras; leitura do roteiro de adaptação; fundamentação teórica da adaptação referida e contextualização de teleficção na televisão brasileira; e as leituras da construção da personagem Maria Moura, no romance, e da performance, na televisão, de acordo com a versão apresentada pela emissora em 94. Entre os resultados obtidos a partir da pesquisa e das leituras realizadas, esta dissertação considera que a transposição de linguagem do romance à minissérie justifica a rubrica adaptação, ainda que estabeleça ora aproximações, ora distanciamentos entre as duas obras, os quais são objeto de leitura conclusiva.

COMINI, Marcelo. O Decamerão sob o olhar de Pasolini: uma pespectiva cinematográfica para Boccacio. Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC. Dissertação sob orientação de Andréa Guerrini. Agosto de 2005.

Este trabalho tem seu foco na análise da adaptação da literatura para o cinema. É através do estudo da adaptação cinematográfica do livro Decamerão, de Giovanni Boccaccio, realizada por Píer Paolo Pasolini, em seu filme homônimo, que essa relação entre literatura e cinema é abordada especificamente.Baseado nas teorias da literatura e nas teorias do cinema configura Boccaccio na literatura e Pasolini no cinema e, dessa forma, situa o Decamerão como manifestação artística. Baseado nas teorias da  adaptação discute as observações relativas à essa adaptação em especial, de maneira a analisar o processo de conversão das palavras de Boccaccio para as imagens do filme de Pasolini. As conclusões dessa transformação do texto em audiovisual servem para corroborar a idéia de que  a adaptação consiste em uma espécie de tradução do  literário para o cinematográfico.

2006

KONZEN, Paulo Cezar.  Ficções Visíveis: Diálogos entre a Tela e a Página na ficção brasileira contemporânea. Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC. Doutorado sob orientação de Tereza V. de Almeida  2006.

Os textos reunidos neste estudo traduzem o esforço em compreender de que maneiras a cultura da mídia marca presença nos processos contemporâneos de socialização. A primeira parte da tese é formada por ensaios distintos a ordenar algumas questões consideradas relevantes para delimitar o campo da pesquisa. A segunda parte é constituída por discussões de natureza mais empírica, a partir das quais pretende-se observar as relações específicas entre escrita literária e cultura da mídia. Para tanto, foram feitas duas obras consideradas amostras significativas deste diálogo: O anônimo célebre, de Ignácio de Loyola Brandão; e Eles eram cavalos, de Luiz Ruffato. Estas obras são importantes para a pesquisa porque adotam em sua construção temática e formal alguns elementos fundamentais relacionados ao cinema, à televisão e à internet, como é o caso da simultaneidade, do multiperspectivismo e da descontinuidade narrativa. O que se busca evidenciar é que tais elementos constituem o que se pode denominar como rede discursiva do século XXI , na qual prevalecem a velocidade, a conectividade e a multilinearidade, definidas como materialidades da linguagem eletrônica simuladas tanto pelo controle remoto da televisão, do videocassete e do DVD como pelo mouse do computador. A partir do trabalho complexo de montagem do que pode ser denominado como "narrativa hipertextual", Luiz Ruffato e Ignácio de Loyola Brandão se credenciam como representantes de diferentes gerações de escritores que procuraram estabelecer uma ponte entre a cultura do livro e a cultura da mídia, compreendidas como etapas da comunicação humana que interagem por meio de recursos expressivos compartilhados para compor leituras significativas da sociedade brasileira neste início de novo século

 

CREUS, Tomas. Do conto ao filme: a transposição narrativa breve ao cinema e seus métodos de transformação. Instituto de Letras da UFRGS. Tese sob orientação de Ubiratan Paiva de Oliveira. 2006.

O presente trabalho explora a questão da interdisciplinaridade e da transposição de obras literárias ao cinema a partir de uma perspectiva inovadora, procurando conjugar a teoria com a prática. Focalizando a adaptação da narrativa ficcional breve ao cinema e os modos em que esta ocorre, o estudo propõe em um primeiro momento uma investigação teórica sobre os conceitos da adaptação e a análise de alguns filmes baseados em narrativas literárias breves: Um passeio no campo, de Jean Renoir, baseado no conto homônimo de Maupassant; O criado, baseado na novela de Robin Maugham; e três versões de contos de Edgar Allan Poe, incluindo Toby Dammit, de Federico Fellini, inspirado pelo conto “Não aposte a cabeça com o Diabo”, e duas obras de Jan Svankmajer, A queda da casa de Usher, inspirado no conto de mesmo título, e O poço, o pêndulo e a esperança, baseado em “O poço e o pêndulo”. Posteriormente, realiza-se um estudo da obra contística de Anton Tchekov e a transformação de um de seus contos, “Um drama”, no filme “O roteiro”, seguido de uma análise comparativa do conto original e do filme realizado.

 

2007

SANTOS, João Manuel dos. Avant-garde, literatura e cinema. Revista Eletrônica O Olho da História. Ano 10, n. 6, 2004 www.oolhodahistória.ufba.com.br (24/01/2007)

“O ensaio revisa as relações entre o cinema e a literatura sob o enfoque da produção teórica da avant-garde na França dos anos 1920. Por outro lado, relaciona os avanços das trocas estéticas européias com a vanguarda brasileira, a partir da postura visionária do Modernismo de Mario de Andrade”. Este resumo do autor não diz muito sobre o conteúdo do ensaio. Mas trata da história do cinema no momento de sua institucionalização como arte. “Os anos vinte foram o período da sedimentação da crítica cinematográfica na França, quando foram formulados os conceitos a se desenvolverem em outros países, inclusive no Brasil”.  Um artigo publicado na revista L’ esprit nouveau, de 1920, intitulado A estética do cinema, fixava algumas leis desta nova estética e fazia menção ao trabalho de Ricciotto Canudo. A ele se deve o batismo do cinema como a “sétima arte” em seu Manifesto das sete artes: “Nós casamos a Ciência e a Arte, eu quero dizer as descobertas e não os dados da Ciência, e o ideal da Arte; aplicando-as uma à outra para captar e fixar os ritmos da luz. É o cinema. A sétima arte concilia, assim, todas as outras”. Amigo de Marinetti, líder do Futurismo, foi influenciado pela estética modernista e logrou identificar a “importância do cinema como linguagem universal e sua relação com outras artes”. A partir desse momento pode-se falar numa linguagem cinematográfica que vem “renovar a escritura”. Canudo reconhece a supremacia dos EUA neste período, “inserindo-a, no entanto no que ele chama de primitivismo”. Os Estados Unidos, país sem tradição cultural, “nasceu esteticamente com a arte da tela”.            

