Volta para a capa
Bibliografia
Literatura e Psicanálise

                                                  1967

LEITE, Dante Moreira. Psicologia e literatura. 2ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional / Editora da Universidade de São Paulo, 1967.

Na introdução a este ensaio, o autor discute a psicologia como perspectiva para o estudo da literatura. Para isso, apresenta as teorias de Freud, Jung e dos gestaltistas como aquelas que mais de perto se referem à análise da criação e contemplação da obra literária. Na primeira parte, estuda o processo criador na literatura e mostra até que ponto se assemelha ao processo criador nas ciências, ou dela se distingue. Para isso foi levado a discutir os vários níveis de gosto na literatura, bem como o papel da crítica e dos movimentos de vanguarda. Finalmente, sugere um paralelismo entre a descrição psicanalítica e a descrição romântica, e entre a descrição gestaltista e a descrição clássica. Na segunda parte, discute a análise psicológica do texto. Depois de uma introdução teórica, onde sintetiza as análises sugeridas pelos gestaltistas, por Freud e por Jung, passa para uma análise concreta da ficção brasileira. Seleciona Lucíola e Senhora, Dom Casmurro e Campo Geral e mostra como um problema - a relação entre amor e dinheiro, entre dinheiro e ascensão social - é descrito por José de Alencar, Machado de Assis e Guimarães Rosa. Na terceira e última parte, o autor discute, de um ponto de vista psicológico, a situação do leitor e do público. Aqui, os processos mais interessantes referem-se à percepção, saciedade, fantasia, influência da leitura, sentido da ficção para o leitor. Embora os problemas aqui tratados pareçam desconexos, Dante Moreira Leite utiliza os conceitos de equilibrio e desequilibrio - tal como foram sistematizados por F. Heider em outro campo da psicologia - para relacionar processo criador, análise de texto e reação do leitor. Essa indicação sugere que o livro é de grande intersse para os estudiosos de psicologia, pois procura aplicar essa ciência a um domínio muito significativo da experiência humana, bem como para todos os que se interessam pela literatura, uma vez que sugere novas perspectivas para a análise e a compreensão da obra literária.

 1970

MARTINS, Cyro A criação artística e a psicanálise. Porto Alegre: Sulina, 1970.

Os que ainda hoje combatem, através da omissão ou da ironia, a aplicação da psicanálise como instrumento de pesquisa do sentido profundo de obras literárias, pretextando que invariavelmente os analistas ressaltam no núcleo da obra em estudo a presença do Complexo de Édipo, quando não o fazem por racionalização, nos estão alertando, a nós analistas, contra o perigo das interpretações estereotipadas, empobrecedoras do trabalho intelectual, científico ou crítico, na acepção literária do termo. Partindo do pressuposto de que é verdade, como tão proeminentemente o destacou Freud e como todos os analistas podem verificá-lo na sua atividade prática do dia-a-dia, que o Complexo de Édipo é o núcleo fundamental de todas as neuroses, não é menos verdadeiro que a elaboração desse complexo varia conforme as circunstâncias que envolvem a cada indivíduo, moldando tanto o caráter quanto os quadros clínicos das neuroses, das psicoses e das perversões. Assim, os estudos psicanalíticos de obras de ficção e de arte em geral, que se restringem à busca dos conteúdos pulsionais, numa perigosa simplificação, correm o risco grave de se monotonizarem, pela repetição dos eternos achados. Não se poderá, pois, omitir o ensinamento de Buffon de que "o estilo é o próprio homem", frase, essa, bastante desgastada pelo uso excessivo e indiscriminado, mas válida ainda, sempre que tentamos caracterizar um autor. Com efeito, é através da apreciação da forma, da investigação minuciosa de sua finalidade funcional, que os críticos chegam à individuação do escritor. Provavelmente, na maioria das vezes, essa pesquisa se processa num plano pré-consciente, enquanto lemos.

A individuação é o fruto da elaboração pessoal das vicissitudes edípicas. E essa elaboração, com êxito ou apenas uma tentativa, é o que constitui o objetivo primordial da análise aplicada à literatura e à arte. Parece incontestável a analogia entre caráter e estilo.

Atualmente, o acúmulo de dados clínicos, obtidos da própria fonte, que é a situação analítica, por cerca de seis mil investigadores, organizados em sociedades científicas na maioria dos países ocidentais, dispensa, embora não despreze, a contribuição dos gênios da psicologia intuitiva. A psicanálise de hoje, firmemente instituída, como associação científica e como corpo de doutrina psicológica com seus marcos teóricos de referência bem definidos, já não precisa apelar, como nos tempos heróicos, para o testemunho dos gênios da ficção, em socorro de algumas de suas hipóteses. Entretanto, embora escasseiem cada vez mais os trabalhos de análise aplicada nas revistas de psicanálise, de longe em longe tomamos um ou outro aspecto de uma grande obra, para focalizá-la de um ângulo que escapa ao domínio do crítico literário e dessa forma responder às nossas e às perplexidades dos leitores, e não para empobrecê-las com diagnósticos clínicos e com sentenças científicas, como não raro insinuam.

" A criação artística e a psicanálise" tornou-se, nas últimas décadas, um dos temas mais sedutores de ensaios específicos da cultura ocidental. A ele periodicamente voltam analistas conhecedores de arte e literatura ou críticos versados em psicanálise. Os estímulos para essas especulações, quer se originem na vertente analítica ou na literária, são fundamentalmente os mesmos: o enigma que a personalidade do artista representa pela sua sagacidade inventiva no plano estético e que o singulariza na sociedade; a esperança de que a visão em profundidade da psicanálise ilumine esse abismo. Portanto, estamos diante de um enigma e de uma esperança!

Os mestres intuitivos da psicologia - filósofos, escritores, poetas, artistas em geral - vêm dizendo verdades sobre a natureza profunda da imaginação criadora desde os tempos da tradição clássica. Assim, não é difícil perceber o quanto a mitologia, a literatura e a filosofia do ocidente estão impregnadas desses conceitos, explícita ou implicitamente. Alguns deles, formulados sentenciosamente, sabemo-los de cor desde as primeiras leituras propriamente literárias, aquelas que fizemos com um enlevo e um fervor bem diferentes do simples interesse pelo fio e o fim da história. Assim, aprendemos com Platão que "a arte é a sublimação da verdade". Aprendemos? Decoramos ao primeiro impacto, na adolescência, porque achamos bonito o pensamento. Por que bonito? Pela mensagem tranqüilizante que as sentenças levam ao ego dos jovens, contribuindo de certa forma para a contenção de seus limites dentro de dimensões animicamente confortáveis. Teriam influído outras motivações menos devassáveis? Por certo, sucessivas gerações captaram poeticamente a simbologia desse conceito, enriquecendo-se com suas sugestões, explorando, em múltiplas variantes, sua elasticidade teórica. No entanto, a densidade do seu conteúdo psicológico latente só foi possível desvendar, na amplitude da sua fecundidade, dois mil e quatrocentos anos depois que os lábios do filósofo a proferiram. E quando teria ocorrido essa compreensão que bem merece foros de científica? Ocorreu quando tivemos meios de penetrar no mundo da fantasia inconsciente. Com efeito, a técnica de investigação psicológica criada por Freud acrescentou uma nova dimensão às ciências do homem: o dinamismo do psiquismo inconsciente. Na história da evolução cultural, este fato adquiriu um significado de elo essencial na seriação das idéias, passando a figurar destacadamente entre as realidades conceituais da nossa época. (Cyro Martins)

 

 1972

MENEGHIN, L.C. Freud e literatura: e outros temas de psicanálise aplicada. Porto Alegre: Editora da URGS, 1972.

1974

AMO, Javier del. Literatura y neurosis. Madrid: Editora Nacional, 1974.

Trata-se do estudo de alguns textos da literatura deste século, os quais são examinados comparativamente com os transtornos neuróticos e psicóticos. É um estudo que joga luz sobre o mistério da criatividade, no que se refere à inadaptação, divórcio entre o indivíduo e a realidade. Autores como Kafka, Hesse, Wilson, Sartre e Baroja são vistos não sob uma visão de "crítica literária", e sim desde o prisma de sua própria solidão. Longe de tudo que possa ficar em simples dado biográfico, o leitore encontrará neste livro uma profunda interpretação do criador, surgida apartir da própria obra.

1978

ANZIEU, Didier et al. Psicoanalisis del  gênio creador. Buenos Aires: Editorial Vancu, 1978.

Coletânea de textos cujo propósito divide-se em duas partes: 1) Fazer um balanço dos aportes da psicanálise á arte, tirando conclusões, questionando evidências  e abrindo novos caminhos. Assim temos o extenso ensaio de Michel Mathieu  “De uma improvável  estética – ensaios sobre as teorias psicoanalíticas da arte”, onde o autor escreve como um psicanalista, cuja formação atravessou, afrontou e remodelou  a exigência da escrita poética. 2) Abordar o difícil e importante problema do trabalho psíquico na criação literária, artística e também científica. Esta segunda parte é composta pelos ensaios de quatro especialistas, autores do livro: “Complexo de Jocasta, maternidade e gênio (Mattew Besdine), A criação artística e a elaboração consciente do inconsciente com considerações particulares sobre a criação poética (Jean Guillaumin) e “Morte e crise na metade da vida (Elliot Jacques). Para concluir o resumo, temos o capitulo inicial elaborado por Didier Anzier  intitulado “Por uma metapsicologia da criação”, onde tomando como exemplo a descoberta de Freud da psicanálise através da autoanálise de seus sonhos, esboça-se a explicação das fases principais e de alguns dos aspectos do trabalho de criação.

1979

FITZGHENEL, Stuart. Jorge Luís Borges está deitado no divã. Oitenta (Porto Alegre), vol. 1, p.101-105, dez. 1979.

Tentativa de uma biografia psicanalítica de Jorge Luis Borges, um homem que odeia a psicanálise, é o que se observa a partir da análise da grande biografia Jorge Luis Borges, a literary biography, de Emir Rodrigues Monegal (Ed. Dutton, New York, 1979. 502p.). Apesar de se tratar de uma biografia autorizada, seu autor consegue, ao lado de cometer alguns erros, iluminar desvãos desconhecidos da vida e obra do escritor argentino. Por exemplo, no aspecto literário, ficamos sabendo que Aleph tem a intenção de ser uma paródia da Divina comédia. No aspecto pessoal, ficamos sabendo os motivos que levaram Borges, aos 77 anos, a repudiar sua mulher, Elza Milla, depois de três casamentos. dois defeitos prejudicam a qualidade desta biografi, sem modificar o saldo positivo final: 1- um esforço quase obsessivo em tentar encontrar correspondência entre os fatos da vida do escritor e cada uma das coisas que escreveu. 2 - Interpretação psicanalítica dogmática e exagerada a que o autor tent submeter o escritor e sua obra.

1989

FREUD E A LITERATURA


                                                  E. Portella Nunes e C. H. Portella Nunes


O famoso dito de Hamlet fala-nos que o objetivo de uma peça, portanto, do dramaturgo que a cria é “to hold as’twere the mirror up to nature; to show virtue her own feature, scorn her own image, and the very, age and body of time his form and pressure’. (III, 2)
                                    Freud: Os chistes e sua relação com o inconsciente.