 

FONSECA, Rubem. Cinema e literatura. http://paginas.terra.com.br/arte/dubitoergosum/ar58.htm (17/05/2007)

Ensaio histórico do escritor - que queria ser cineasta - sobre o cinema como arte, a arte completa ou “Gesamtkunstwerk” no dizer de Wagner. Nesta condição é, também, roteirista, tendo escrito roteiros baseados em seus romances ou contos (A grande arte, O caso Morel, Bufo & Spallanzani, Relatório de um homem casado e Diário de um fescenino); roteiros originais (Stelinha e A extorsão) e roteiros baseados em romances de outros (O homem do ano, baseado no livro O matador, de Patrícia Melo). Sua percepção é que fazer roteiro baseado em obra já publicada é mais difícil, mesmo no caso de obras que ele mesmo escreveu. Um roteiro é escrito e reescrito várias vezes. Além disso, outras pessoas participam de sua revisão: o diretor do filme e o produtor. O que se pretende neste processo é realizar uma obra de arte. Wagner, com suas óperas, pretendia atingir a arte completa, englobando a música, a poesia e o drama, a pintura, a arquitetura, a dança. “Estávamos no séc. XIX e se alguma arte poderia megalomaniacamente dizer isso era a ópera”. Inicia a história do cinema com a “lanterna mágica”, surgida no séc. XVII. Era um foco de luz que iluminava placas de vidro pintadas à mão, cujas imagens eram projetadas na parede. Mais tarde - em 1895 – surge o cinematógrafo, inventado pelos irmãos Lumiére. Um máquina “movida a manivela, utilizando negativos perfurados para registrar o movimento”. Em 28/12/1895 já podíamos ver no “Grand Café”, de Paris, a projeção de A saída dos operários das usinas Lumiére, A chegada do trem na estação, O almoço do bebê e O mar, “que deixaram os espectadores atônitos”. São documentários curtos, de dois minutos, sobre a vida cotidiana. O fato marcou oficialmente o início da história do cinema. Faltava incluir o som, que só apareceu no fim da década de 1920. Os primeiros cineastas foram comediantes, tal como Max Linder, que influenciou Chaplin. Em 1903 surge Edwin S. Porter, que inaugurou o “western” com O grande roubo do trem. Em seguida surge dois grandes nomes: George Mellés e David Griffith. O primeiro foi pioneiro na utilização de figurinos, atores e maquiagem, e fez os primeiros filme de ficção: Viagem à Lua e A conquista do Pólo, em 1902. O segundo, tirou a câmera do tripé e usou “a montagem de uma maneira dinâmica e criativa”. Assim, realizou O nascimento de uma nação (1915) e “abriu caminho para a indústria cinematográfica norte-americana”. No ano seguinte, realizou Intolerância e logo depois o cinema passou a ser chamado de a “sétima arte”. Sem dúvida um exagero, pois “não tinha a poesia dos textos falados, nem a música, essas formas de arte da maior importância”. As experiências de sonorização iniciadas por Thomas Edison (1889) seguidas por Auguste Baron (1896) ainda não permitiam a sincronização imagem-som. Mas, em 1907 Lee de Forest inventou um aparelho de gravação magnética em película que permitia tal reprodução simultânea. O aparelho foi adquirido em 1926 pela Warner Brothers, “que produziu o primeiro filme com música e efeitos sonoros sincronizados: Don Juan, de Alan Crosland, e o primeiro com passagens faladas e cantadas: O cantor de jazz (1927), também de Crosland.”. Em 1929 o cinema falado já representava 51% da produção norte-americana, e se espalhou por todo o mundo. “A linguagem cinematográfica teve que ser reformulada”, o que desagradou alguns diretores como Charles Chaplin e René Clair, “dizendo que o cinema não precisava da fala dos artistas”. Mais tarde aderiram, “na obstante o cinema falado de Chaplin ser inferior muito inferior ao que ele fazia antes”. Mais tarde a indústria cinematográfica encontra-se concentrada em Hollywood, onde permanece até hoje, não obstante estar espalhada por todos os continentes. Hoje podemos chamar a sétima arte de “Gesamtkunstwerk”? Não. “O cinema é, por enquanto, uma arte híbrida”. O filme depois de algum tempo fica “datado”. Não se assiste um filme antigo com o mesmo prazer da primeira vez, como acontece com outras artes. “Pode-se ouvir Mozart, ou reler Dom Quixote, ou contemplar a Capela Sistina com o mesmo prazer da primeira visita”. Essa datação sofrida pelo cinema parece ser o problema que exige que esta sétima arte seja sempre renovada. Enfocando a adaptação cinematográfica de obras literárias, o autor ressalta as diferenças entre escrever para o cinema e qualquer outra forma de expressão escrita. Não é só o elemento visual que o diferencia, o investimento é muito grande, o roteiro tem que agradar o produtor, o diretor também interfere e o mais importante: tal investimento tem que agradar o público. O escritor não tem essa preocupação. Lev Vladimirovich Kulechov, que introduziu a arte da montagem e escreveu A arte do cinema, afirma que cinema é basicamente argumento e montagem. O roteirista e o montador são importantes. Porém, não mais que o diretor. O cinema é a sétima arte, é “a maior diversão”, como diz a propaganda, mas ainda não é total. “É uma arte que usa as outras como suportes, da melhor maneira possível”. Provocando, o autor questiona “o que é mais importante como Arte, a palavra escrita - poesia, ficção, teatro – ou o cinema? Qual delas pode atingir um nível de excelência mais elevado? Como exercício, compara as vantagens da literatura e do cinema. As vantagens da literatura são polissemia e participação criativa. O leitor participa da história preenchendo as lacunas deixadas pelo escritor. Sua imaginação complementa a história imaginada por outro. O cinema não permite isso. “O espectador não precisa (nem pode) usar a sua imaginação”. A literatura é mais permanente e tão importante para o cinema que os diretores aconselham os iniciantes a lerem, “por considerarem a leitura importante para o trabalho que fazem. Nenhum escritor aconselha outros escritores a irem ao cinema, por ser importante para o trabalho que fazem”. Vantagens do cinema: Todo mundo gosta de cinema, “exceto alguns ensaístas franceses rabugentos”. Pois mesmo não sendo a arte completa, “é a que mais se aproxima desse ideal, e talvez, um dia, venha a deixar de ser uma arte apenas híbrida para tornar-se uma arte completa”. Para concluir, o autor relaciona alguns filmes melhores e filmes piores do que a obra literária de onde foram baseados. Filmes melhores do que o livro: E o vento levou, dirigido por Victor Fleming, é melhor do que o romance de Margareth Mitchel; O poderoso chefão, de Francis Ford Coppola, é melhor do que o livro de Mario Puzzo e Blade runner, de Ridley Scott é melhor do que o livro de Philip K. Dick  Do androids dream of electric sheep? Quanto a lista dos filmes piores do que o livro, o autor não relaciona por serem muitos. Mas afirma que são quase todos os filmes baseados clássicos da literatura.       