       Existe, entre a psicanálise e a literatura um parentesco óbvio: ambas têm na palavra seu instrumento de trabalho. Que os escritos psicanalíticos têm características literárias tem sido constatado por inúmeros autores inclusive Freud que, em 1895, registra num certo tom de quem se desculpa, que seus relatos clínicos parecem novelas. “Consola-o” o fato de ser este o único estilo adequado a descrever seu objetivo de estudo: a história de pacientes cujos sintomas têm relação com seu passado, com sua infância, o que não é o caso de seus escritos neuropatológicos ou mesmo das descrições psiquiátricas de psicose.          

      Assim, como a psicanálise interpreta a história de seus pacientes, pode também tomar obras literárias como objeto de seu estudo. Foi o que Freud fez com diversas peças de ficção.

      A validade da aplicação da psicanálise a fenômenos alheios ao contexto da relação analista-paciente tem sido amplamente discutida, dentro e fora da psicanálise. Assim vemos Pontalis, por exemplo, e Michel M. de M’Uzan expressarem suas “reservas” quanto à psicanálise da literatura. A seu favor, no entanto, temos Paul Ricoeur, que é talvez o maior defensor da psicanálise aplicada. Para ele, o que define psicanálise não é o objeto e sim o método particular de interpretação: aquele que se baseia no tripé metapsicológico, ou seja, na dinâmica, na tópica e na economia do desejo recalcado. É este método que vai conferir a psicanálise seu limite e sua validade.

       Sendo antes de tudo um método interpretativo, a psicanálise lida com símbolos, dos quais pretende revelar uma faceta oculta: o desejo recalcado. Cada interpretação, diz Ricouer, traduz a multivocidade do símbolo, segundo uma grade que lhe é própria. Todas são reducionistas já que nenhuma alcança toda a riqueza de significados do símbolo.

       A paixão de Freud pela literatura não encontra paralelo em nenhum dos analistas que lhe seguiram. Não podemos sequer saber até que ponto esta paixão terá influído na rara qualidade literária da obra do Mestre que em toda sua longa vida recebeu apenas um prêmio importante: o prêmio Goethe de literatura. Tão precoce é o interesse de Freud pela literatura quanto o despontar de seus próprios dons para escrever. Aos 17 anos, em carta a Emil Fluss, Freud narra seu exame final do Gimnasium, a famigerada “Matura”, onde há uma trecho em que ele revela com indisfarçável orgulho a opinião de um de seus professores sobre a qualidade especial de seu estilo.

Aliás, o meu professor me disse – e é a primeira pessoa que usou dizer-me isto – que eu possuo o que Heider tão sutilmente chama de estilo idiota, isto é, um estilo ao mesmo tempo correto e característico.”

       No ano seguinte, em 22.8.74, Freud escreve ao seu colega de colégio, Silberstein, uma carta importantíssima na qual alude à fundação, pelos dois, da Academia Castelhana (AC), assim chamada devido às horas seguidas que se dedicavam ao estudo do castelhano, segundo Freud escreveria mais tarde à sua noiva.

       Durante estes estudos, tanto lhe agradou o Diálogo dos Cães de Cervantes, encontrado na Gramática Espanhola de que se utilizavam, que passaram a se apelidar de Berganza (Silberstein) e de Cipião (Freud), como nos mostra a carta acima citada onde Freud assina-se “teu fiel Cipião”.

       Cervantes passa a ser um dos autores prediletos de Freud, motivo principal para prosseguir em seus estudos na língua espanhola, conforme ele mesmo diz a Ballesteros, tradutor de sua obra para o espanhol. Ainda nesta carta a Silberstein, consta uma extraordinária análise crítica de “A Dama das Camélias” (que havia lido 2 anos antes) que contém um esboço muito nítido da teoria da “sedução estética” que , mais tarde, será um dos pilares dos escritos freudianos sobre literatura e mesmo sobre a arte em geral.

     Hoje sabemos que estes dois membros da AC chegaram a trocar cartas confidenciais em espanhol, além de sua habitual correspondência em alemão.

      É fascinante voltar a percorrer a correspondência de Freud em sua juventude e recordar as pistas de suas primeiras leituras. Encontramos, então, um inesperado interesse por filosofia, especialmente por Ludwig Feuerbach; sua aproximação dos autores científicos ingleses após a ida a Manchester e, naturalmente muito Goethe e muito Shakespeare.

       Durante o tempo de noivado, “ansiando por sua noiva na distante Wandenbeck, Freud preenchia seu tempo ocioso relendo Dom Quixote, os gregos, e lendo Rabelais, Shakespeare, Molière, Lessing, Goethe, Schiller, etc” (Peter Gay).

      Em seus escritos publicados vemos citações de diversos autores, sobretudo de Shakespeare “de quem ele podia recitar longos trechos de cor em seu inglês quase perfeito” (Peter Gay – 166) e dos clássicos alemães: Goethe e Schiller.

       A Goethe, Freud chegou a dedicar todo um ensaio: Uma recordação de infância em Poesia e Verdade.

       Em Escritores Criativos e Devaneio, pequeno ensaio de 1908, Freud lança as bases do que poderia se chamar de estética psicanalítica que se assenta na teoria, já esboçada por Aristóteles na Poética, de que há uma continuidade genética entre o brincar da criança e a criação artística.

       Para Freud, os elos mais importantes desta cadeia estão no sonho e no devaneio, como se o texto literário fosse um sonho do autor que por sua vez desencadeasse outros sonhos nos leitores. Tanto o autor ao produzir seu texto quanto o leitor realizam, simbolicamente, desejos reprimidos, tal como a criança faz através do seu jogo: manipula a realidade, cria “uma outra cena” onde tudo pode acontecer. Onde passado, presente e futuro misturam-se numa temporalidade sujeita apenas às rédeas do desejo. O que já foi voltará a ser; o que teria sido é presente para sempre.