                                                        

SOUZA, Eliane Lage. A linguagem-imagem em João Gilberto Noll. Universidade Federal Fluminense-UFF. Dissertação sob orientação de Lucia Helena. 2007.

Com base nos conceitos sobre a imagem estudados desde a Antigüidade até a atualidade, a presente dissertação analisa algumas produções textuais de João Gilberto Noll que transformam a linguagem numa prática visual denotando correspondências entre texto e imagem. Este processo se efetua sob dois aspectos: o primeiro, procura entrelaçar literatura e cinema, verificando se os procedimentos narrativos utilizados pelo escritor têm a ver com a linguagem cinematográfica. O segundo, tem o intuito de estudar a apropriação das técnicas do filme na composição da escrita ficcional, o que comprovaria a escolha dos textos de Noll para o cinema. A partir de tal proposta é possível comprovar que há de fato na narrativa do autor uma poética da imagem

 

                                         

2008

Texto integral, extraído de:

http://www.cronopios.com.br/site/ensaios.asp?id=3634 (10/12/2008)

Cinema & Literatura: Escritores e Cineastas

Por João Carlos Rodrigues

              Sendo tão diferentes suas linguagens - a da literatura, sugestiva; a do cinema, objetiva - o que acontece quando um escritor resolve dirigir um filme?

Não estamos nos referindo a adaptações literárias ou roteiros cinematográficos feitos por escritores. Nem romances escritos por cineastas. E sim ao resultado de experiências cinematográficas de ficção dirigidas ou diretamente supervisionadas por nomes consagrados da literatura. Não foram poucos os que se aventuraram pela sétima arte, alguns com longa carreira. Pier Paolo Pasolini dirigiu 26 filmes, Marguerite Duras 19, Jean Cocteau 11, Allan Robbe-Grillet 10, Fernando Arrabal e William Burroughs 5, Norman Mailer, Susan Sontag e Paul Auster 4 cada um, Fernando Vallejo 3, Tabajara Ruas 2, Vladimir Mayakovsky, Curzio Malaparte, João Silvério Trevisan, José Agripino e Jorge Mautner um, Lúcio Cardoso deixou o seu inacabado – só para abrir uma lista que promete ser interessantíssima.

 

O cinema não evoca a realidade, como a língua literária; não copia a realidade, como a pintura; não imita a realidade, como o teatro.

O cinema reproduz a realidade: imagens e sons.

Ao reproduzir a realidade, o que faz então o cinema?

O cinema exprime a realidade com a realidade mesma.

 

O texto acima é tirado de La fine dell’avanguardia, de 1966, ensaio de Pier Paolo Pasolini (1922-1975), poeta, dramaturgo, romancista e ensaísta italiano, que, após um curto período como roteirista, transformou-se em cineasta de fama internacional. Importante como esteta e também como teórico. Não vamos analisar aqui sua extensa obra cinematográfica, iniciada em 1961 quando dirigiu Accatone, revoltado com a glamurização imposta pelo star-system de Cinecittà aos seus personagens proletários. Não nos deteremos nem mesmo nos seus principais pontos de excelência (O evangelho segundo Mateus – 1964, Édipo Rei – 1967, Teorema – 1968, Salò ou Os 120 dias de Sodoma – 1975), apesar de PPP preencher totalmente as duas classificações do título deste artigo. No panorama da indústria italiana de cinema, ele introduziu a estética do feio, com atores amadores de dentes imperfeitos, falando em gíria desconhecida pela inteligentsia. É uma espécie de Caravaggio cinematográfico.

              O que nos interessa aqui e agora é o Pasolini pensador. Ainda em meados dos anos 60 ele escreveu o célebre Cinema de poesia, que exerceu enorme influência sobre os jovens críticos e cineastas de então. O texto é bastante complexo e ambicioso, com implicações semióticas e lingüísticas, e não é aqui lugar para desconstruí-lo, mas para nele pinçar o que possa contribuir para esclarecer nossa temática em questão. Grosso modo, PPP afirma que podemos dividir os filmes de ficção como pertencentes aos gêneros cinema-prosa e cinema-poesia.

             O primeiro, onde se enquadra a esmagadora maioria da produção mundial, pretende envolver o espectador num mundo ficcional paralelo, uma outra realidade, para conduzi-lo a uma decisão moral, através de uma história estruturada como os romances de Charles Dickens, em capítulos encadeados, com personagens verossímeis, realistas e coerentes. É o cinema de Griffith, de Jean Renoir, de David Lean, de Martin Scorcese, de Akira Kurosawa, de Luchino Visconti.

O cinema-poesia, ao contrário, não pretende necessariamente contar algo ao espectador, mas exibir-se diante dele. Não se deve esperar uma coerência narrativa, assim como de um poema não se exige que conte uma história, mas sim que possua um ritmo próprio que evoque metaforicamente um sentimento, um pensamento, uma idéia. Um barco bêbado, como diria Rimbaud. É o cinema de Mário Peixoto, de Kenneth Anger, de Stan Brackage, de Glauber Rocha, de Sergei Paradjanov, de Jean Cocteau. Assim como a poesia em relação ao romance, o cinema-poesia - ao contrário do cinema-romance, que busca as massas populares - é só para poucos.