      Tudo é possível graças ao fenômeno da “sedução estética”. Para Freud, a forma literária com sua inexplicável beleza tem a mesma função sedutora do “prazer preliminar” (Vorlust) no ato sexual: derrubar as barreiras da repressão permitindo a liberação de um prazer mais intenso e profundo (Endlust). O erotismo interdito e a onipotência narcísica compõem a matéria mesma do devaneio, daí seu caráter estritamente secreto e até um tanto vergonhoso, a reação de susto se alguém entra subitamente num lugar onde estamos a sós com nossos próprios devaneios.

       Para que possamos gozar os nossos devaneios sem medo ou vergonha, o autor disfarça com seu engenho e arte, o egoísmo que os caracteriza e pelo prazer puramente formal, nos seduz a liberarmos todo o prazer proveniente das fontes mais profundas de identificação.

        Quem é o herói das novelas populares que consegue sair são e salvo de todos os naufrágios, emboscadas e de todas as demais armadilhas dos homens e dos deuses? Nada mais, nada menos do que “sua majestade, o Ego”, diz Freud. É a identificação narcísica do leitor com o herói que faz com que este tipo de novelas tenha sucesso. Cada leitor
realiza através dos heróis a fantasia onipotente de que nada lhe pode acontecer – a fantasia da imortalidade.

        Ainda que Freud se tenha ocupado de outras formas de arte (pintura, escultura), era o escritor, o poeta (Der Dichter) que ele tinha em mente sempre que se referia à natureza da capacidade artística em geral, como assinala Jones.

       O primeiro estudo de Freud completamente dedicado a uma obra literária é Delírios e Sonhos na “Gradiva” de Jensen. Segundo Jones, foi Jung quem primeiro apresentou a Freud o romance de Jensen no verão de 1906. O trabalho estava pronto em 1907 e foi enviado ao romancista que, ao que parece, sentiu-se muito envaidecido pela análise de seu romance.     

         A novela de Jensen tinha tudo para fascinar Freud. Além de passar-se em Pompéia, cidade soterrada cujas escavações Freud comparava ao trabalho do psicanalista, arqueólogo da mente, a novela trata de sonhos e distúrbios da percepção. Freud aproveita análise da Gradiva para inserir um resumo de sua teoria dos sonhos e talvez o “primeiro esboço semipopular de sua teoria das neuroses e da ação terapêutica da psicanálise”, como nota Strachey.

        O resumo da história da Gradiva é fornecido por Freud como uma introdução à sua análise da obra de Jensen.

        Obcecado pela escultura, que Honold chama de Gradiva (a jovem que avança), ele inventa toda uma história sobre ela, usando seus conhecimentos arqueológicos na tessitura de uma vasta fantasia.

        Logo depois, Hanold tem um terrível pesadelo no qual ele se achava em Pompéia, no dia da erupção do Vesúvio. No pesadelo ele via Gradiva e de repente dava-se conta de que ela era uma pompeiana, vivendo em sua cidade natal, “na mesma época que ele, sem que disto ele tivesse a menor suspeita” (grifos de Freud). Hanold dá um grito, mas Gradiva continua a andar até sentar-se num degrau da escada do templo, com a cabeça inclinada para baixo, enquanto sua face torna-se de uma palidez marmórea e ela é finalmente coberta de lama.

       Ao acordar, nosso herói sente que Gradiva realmente era alguém que vivera em 79 d.C., o ano da destruição de Pompéia e lamenta que ela esteja perdida para sempre. Vai, então, até a janela e tem a impressão de reconhecer Gradiva andando lá fora. Sai correndo para encontrá-la, mas as risadas dos passantes fazem com que ele volte a si e à casa.          

       Decide fazer uma viagem à Itália e quando dá por si, está em Pompéia. Lá de novo, ele vê a Gradiva de seu auto-relevo sair de uma casa e pisar pé ante pé as pedras de lava e, como no seu sonho, deitar a cabeça como para dormir, num dos degraus do templo de Apolo.

       Afinal, ficamos sabendo que a Gradiva de Hanold era uma garota alemã de carne e osso chamada Zoe, nome que significa vida. E que, passo a passo, marcando encontros repetitivos com Hanold, Zoe Bertgang (Bertgang = Gradiva = alguém que brilha ao avançar) vai impondo sua realidade sobre o “delírio” da Gradiva. E esta realidade, ficamos sabendo afinal, é a de uma amiga de infância de Nobert Hanold e talvez de um amor de infância. E mais: é Zoe quem se esconde o tempo todo na aparente paixão do arqueólogo por uma figura de mármore, “rediviva” em Pompéia. O fenômeno que Jensen chama de “delírio” em seu romance é, na verdade, uma ilusão, em que uma figura real, a de Zoe, é confundida, sob o efeito do sol do meio-dia, com a figura do auto-relevo, chamada por ele de Gradiva. Freud aceita a denominação de delírio, fazendo a ressalva de que se tratam de “delírios histéricos”, nada tendo a ver com os que aparecem na paranóia. Embora dizendo que sua intenção inicial era apenas a de investigar “os dois ou três sonhos” do livro com o método psicanalítico, Freud tem à disposição elementos precisos neste relato que o próprio autor chama de uma “fantasia”. Mostra, por exemplo, a relação entre os sonhos e os “delírios”. Tanto uns quanto os outros derivam do recalcamento. E o recalcado em Hanold seria a lembrança de suas relações de infância com Zoe. Em seu caso, portanto, “desde o instante do aparecimento do relevo... estamos lidando com algo que foi recalcado”. O papel do auto-relevo foi o “de despertar o erotismo adormecido”, tornando efetivas suas “lembranças infantis”.

        A impressão de vida que lhe comunicara a moça de mármore e o nome mesmo que ele lhe dera, Gradiva, tem conexão com o nome do objeto verdadeiro do seu amor, cujo nome Zoe significa vida e o sobrenome Bertgang tem o mesmo sentido de Gradiva, ou seja, de alguém que caminha brilhantemente ou esplendidamente.

        Freud compara a aceitação inicial por Zoe do delírio de Hanold e sua gradual aparição como realidade com o trabalho do psicanalista que deve aceitar a “estrutura delirante do paciente para poder instigá-lo o mais completamente possível”. E mesmo que, ao final, esta seja uma história de amor, Freud nos adverte que não devemos desprezar o poder curativo do amor.

___________


(Extraído de “Freud e Shakespeare”, de E. P. Nunes e C. H. Portella Nunes. Imago ed.,
1989)

1996

BRANDÃO, Ruth Silviano. Literatura e psicanálise. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1996.

As relações entre literatura e psicanálise, o texto como o possível do desejo, os impasses da representação artística e algumas manifestações do feminino na vida literária, no teatro, cinema e TV constituem o núcleo deste livro. Nele a reflexão teórica não se faz apenas de forma abstrata. Ao contrário, nasce de um novo olhar sobre algumas obras singulares de nosso tempo. Sumário da obra:

1-Literatura e psicanálise - articulação: a) Literatura e psicanálise: a incompletitude da escrita; b) O canto do cisne; c) O texto literário como o possível desejo; d) Os discursos do desejo; e) O estilete que faz escrita. 2-Impasses da represeantação: a) Os impasses da representação; b) Palavras em pássaro. 3-Feminino - paixão e representação: a) Se não há a letra do feminino; b)A outra volta da interpretação; c) Por mais que se cante a paixão; d) Para sempre amada. 4-Feminino - teatro, TV, cinema: a) Minha ficção daria uma vida; b) Não amarás; c) O umbigo do andrógino; d) Uma poética do silêncio: sobre Um anjo em minha mesa; e) A insistente presença do passado; f) O feminino sabor da alegria. 5-Banquetes literários: a) A última ceia do pai; b) À mesa em "Don dom dorondondon", com Carlos Drummond. Complementa o livro uma ampla pesquisa bibliográfica com 62 títulos.

1997

VILLARI, Rafael Andrés. Relações possíveis entre a Psicanálise e a Literatura. Universidade Ferderal de Santa Catarina. Anuário de Literatura,p.117-129.1997. 1997(http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/literatura)

1998

FLEIG, Mario. O dizer poético e a clínica psicanalítica. In: Psicanálise e Literatura, Revista da APPOA, ano VIII, nº 15, 1998.

PIGLIA, Ricardo. O melodrama do inconsciente. O Estado de São Paulo, 21/06/1998. (Texto integral)

A relação entre psicanálise e literatura é, sem dúvida, tensa e conflituosa. Em primeiro lugar, os escritores sempre sentiram que a psicanálise falava de algo que eles já conheciam e sobre o que era melhor guardar silêncio. Faulkner, Nabokov, Borges (entre outros) observaram que o psicanalista quer intervir naquilo que os escritores, desde Homero, têm convocado com essa rotina cerimoniosa com que se convocam as musas, em relações muito frágeis e sempre tocadas pela graça. Nessa relação impossível de se estabelecer deliberadamente, nessa situação de espera tão sutil, os escritores sentiram que a psicanálise avançava como um louco furioso.

Mas há outro ponto sobre o qual os escritores disseram algo que, na minha opinião, pode ser útil para os psicanalistas. Nabokov e também Manuel Puig - nosso grande romancista argentino - insistiram em algo que os psicanalistas raramente percebem ou explicitam: a psicanálise gera muita resistência, mas também muita atração. A psicanálise é um dos aspectos mais atraentes da cultura contemporânea, e isto porque todos nós queremos ter uma vida intensa.

Gostamos de admitir que, em algum lugar de nossas vidas banais, experimentamos grandes dramas, que quisemos matar nossos pais e que, portanto, vivemos num universo de grande intensidade, em que conseguimos superar o tédio, a monotonia em que habitualmente estamos mergulhados. O psicanalista nos convoca como sujeitos trágicos; diz que há um lugar em que todos somos sujeitos extraordinários, lutando contra tensões e dramas profundíssimos, e isso é muito atraente.

Assim, Nabokov (1899-1977) via a psicanálise como um fenômeno da cultura de massas. Considerava que esse elemento de atração, capaz de pôr cada um de nós em conexão com as grandes tragédias, as grandes traições, pode estar relacionado com um procedimento clássico na cultura de massas: convocar o sujeito a um lugar extraordinário, tirando-o de sua experiência cotidiana.

Manuel Puig (1932-1990) costumava dizer algo que sempre me pareceu muito produtivo, e que sem dúvida o foi na construção de sua própria obra. Puig dizia que o inconsciente tem estrutura de folhetim. Ele, que escrevia sua ficção com muito interesse pela estrutura das telenovelas e dos grandes folhetins da cultura de massas, tinha conseguido captar essa dramaticidade implícita na vida de todos, que a psicanálise põe no centro da experiência de construção da subjetividade.

No que eu disse até aqui se vai esboçando um tipo de relação ambígua: por um lado, a psicanálise avança sobre um terreno íntimo, acerca do qual o artista considera que é melhor esperar e não pensar; mas, por outro lado, a psicanálise surge como uma espécie de concorrência: gera uma espécie de bovarismo, no sentido da experiência de Madame Bovary, que lia aqueles romancezinhos água-com-açúcar e queria vivê-los.

A literatura usou a psicanálise

Vou acrescentar agora duas questões: de que modo a literatura tem usado a psicanálise e de que modo a psicanálise tem usado a literatura. Para pensar sobre a primeira, convém esquecermos experimento um tanto superficiais como o do surrealismo, que confundia essa espera da graça da musa com o procedimento mecânico da escrita automática: a musa é uma dama frágil o bastante para demandar um tratamento mais delicado que esse escrever sem pensar, deixando-se levar. É um pouco ingênuo supor que essa seria a melhor maneira de conectar-se com o inconsciente no trabalho.