 

           Cocteau (1889-1963), o primeiro dos grandes autores do cinema-poesia, foi um homem dos mil instrumentos: poeta e romancista interessante, dramaturgo de sucesso, desenhista maravilhoso, escultor único, patrono de grandes compositores, homem do mundo, um aristocrata da vanguarda. E (por que não?) cineasta originalíssimo. Dos 11 filmes que dirigiu, quase todos nos introduzem ao mundo onírico dos viciados em ópio, igualmente presente no restante de sua obra, onde o Poeta e a Morte se amam, se odeiam, se fertilizam e se destroem mutuamente. Não existe em toda cinematografia mundial nada parecido com O sangue de um poeta – 1930, Orfeu – 1950 ou O testamento de Orfeu – 1960 (todos lançados no Brasil em DVD). Seu estilo é o contrário do de Pasolini: afetado, exótico, maneirista, artificial, cheio de efeitos especiais, quase pernóstico. Inusitado como um vidro de Lalique. Tem muito a ver com o surrealismo, embora os principais membros desse movimento o renegassem publicamente por serem homofóbicos (a homossexualidade de Louis Aragon só foi revelada muitas décadas depois). O sangue de um poeta foi um escândalo. Seu produtor, o Visconde de Noailles, que também financiou L’âge d’or do Luiz Buñuel, pagou bastante caro esse atrevido mecenato, sendo expulso do elegante Jockey Club de Paris, e tendo as portas de vários salões batidas na sua cara e da esposa. Sua obra prima, Orfeu, encena o mito grego na Paris dos existencialistas, num clima de cinema fantástico, quase ficção científica. Habitué do grand-monde, colaborador de Picasso e Satie, Cocteau, que conheceu pessoalmente Proust, Wilde e Diaghilev, tinha também a generosidade de revelar novos talentos, como os escritores Raymond Radiguet (morto aos 20 anos em 1923) e Jean Genêt.

 

           Genêt (1910-1986) é exatamente o primeiro dos três casos de escritores cineastas bissextos que analisaremos com um pouco mais de detalhe. Sua mitológica biografia foi consolidada de modo definitivo pelo escritor Edmund White. Órfão criado em ambiente rural e repressivo, adolescente infrator internado em casas de correção, prostituto e ladrão, preso e condenado durante a ocupação alemã. Na cadeia escreve livros com imagens barrocas poéticas e cruas, alegóricas, beirando a pornografia. Um desses manuscritos vai parar nas mãos de Cocteau, que já nas primeiras páginas pressente um gênio marginal. O poeta, usando toda uma rede de influências homossexuais nas altas esferas do poder, conseguiu evitar que o ladrãozinho escritor fosse conduzido a um campo de trabalhos forçados na Alemanha nazista. Depois da guerra, Genêt, por ser reincidente, correu o risco de ser condenado à prisão perpétua. E foi novamente Cocteau, juntamente com Sartre, quem encabeçou o manifesto ao presidente da república pedindo anistia para ele, finalmente concedida.

Entre 1944 e 49 Genêt escreveu cinco romances e uma peça de teatro ambientados no submundo das ruas e das prisões. Libertado, trabalhou como dialoguista para um filme de prisão masculina, que terminou cancelado. Essa parece ser a origem de Un chant d’amour filme que dirigiu em 1950 de modo semi clandestino. Filmado num bosque nas cercanias da residência de Cocteau (sempre ele!) em Milly-la-Forêt, e na boate parisiense La Rose Rouge. Na produção executiva, um grego etíope, Nico Papatakis, velho companheiro de pequenos golpes (roubo de antiguidades ou extorsão a velhos homossexuais) no baixo mundo parisiense. Na fotografia, Jacques Natteau, futuramente consagrado. No elenco, ex-presidiários anônimos e outras flores da marginalidade, incluindo o belo Lucien Sénemaud, um dos amantes do diretor. Foram filmados 45 minutos, reduzidos a 25 depois da montagem final. Sem som.

Un chant d’amour fecha a primeira fase da carreira de seu autor (1944-50), de temática marginal, que também inclui Nossa Senhora das Flores, O milagre da rosa, Querelle, O diário de um ladrão, Pompas fúnebres e Alta vigilância. Com a exceção dessa última obra, escrita para o palco, todas as outras são romances. A fase seguinte (1949-1963) marca o seu afastamento de Cocteau e Sartre, cujo volumoso ensaio filosófico São Genêt – comediante e mártir parece tê-lo deixado temeroso de estar sendo aceito pela sociedade estabelecida. É composta de cinco peças de teatro metafóricas e políticas, muito distantes de qualquer tipo de realismo: As criadas, O balcão, Os negros e Os biombos (e mais as inéditas em vida Esplêndidos e “Ela”, o papa). São clássicos do Teatro da Crueldade. Genêt então abraça a militância de extrema esquerda: defende os Sete de Chicago (intelectuais presos em 1968 ao protestar contra a Guerra de VietNam), interessa-se pelo grupo radical americano Panteras Negras, ataca o racismo francês contra imigrantes árabes. E, depois de um longo silêncio de mais de 20 anos, publica O cativo amoroso, de 1986, misto de reportagem e diário sobre o Movimento de Libertação da Palestina. Morreu pouco depois. Sua obra é de difícil adaptação cinematográfica, e o único filme digno dela é Querelle, de Fassbinder, de 1982.