Quem de fato fez da relação com a psicanálise uma chave de sua obra talvez tenha sido o maior escritor do século XX: James Joyce. Foi ele quem melhor utilizou a psicanálise, porque viu nela um modo de narrar, porque soube enxergar na psicanálise uma possibilidade de construção formal. É certo que Joyce conhecia bem a Psicopatologia da vida cotidiana e A interpretação dos sonhos (ambos de Freud): sua presença salta aos olhos na escritura de do Ulisses e do Finegan’s Wake. Não nos temas: não se tratava, para Joyce, de refinar a caracterização psicológica dos personagens segundo a crença corrente de que a melhor ajuda que a psicanálise pode prestar ao romancista é a oferta de melhores instrumentos para essa caracterização. Não: Joyce percebeu que ali havia modos de narrar; que, na construção de uma narração, o sistema de relações não precisa obedecer a uma lógica linear, e aí temos o monólogo interior. Joyce utilizou a psicanálise de uma maneira notável e produziu na literatura, um modo de narrar, uma revolução sem volta.

Eu diria que o Finnegan's Wake, sem dúvida uma das experiências (literárias)- limite deste século, foi em grande medida construído sobre a estrutura formal que se pode inferir de uma leitura criativa de Freud: uma leitura não preocupada com atemática e sim com a maneira como se desenvolvem certos modos, certas formas, certas construções.

Quando questionado sobre sua relação com Freud, Joyce costumava responder: "Joyce, em alemão, é Freud". "Joyce" e "Freud" querem dizer "alegria"; nesse sentido os dois querem dizer a mesma coisa, e a resposta de Joyce parece-me uma prova da consciência que ele tinha da relação ambígua, mas de respeito e interesse, que o unia a Freud. Acho que o que Joyce dizia era : eu estou fazendo o mesmo que Freud. Em um sentido mais livre, mais autônomo, mais produtivo.

Mas Joyce manteve outra relação com a psicanálise, ou melhor, com um psicanalista, sobre o qual há uma história que sintetiza muito dessa tensão entre psicanálise e literatura. Joyce tinha os ouvidos muito atentos às vozes das mulheres. Ele saía pouco, passava muito empo escrevendo e escutava as mulheres que tinha por perto; escutava a Nora, que era sua mulher, uma mulher extraordinária. Escutando a voz dela, Joyce escreveu muitas das melhores páginas do Ulisses, e os monólogos do Molly Blomm têm muito a ver com as cartas que ele escreveu a Nora em certos momentos de sua vida. Em suma: Joyce está muito atento à voz feminina.

Enquanto Joyce estava escrevendo o Finnegan' s Wake, era sua filha, Lucia, quem ele escutava com grande interesse. Lucia Joyce acabou psicótica e morreu internada numa clínica suíça em 1962. Joyce nunca quis admitir que a filha estava doente e procurava incentiva-la a realizar diversas atividades. Uma das coisas que ela fazia era escrever. Joyce a incentivava a escrever textos, e Lucia escrevia, mas sua situação era cada vez mais dificiI. Por fim, alguém lhe recomendou que fosse falar com Jung.

Eles estavam morando na Suíça, e Jung havia escrito um texto sobre o Ulisses. Joyce o procurou para lhe explicar o caso da filha, e disse a Jung: "Aqui estão os textos que ela escreve, e o que ela escreve é a mesma coisa que eu escrevo". Isso porque na época ele estava escrevendo o Finnegan's Wak, que é um texto totalmente psicótico, se visto da seguinte perspectiva: é totalmente fragmentado, onirizado, atravessado pela impossibilidade de construir com a linguagem algo além da dispersão. Pois bem, Joyce disse a Jung que sua filha escrevia a mesma coisa que ele, e Jung respondeu: "Só que onde o senhor nada, ela se afoga". É a melhor definição que conheço da distinção entre um artista e... outra coisa, que não chamarei de outro modo.

A arte da natação

De fato, psicanálise e literatura têm muito a ver com a natação. Em certo sentido, a psicanálise é uma arte da natação, uma arte de manter à tona no mar da linguagem as pessoas que estão sempre tentando afundar. E um artista é aquele que nunca sabe se vai conseguir nadar: conseguiu nadar antes, mas não sabe se conseguirá nadar da próxima vez que entrar no mar.

Em todo o caso, a literatura deve a obra de Joyce à psicanálise. Ele foi capaz de ler a psicanálise, assim como foi capaz de ler outras coisas. Joyce foi um grande escritor porque soube entender que havia outras maneiras de fazer literatura fora da tradição literária; que podiam ser encontradas maneiras de narrar no catecismo, por exemplo; que a narração, as técnicas narrativas, não estão ligadas apenas às grandes tradições narrativas; que é possível encontrar modos de narrar em outras experiências contemporâneas. A psicanálise foi uma delas.

A outra questão é o que a psicanálise deve à literatura: ela lhe deve muito. Podemos falar da relação que Freud estabeleceu com a tragédia. Não me refiro Não me refiro ao conteúdo de certas tragédias de Sófodes ou de Shakespeare, que deram lugar a metáforas temáticas sobre as quais Freud construiu um universo de análise. Refiro-me à tragédia como forma que estabelece uma tensão entre o herói e a palavra dos mortos.


Em literatura, tende-se ver a tragédia como um gênero que estabeleceu uma tensão entre o herói e a palavra dos deuses, do oráculo, dos mortos, uma palavra vinda do outro lado, dirigida ao sujeito, mas que este não entende. O herói escuta um discurso personalizado, mas enigmático: é claro para os demais, mas ele não o entende. Isto é Édipo, Hamlet, Macbeth, este é o ponto em torno do qual gira a discussão literária sobre o gênero da tragédia, uma discussão que começa com Nietzsche e chega até Brecht. A tragédia, como forma, é essa tensão entre a palavra superior e um herói que tem uma relação pessoal com essa palavra.