De que trata Un chant d’amour? Um guarda penitenciário observa, do pátio da prisão, a tentativa frustrada de dois prisioneiros de entrar em contato físico, mesmo indireto, passando um buquê de pequenas flores pelo lado de fora das janelas gradeadas, pendurado num barbante. Numa cela, um jovem detento (Lucien), camiseta de Marlon Brando em Um bonde chamado desejo, dança, acariciando seu próprio corpo e a tatuagem que traz no ombro. Ao lado, um árabe peludo e de meia idade bate na parede em busca de companhia, abraça e beija a parede com tesão, seu pau duro batendo nos tijolos. Lucien faz ouvidos moucos. O Guarda surge no corredor, preocupado em não ser visto, e espiona cela por cela. Um preso está mijando, outro se masturba, um se ensaboa no banho, um negro dança e se esfrega no colchão, Lucien cutuca as unhas sujas dos pés. O voyeur se detém nele mais detalhadamente, que parece perceber e faz caras e bocas provocadoras. Bate na parede, como um aviso de que agora deseja companhia. Enfia um canudo de palha por um buraco na parede, e com o Árabe do outro lado, troca fumaça de cigarro, numa seqüência altamente sugestiva de um ato sexual. O Guarda fica perturbado com o que vê, e, por sua vez, sonha com cenas de sexo explícito masculino. Puxa o revólver e entra na cela do Árabe, que espanca de cinturão, sem encontrar resistência. Este, por sua vez, sonha que está num bosque com Lucien, que lhe oferta o ramalhete de flores que traz dentro da cueca. Flores que são cheiradas pelo companheiro em êxtase. O Guarda sai da cela do Árabe, mas retorna e enfia o revólver na sua boca, numa evidente alusão de sexo oral. As cenas explícitas do sonho do guarda se intercalam com as cenas românticas do sonho do Árabe. O filme termina no mesmo pátio onde começou, o guarda olhando as tentativas do preso em pegar as flores do outro, em vão. Mal vira as costas, o preso pega o ramalhete. Fim.

O filme tem o mesmo título de um velho poema do autor dedicado a Lucien, e citações diretas de outras obras suas publicadas anteriormente, como O milagre da rosa e Alta vigilância, também passadas numa prisão. Edmond White nota que o episódio do canudinho de fumaça pode ter sua origem em A colônia penal, uma das obras primas de Kafka. Mas a inspiração cinematográfica é sem dúvida o curta metragem Fireworks, de 1949, do adolescente californiano Kenneth Anger, um dos pais do cinema underground. Anger filmou a violação de um jovem (ele mesmo) por um grupo de marinheiros, utilizando uma linguagem simbólica que lembra Cocteau, que logo apadrinhou o filme e importou o diretor para Paris. Genêt com toda certeza o assistiu. A fotografia preto e branca de Un chant d’amour e a ausência de som valorizam muito o rosto humano, e os personagens surgem quase como esculturas, ou desenhos em alto contraste. Uma trilha sonora composta em 1973 pelo compositor de vanguarda Gavin Bryars é boa e tenta ser discreta, mas em determinados momentos altera a obra, por dramatizar o que antes era mostrado com impiedade e crueza. Isso fica muito claro quando o Guarda chicoteia o Árabe e depois enfia o revólver em sua boca. Melhor estava como foi concebida. Outro traço marcante, mesmo sendo um lugar comum no cinema-poesia, é a não diferenciação entre sonho e realidade. Ou melhor, o embaralhamento do sonho com a realidade. O que assistimos pode se passar apenas na cabeça do Guarda, ou ser uma narrativa na terceira pessoa intercalada com os sonhos do Guarda e do Árabe, e Lucien pode existir apenas nos sonhos dos outros, ou não, ou todas essas coisas ao mesmo tempo, ou tanto faz. Assim é, se nos parece.

A trajetória do filme é peculiar. Logo nas primeiras exibições privadas ficou claro que se tratava de um escândalo e não teria lançamento comercial. Genêt e Papatakis, que esperavam retorno financeiro, tiveram uma recaída nas falcatruas da marginalidade e venderam cópias para três colecionadores de obras eróticas, cada um acreditando que comprava um exemplar único. A obra permaneceu desconhecida por muito tempo, pois em 54 a pressão dos moralistas fez recuar até a poderosa Cinemateca Francesa, que pretendia exibi-la. Dez anos depois, nos Estados Unidos, o cineasta e crítico Jonas Mekas e o produtor Saul Landau foram presos e processados por possuírem cópias, e a Suprema Corte o declarou obsceno. Só foi liberado em 1975, quando Papatakis o inscreveu a revelia num concurso estatal como se fosse obra recente, e foi premiado. Genet recusou o prêmio e rompeu com o velho amigo. O filme logo se tornou um cult gay, entre outras coisas por exibir uma meia dúzia de genitálias masculinas em estado de excitação. Genêt, que considerava o movimento homossexual essencialmente burguês, chegou a renegá-lo por causa disso. Mas Un chant d’amour permanece como uma obra única e muito representativa do seu mundo ficcional.

Confira. Veja o filme em http://www.ubu.com/film/genet.html

 

 Viremos essa página e passemos agora a outro autor.

 

A rigor, Film não pode ser considerado como “dirigido” por Samuel Beckett (1906-1989), pois é assinado por Alan Schneider, um diretor de teatro e TV especializado em sua obra. Mas, destrinchando a sua gênese, vemos não ser gratuitamente que é conhecido como “o filme de Beckett”. Recapitulemos.

Quando em 1963 o célebre irlandês - ex-secretário e amigo de James Joyce, ex membro da Resistência Francesa aos nazistas - recebeu essa encomenda do Evergreen Theatre, já era um autor consagrado. O principal de sua obra (escrita ora em inglês, ora em francês) já estava publicado, tanto os romances (Molloy e Malone morre, de 1951, O inominável, de 53) quanto as célebres peças do “Teatro do Absurdo” (Esperando Godot – 1952, Fim de jogo – 1957, A última gravação de Krapp – 1958, Oh que belos dias! – 1961, Peça - 1963). Nestas domina o inusitado: dois vagabundos esperam alguém que não vem, um velho contracena com um gravador, personagens enterrados na areia até o pescoço ou dentro de vasos só com a cabeça de fora, etc. Sua temática da solidão, da degenerescência física e da incomunicabilidade se manifesta em textos cada vez mais concisos e minimalistas, de grande beleza plástica, e com rubricas detalhadíssimas . O Prêmio Nobel de Literatura viria em 1969.

Beckett sempre se interessou por cinema. Em 1936 chegou a escrever para Eisenstein e Pudovkin se propondo a estudar com eles em Moscou (então em plena repressão stalinista), projeto que foi cancelado com o início da Segunda Guerra. Há informações que foi um cinéfilo dedicado, especialmente à fase do cinema silencioso, amante das comédias malucas. Assim, imediatamente aceitou a proposta do Evergreen, e convidou Schneider (a quem não conhecia pessoalmente, só de reputação) para trabalhar junto nesse projeto, inicialmente intitulado O olho. Levava tão a sério a empreitada que para tanto fez sua primeira (e única) viagem aos Estados Unidos.

A pré-produção durou um ano. De início, um roteiro de seis páginas, cheio de diagramas e intenções. Previsão de duas câmeras, com dois pontos de vista diferentes, um objetivo (correspondendo à narração na terceira pessoa da literatura), outro subjetivo (narrador na primeira pessoa). Como fotógrafo, o genial Boris Kauffman, irmão de Dziga-Vertov, ex-colaborador de Jean Vigo e Elia Kazan. Para fazer o protagonista, depois de cogitar-se do irlandês Patrick McGowan (vide Cul de sac e A dança dos vampiros, de Polanski) e até mesmo Charles Chaplin, decidiu-se por outro grande cômico, Buster Keaton, cuja carreira entrara em crise desde o advento do som. A admiração de Beckett por ele era ilimitada e uma das teorias sobre a origem de Esperando Godot cita a comédia The lovable cheat, de 1949, adaptação de Mercadet le falseur, de Balzac, onde o ator interpreta um personagem chamado Godeau, que espera alguém que não chega nunca. Segundo o depoimento de Schneider, o encontro entre os dois foi “monossilábico”. Mas o que esperar, sendo um o papa do minimalismo, e o outro uma estrela do cinema silencioso? As filmagens aconteceram em abril de 1964 (58º aniversário de Beckett), no Greenwich Village em Nova York. Ele esteve presente todo o tempo “pragmático, cordial, colaborador, sem reclamar”.

           “Ser é ser percebido” é a frase beckettiana que melhor define Film, que também pode se encaixar na seguinte fala de Fim de jogo: “Nada é mais cômico do que a infelicidade.”  

           Film abre com o close de um olho enorme, aparentemente humano, cercado por pálpebras enrugadas como as de um lagarto pré-histórico. Corta para paredes carcomidas e um grande muro, ao longo do qual se esgueira um ser embuçado, sempre com o rosto oculto para o espectador. Aos trambolhões, esse personagem causa espanto e horror às três pessoas com quem cruza no caminho de casa: duas na rua, outra na escada do velho edifício onde ele se esconde. Mais de uma vez consulta no próprio pulso a pressão arterial. Já em casa, tira casaco e cachecol, e, sempre sem ver o seu rosto, percebemos que é um homem velho, que, demonstrando um medo pânico de ver sua imagem refletida, cobre com panos pretos um espelho e os vidros da janela. Uma foto na parede é destruída: trata-se de uma famosa estátua da civilização de Creta, tida como a primeira cultura do nosso mundo ocidental. Há uma seqüência típica das comédias loucas dos anos 20, quando ele tenta botar pra fora de casa um gato e um cachorro, um de cada vez, e sempre que abre a porta, o que já estava fora corre para dentro. Isso se repete mais de uma vez, não como uma situação cômica, mas como uma terrível agonia. Também uma gaiola de papagaio e um aquário com peixinho dourado são cobertos, como se todo ser vivo tivesse de ser subtraído do ambiente. Os planos subjetivos são levemente embaçados, como através da visão de um olho com catarata, enquanto os da câmera objetiva são nítidos e cristalinos, refletindo a clareza racional do autor. Finalmente só, refastelado numa cadeira de balanço, o homem folheia um álbum de fotos de família, rasgando uma a uma. Vê então a própria imagem o encarando, impiedosa: reconhecemos agora Buster Keaton, velho e decrépito. Espanto e pavor. Mímica de um grito (note-se que o filme é mudo). Será uma citação do famoso quadro de Münch? Créditos finais: a film by Samuel Beckett, etc etc e tal.

           Finalizado com a duração de 24 minutos, Film foi ignorado pelo circuito novaiorquino de cinemas de arte até ser exibido no Festival de Cinema de Nova York de 1965, onde recebeu excelentes críticas. Realmente é um trabalho bastante interessante e diferente de quase tudo que se vê nas telas. E sem nenhum recurso teatral, inteiramente cinematográfico. Nesse mesmo ano Beckett assinou a direção de Ei, Joe , seu primeiro especial para televisão, que guarda vários pontos de contato com nosso filme em questão, pois mostra outro homem isolado num quarto, desta vez atormentado por uma voz que sai de dentro de sua própria cabeça. Futuramente ele dirigiu mais uma meia dúzia de peças para teatro ou TV. Mas tudo começou com Film.

Confira. Veja o filme em http://www.ubu.com/film/beckett_film.html

 

Viremos a página mais uma vez...

 

Kimitai Hiraoka (1925-1970) passou a infância sob a influência aristocrática e super protetora da avó paterna, que não o deixava apanhar sol ou praticar esportes. Aos 12 anos foi morar com o pai autoritário, que o proibia de escrever por achar literatura uma atividade “pouco masculina”. Mas era isso que o garoto mais queria e, estimulado pelos professores, iniciou-se muito cedo na arte da poesia, adotando o pseudônimo de Yukio Mishima.

Educado durante o governo militarista e autoritário que levou o Japão ao desastre da Segunda Guerra, Mishima foi admirador, e posteriormente protegido, do romancista Yasunari Kawabata, futuro Nobel em 1968. Formou-se em economia aos 22 anos, mas abandonou uma promissora carreira burocrática no Ministério das Finanças para dedicar-se à literatura. No ano seguinte, seu romance Confissões de uma máscara foi consagrado pela crítica e público japoneses, e ele se tornou uma celebridade. Seguiram-se Cores proibidas – 1953, O templo do pavilhão dourado-1956, além de sua derradeira obra prima, Mar da fertilidade, escrita na já segunda metade dos anos 60. Some-se um sem número de peças teatrais, algumas modernas, outras tradicionais nos estilos Nô ou Kabuki. Apesar das evidentes tendências homossexuais expressas desde os primórdios em toda sua obra (entre elas atração física por São Sebastião, um ícone gay, que interpretou num ensaio fotográfico seminu), casou-se em 1958 e constituiu família. É a partir dessa época que passa a praticar ginástica e artes marciais, aproximando-se da ideologia fascista e militar do “Grande Japão”.