Tal estruturação tem muito a ver com a psicanálise, mas ainda não vi essa questão ser tratada sem que se insista exclusivamente no aspecto do tema. Sem dúvida, em Édipo há um problema com pais e mães, em Hamlet há um problema com a mãe. Mas em Hamlet há também um pai que fala depois de morto.

Outra forma de pensar a relação entre psicanálise e literatura é dada pelo gênero policial. Trata-se do grande gênero moderno: inventado por Poe em 1843, invadiu o mundo contemporâneo. Hoje olhamos o mundo pautados por esse gênero, hoje vemos a realidade sob a forma do crime. Como dizia Bertold Brecht, o que é roubar um banco comparado com fundá-lo? A relação entre lei e verdade é um elemento constitutivo do gênero, que é muito popular, como o foi a tragédia. Como os grande gêneros literários, o policial tem sido capaz de discutir o mesmo que a sociedade discute, mas de outra maneira.

É isso que a literatura faz: discute de outra maneira. Se não entendermos isso, estaremos pedindo à literatura que faça algo que o jornalismo faria melhor. A literatura discute os mesmos problemas que a sociedade, mas de outra maneira, e essa maneira é a chave de tudo. Uma dessas maneiras é o gênero policial, que vem discutindo as questões entre lei e verdade, a não coincidência entre a verdade e a lei.


Poe inventa um sujeito extraordinário, o detetive, cujo destino é estabelecer a relação entre a lei e a verdade. O detetive está ali para interpretar algo que ocorreu, que deixou certos sinais, e ele pode desempenhar essa função porque está fora de qualquer instituição. O detetive não pertence ao mundo do crime nem ao mundo da lei; não é um policial. Dupin, Sherlock Holmes, o detetive particular está ali para mostrar que a lei funciona mal em seu lugar institucional, a polícia. O detetive vem abrir o lugar da verdade que não pertence a nenhuma instituição onde a verdade é legitimada.

Pensemos no seguinte paradoxo, (que também diz respeito a nós, argentinos) (1): como falar de uma sociedade que nos determina? A partir de que lugar externo podemos julgá-Ia, se nós também estamos dentro dela? O gênero policial oferece uma resposta que é extrema: o detetive, embora forme parte do universo que analisa, pode interpretá-lo porque não tem relação com nenhuma instituição, nem sequer com o casamento. O detetive não pode 'Se integrar a nenhuma instituição social, nem à mais microscópica, pois, onde quer que se integre, não poderá mais dizer aquilo que ele tem que dizer: essa tensão entre alei e a verdade.

Na tragédia, o sujeito recebe uma mensagem dirigida a ele e a interpreta de maneira equivocada. A tragédia é o percurso dessa interpretação, é o modo pelo qual o sujeito entende errado. No policial, aquele que interpreta está livre de travas e fala de uma história que não é a dele, dedica-se a uma questão que não é a dele: acho que os psicanalistas têm alguma familiaridade com isso ...
________________

Este texto é um transcrição da conferência realizada em Buenos Aires, com o patrocínio da Associação Psicanalítica Argentina em 07/07/1997.

 

2001

FREITAS, Luiz Alberto Pinheiro de. Freud e Machado de Assis: uma interseção entre psicanálise e literatura. Rio de Janeiro: Mauad, 2001.

 

SALIB, Maria Suzete. A disciplina da transgressão. Dissertação sob orientação de Ana Luiza de Andrade. Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC. 2001

O presente trabalho se propõe a investigar o conceito  de transgressão como interface entre Teoria Literária e Psicanálise. A partir disso, explora-se a interdependência entre transgressão e interdito, tendo como referências a obra de Georges Bataille, O erotismo, e A ética da psicanálise, de Jacques Lacan. A transgressão não pode se realizar senão sob a condição de afirmar o interdito. Transgressão e interdito, gozo e lei, se afirmam pela mesma lógica de provocar o seu oposto

KON, Noemi Moritz. A viagem: da literatura à psicanálise.Tese sob orientação de João Augusto Frayze-Pereira. Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo-USP, 2001.

Este estudo aborda as relações entre Psicanálise e Literatura, ao enfocar os vínculos da criação freudiana com uma produção literária determinada, própria à metade final do século XIX, denominada "Literatura Fantástica". Procura compreender o momento inicial de geração do pensamento psicanalítico, considerando as condições de possibilidade para sua montagem, naquilo que ele compartilha, desde sua origem, com a literatura. Abordar a obra freudiana por intermédio de uma linhagem literária não é sem conseqüências. Permite que se interrogue o viés cientificista e que se ressalte o vértice criador da psicanálise, estreitando o parentesco que esta mantém com a criação artística. Esta tese percorre os eixos da História, da Filosofia, da Crítica Literária e da Estética, mas focaliza, sobretudo, os domínios dos textos freudianos e das narrativas fantásticas. O seu desenvolvimento se dá por meio de duas formas de apresentação: a primeira, literário-sintética, a novela A Viagem: de Paris a Quillebeuf sur Seine, e a segunda, um estudo teórico-analítico, Os Bastidores da Viagem'. Estas duas vertentes, que compõem este estudo em dupla-face, desembocam num ensaio - O Milagre, o Mistério e o Enigma - que procura apontar para os limites e alcances desta pesquisa.

 

MÉLEGA, Marisa Petella. Eugenio Montale: criatividade e psicanálise. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.