O relacionamento de Mishima com o cinema japonês, que depois da Segunda Guerra entrou num período de apogeu artístico e industrial, é precoce e multifacetado. Teve 10 obras adaptadas para a tela, entre elas O templo do pavilhão dourado, filmada por um cineasta importante (Kon Ichikawa) em 1958 com o título Enjo/Conflagração. Dois anos depois, apresentou-se como ator no policial Medo de morrer, de outro diretor bem acima da média, Yasuzo Masumura. Foi este que em 1966 possibilitou-lhe, nos Estúdios Daiei, dirigir em apenas dois dias, Yakoku (Patriotismo), mais conhecido como Rito do amor e da morte. 30 minutos. Fotografia em preto e branco do veterano Kimi Watanabe, antigo colaborador de Teinosuke Kinugasa, um dos primeiros cineastas japoneses a ser premiado internacionalmente. Co-direção (na realidade uma mera assistência técnica) de Domoto Masaki. Interpretação do próprio Mishima e da atriz Yoshiko Tsuruoka. Adaptado do conto Patriotismo, publicado por ele no mesmo ano. A melhor sinopse do filme são os seus dois parágrafos iniciais:

Em 28 de fevereiro de 1936, no terceiro dia do incidente de 26 de fevereiro, o tenente Shinji Takeyama, do Batalhão de Transportes, profundamente perturbado ao saber que seus amigos mais próximos estavam entre os amotinados, e indignado diante da perspectiva iminente de um ataque de tropas imperiais contra tropas imperiais, sacou sua espada de oficial e cortou as entranhas na sua residência no distrito de Yotsuva. Sua esposa Reiko o seguiu, apunhalando-se até a morte.

           A  nota de despedida do tenente consistiu de uma única frase:”Vivam as forças imperiais!”. A de sua esposa, depois de pedir perdão a seus pais por precedê-los no caminho da tumba, concluía: “Chegou o dia da mulher do soldado”. Os últimos momentos desse heróico e abnegado casal fizeram os deuses chorar. É importante destacar que a idade do tenente era de 31 anos e de sua esposa, 23. Estavam casados há apenas 18 meses.”

O tal incidente de 26 de fevereiro de 1936 foi uma insurreição de jovens oficiais das Forças Armadas, que tomaram os quartéis generais do exército e da polícia, assassinando altas autoridades do governo. O próprio primeiro-ministro sofreu um atentado, e uma invasão do palácio imperial foi impedida com dificuldade. Protestavam contra a situação econômica e o governo parlamentar, pregando a substituição do imperador Showa Hiroíto (considerado “moderno” e “ocidentalizante”) pelo seu irmão caçula, um tradicionalista. A repressão foi implacável. Dois rebeldes fizeram haraquiri e 19 outros foram presos e executados. A intentona durou apenas três dias. Foi um confronto entre duas facções do fascismo japonês, poucos anos antes de sua adesão ao Eixo, ao lado de Hitler e Mussolini.

           Como filme, Rito do amor e da morte se destaca por um belo grafismo, e pela violência explícita das imagens. Dividido em cinco partes, cada uma precedida por um trecho escrito que resume o que virá  a seguir, sem diálogos, o filme se passa num palco Nô, desprovido de cenário (com a exceção de poucos objetos de cena e um grande pôster que domina tudo, onde se lê: Patriotismo). Esses trechos escritos, na versão japonesa são apresentados numa requintada caligrafia, em panorâmicas que fazem o movimento da esquerda para a direita, como deve ser feita a leitura do idioma japonês. Na versão distribuída nos Estados Unidos, a mais divulgada do Ocidente, os letreiros são traduzidos, porém escritos numa caligrafia pouco caprichada, e apresentados de modo vertical, como acontece com as línguas ocidentais. Parece um pequeno detalhe, mas altera bastante a estética do conjunto. Seria melhor o uso de legendas.

Por ser a adaptação cinematográfica de uma obra literária por seu próprio autor, e não uma história original (como Un chant d’amour e Film), Rito do amor e da morte permite considerações interessantes sobre a passagem de uma mídia para outra. Uma coisa é lermos que o casal suicida fez amor pela última vez, “de modo puro e apaixonado como um ritual realizado diante dos deuses”. Outra coisa é assistirmos às estilizadas cenas de sexo entre os dois, com belíssimos detalhes do corpo humano que lembram paisagens paradisíacas. Uma coisa é lermos a descrição do harakiri do tenente. Outra muito diferente é vermos suas entranhas sendo dilaceradas e seus intestinos  saindo através da ferida. A visão do sangue espirrando na parede é muito mais forte do que sua descrição escrita. Se o conto possui um clima poético e delicadamente nostálgico, o filme é emoção pura (realçada pelo uso na trilha sonora de trechos de Tristão e Isolda de Wagner) e sua poesia não é delicada, porém próxima da tragédia. Uma de suas melhores qualidades está na extraordinária interpretação da atriz (que não seguiu carreira profissional), que desde o primeiro fotograma exibe uma aura de resignação e felicidade diante de seu destino implacável. Aqui o personagem da esposa torna-se protagonista absoluto, e não erraram os poucos críticos que perceberam um aspecto quase feminista, bem menos visível no texto do conto.

Apresentado pela primeira vez na França, durante o Festival de Tours, Rito do amor e da morte foi “descoberto” pela crítica e tornou-se um sucesso de bilheteria em todo Japão. Sua fama, apesar de suas evidentes qualidades cinematográficas, entretanto, vem mais da terrível ligação com a morte trágica do autor quatro anos depois, da qual o filme parece ser um ensaio estético e uma premonição.

Já vimos como Mishima cada vez mais se aproximou da extrema direita. Não é um fato incomum em homossexuais que reprimem suas tendências. Em 1968 fundou a Takenokai (Sociedade da Armadura), cujos membros eram majoritariamente estudantes secundários nostálgicos de um Japão militarista e tradicional. Notemos que o grupo foi criado exatamente no ano em que em todo o mundo havia uma mobilização de estudantes de esquerda contra os poderes constituídos. Estavam na contramão da História. Numa tentativa de repetição do golpe de 1936, inspiração do conto e do filme, em 25 de novembro de 1970, um punhado de membros da Takenogai, comandados pelo escritor, tomou o quartel general das forças armadas e seqüestrou o comandante em chefe. Mishima faz um discurso aos soldados, incitando uma reação armada para restaurar o prestígio sagrado do império do Sol Nascente. Mas os tempos tinham mudado. Para surpresa sua, foi recebido com vaias e ridicularizado. Resolve então fazer o harakiri. Seu amante e principal discípulo, no entanto, falhou na função de decapitá-lo ritualmente, e para evitar sua agonia, um terceiro homem completou o serviço e ajudou o suicídio do segundo. Depois de cumprir pena, esse sobrevivente transformou-se em monge budista e está vivo até hoje, cumprindo um voto de silêncio perpétuo. Um rito de amor e de morte que horrorizou todo mundo intelectual. Um ato de extrema coragem e patriotismo démodé.

Confira. Veja o filme em http://www.ubu.com/film/mishima_rite.html

Depois da tragédia, a viúva ordenou a destruição de todas as cópias, mas o negativo foi preservado. Só depois de 2005, quando ela morreu, voltou a circular. Já então o prestígio de Mishima como grande escritor estava assegurado internacionalmente, assim como sua movimentada biografia. Tema, em 1985, de uma superprodução caprichada de Hollywood, dirigida por Paul Shrader, com trilha sonora de Philip Glass e produzida por Francis Coppola e George Lucas.

 

 

Epílogo.

 

A oportunidade de assistir os filmes aqui comentados, ao lado de seus próprios comentários, possibilita comprovar algumas observações interessantes.

A primeira delas é a ausência de diálogos em obras dirigidas por expoentes da literatura, atividade que sempre nos remete à palavra (mesmo escrita). Isso denota uma perfeita compreensão da linguagem audiovisual, o que não acontece sempre com a obra de outros escritores-cineastas (notadamente Robe-Grillet e Duras), onde fala-se pelos cotovelos e a imagem é pouco expressiva, embora bela. Outro fato interessante é os três filmes possuírem uma narrativa aparentemente linear, buscando uma comunicação com o espectador, ao contrário dos experimentalismos semi-amadorísticos dos curtas de Burroughs, por exemplo, que afugentam qualquer cinéfilo não iniciado. Mas estão igualmente distantes da linguagem mais tradicional do cinema-romance, adotada pelo cinema de Malaparte ou Vallejo.

Na verdade, Un chant d’amour revela perfeitamente o erotismo da poesia feita de dejetos humanos que caracteriza a obra de Jean Genêt; Film é altamente representativo do absurdo mundo ficcional de Samuel Beckett; e Rito do amor e da morte o perfeito testamento de Yukio Mishima, cheio de sangue e de fúria. Três grandes escritores que realizaram três pequenos grandes filmes.

Como queríamos demonstrar.


 

João Carlos Rodrigues nasceu no Rio de Janeiro, é jornalista e pesquisador. Entre seus livros publicados destacam-se O negro brasileiro e o cinema; João do Rio/Catálogo bibliográfico/1899-1921 e João do Rio: uma biografia. Para realizar este último recebeu em 1993 uma Bolsa Vitae de Literatura. Escreve ficção sob o pseudônimo de Jango Rodrigues, e tem um livro inédito de contos, Criaturas que o mundo esqueceu. E-mail: jcrodrig@terra.com.br

                                                       2011

BOLOGNINI, Carmen Zink (org.), A leitura no cinema. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2011.

Voltados para professores e alunos de Ensino Médio, os livros da Série Discurso e Ensino trabalham com a análise de diversas materialidades da linguagem, demonstrando como os sentidos são produzidos.  Neste quarto livro da série, os autores se propõem a analisar a representação da leitura e do leitor em filmes. Além de apresentarem a relação entre a literatura e a produção cinematográfica, eles também investigam, em filmes que alcançaram audiência considerável, a maneira pela qual muitos personagens têm seu processo identitário marcado pelo seu investimento em leitura, ou seu deslocamento nas relações de poder da sociedade determinado pela leitura. As análises apresentadas das diversas formas de linguagem têm caráter interdisciplinar, pois promovem o diálogo entre história, filosofia, ética e língua portuguesa.

 

2012

TARDIVO, Renato. Porvir que vem antes de tudo: literatura e cinema em Lavoura Arcaica. São Paulo: Ateliê Editorial, 2012.

O livro nos oferece uma leitura original do díptico Lavoura Arcaica na qual livro (1975) e filme (2001) compõem um jogo peculiar de identidade e diferença. Renato Tardivo promove uma convergência entre psicanálise e fenomenologia para analisar e interpretar essa relação, expondo enfim a lógica de uma clausura e tornando claro que, se é trágico o desenlace, o essencial está aí, nessa lavoura que se volta sobre si mesma, trava o processo de constituição do sujeito pela recusa da alteridade; pela negação, portanto, da condição dialógica, intersubjetiva, do estar no mundo.

TABUCCHI, Antonio. Cine y literatura: un siglo de relacione Lo que hoy escribimos se lo debemos en gran parte al cine.   

www. um.es/campusdigital (1/07/2012)

El cine y la literatura son hermanos: los dos cuentan historias. Uno lo hace con las palabras y el otro con las imágenes. Al cine le corresponde la décima musa, y de las diez musas, cine y literatura son las más cercanas. En ambos casos se trata de contar una historia. El cine ha influido profundamente en la manera de contar del siglo XX. La modernidad de la literatura, es una manera muy distinta a la que se escribía en el siglo XIX. La literatura del siglo XX tiene una especificidad que el siglo XIX no tenía. Ahora no podemos pensar en Balzac o Tolstoy. Lo que hoy escribimos en nuestras novelas, en nuestros cuentos, se lo debemos en gran parte al cine. El cine ha influenciado muchísimo la narración del siglo XX. Ahora no necesitamos de la descripción. Si se toma una novela del siglo XIX nos presentan al héroe describiéndolo detalladamente. Ahora esto no se hace, porque el cine es de tal manera más eficaz, que la literatura prescinde de ella. Afortunadamente, porque las páginas descriptivas son las más aburridas de las novelas antiguas, pero entonces tenían que hacerlo. Otra cosa que ha cambiado es el corte temporal. Mi abuela, por ejemplo, me decía que no le gustaba el cine porque cuando el enamorado cerraba la puerta de su casa, ya estaba en la casa de la novia. En el teatro tenía que recorrer todo el escenario, y en la novela del siglo XIX tenía que hablarse de que el señor salía con el caballo y describir el paisaje, pero no así el cine. Eisenstein nos enseñó con el montaje que no había que relacionar las acciones temporalmente sino en un circuito de ideas. Las lecciones de montaje de Eisenstein son ejemplares.

 

 

 

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