Este trabalho é um estudo da criatividade artística de Eugenio Montale (1896-1981), natural de Genova, capital  da Ligúria, Itália, prêmio Nobel de Literatura de 1975. A autora, que é médica psicanalista, procura inicialmente se inteirar da visão que o poeta tinha da criatividade e da concepção de poesia, buscando a leitura de alguns entre seus inúmeros textos e entrevistas que trataram desse tema. Estuda, em seguida, alguns autores que fizeram da poesia de Montale objeto de sua crítia e propõe, ela mesma, alguns caminhos críticos. Apresenta então uma síntese do conceito de criatividade ao longo do desenvolvimento da teoria psicanalítica, até chegar aos nossos dias, a fim de ter elementos para justificar sua hipótese do que é uma experiência emocional e de onde se origina a criatividade, na visão de Montale e na visão da psicanálise atual. Chega então a estabelecer uma relação entre o "estado de mente poético"  e o "estado de mente onírico" através da análise de alguns poemas de Montale que fazem parte das coeltâneas Ossi di Seppia, Le Occasioni, La Bufera e Altro.

2002

KRISTEVA, Julia. As novas doenças da alma. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.

Livro dividido em duas partes: a) A clínica focaliza aspectos da clínica psicanalítica, em que conjectura se haveria um "novo paciente" e novas sintomatologias e b) A história, onde a autora aproxima a psicanálise da literatura e da arte, em diferentes parentescos possíveis. Num dos ensaios, dos mais interessantes, focaliza a escrita no adolescente, ressaltando que a adolescência é menos uma questão de idade do que a possibilidade de uma "estrutura psíquica aberta", própria ao escritor, e que no adolescente a prática da escrita permitiria a reorganização do espaço psíquico. Os temas versam desde a Bíblia, a pintura de Leonardo da Vinci, o ofício de escrever, (A escrita que reorganiza o espaço psíquico) até uma análise sobre a autobiografia de Hélène Deutsch. Tomando uma frase da autora, que inicia o ensaio sobre Joyce: "não informarei aos senhores quão arriscada, dolorosa, absurda e hilariante é a tentativa de falar da obra joyciana". Podemos assim pensar que, talvez, a obra de Julia Kristeva seja joyciana, provocando essa mesma sensação quando dela se tenta falar. Cabe o reconhecimento por seu empenho em fazer do pensamento uma forma de vida e luta. (Parte da resenha de Maria Helena Junqueira. O Globo, 16/03/2002).

 

MAGALHÃES, Cristina Mara. Criar para ser, ser para criar: a constituição do self através da obra literária. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica-PUC (TCC em psicologia), 2002. 

O objetivo deste trabalho é investigar o sentido que a obra tem, para seu autor, consciente ou inconscientemente, dentro de seu viver. Foi tomada como base a teoria winnicottiana a respeito da constitição do self, passando pelas origens não só do indivíduo, mas da criatividade e capacidade de criação, bem como o desenvolvimento do brincar, da relação e do uso dos objetos. A área transicional, ou mais especificamente, a transicionalidade, acaba sendo um conceito chave para nosso estudo e análise. A investigação foi realizada através de entrevistas - coletadas em publicações, jornais e revistas - concedidas por escritores consagrados da Literatura Brasileira: Clarice Lispector, Érico Veríssimo, Rachel de Queiroz e Carlos Drummond de Andrade. Os dados analisados nos permitiram vislumbrar o quanto a atividade literária é central na vida destes autores não só como um modo de viver criativo, mas também como fonte de constituição de seus selves, já que a escrita lhes possibilita a expressão, o conhecimento e descobrimento, mediante a contemplação de novos sentidos e significados que insurgem da mesma. Podemos perceber, ainda, que o fato de a escrita ser vital para estes escritores - no sentido de lhes permitir SER o mais verdadeiro de seus selves - não

anula a possibilidade de encontrarem este mesmo tipo de viver criativo em outras áreas ou papéis de suas vidas. (Resumo da autora)

 

VILLARI, Rafael Andrés. Literatura e psicanálise: Ernesto Sábato e a melancolia. Florianópolis: Editora da UFSC, 2002.

Embora a literatura tenha tido sempre seus detratores, teve e tem também seus incondicionais. De Alexandre da Macedônia a Frnçois Miterrand, não faltaram grandes homens que souberam ver e cultivar o poder das palavras ditas pelos escritores. Freud perternce a essa fina linhagem e na raiz de sua obra, que ajudou a modelar a modernidade, está o literário. O autor retoma a lição, hoje um tanto descuidada, do pai da psicanálise: para melhor pensar o homem e seus dramas, nada como perscrutar sempre os textos literários. Neste livro ele explora a obra do escritor argentino Ernesto Sábato não apenas para entendê-la à luz da Psicanálise mas para, a partir dela, revisitar a Psicanálise com olhos novos. O resultado desse gesto de ousadia é um livro que comprova a relevância da Literatura como modo privilegiado de conhecimento e que propõe uma renovação da Psicanálise através do literário.Ganham, portanto, a Literatura e a Psicanálise, num processo de mútuo enriquecimento hermenêutico. O livro serve, ao mesmo tempo, como porta de entrada ao mundo de Sábato e ao mundo de Freud, ambos analisados com competência e simpatia. Villari procedeu a uma pesquisa criteriosa sobre a obrade Sábato esuas relações com a Psicanálise através do fenômeno e do conceito da melancolia, centrais tanto na gênese da obra literária quanto do pensamento psicanalítico. Essa pesquisa veio coroar anos de convívio informal como leitor apaixonado, com a ficção de Sábato, em especial a verdadeira suma da história e do imaginário argentinos que é Sobre héroes y tumbas, mas também o mais angustiado, mais breve e não menos importante El túnel. Também a obra ensaística de Sábato, quase desconhecida entre nós, foi minuciosamente escrutinada, e os livros Apologías y rechazos, El escritor y sus fantasmas e Heterodoxia, além do livro de entrevistas Entre la letra y la sangre, são postos em diálogo contante com a obra ficcional. Villari, que é psicanalista e acumulou longos anos de leitura freudiana e lacaniana, aplica o mesmo exaustivo método às obras de Freu e Lacan - essas duas imensas obras são percorridas de forma lenta e segura, e toda referência à Literatura é retraçada e posta em perspectiva em função do objeto de análise. Esse livro representa uma contribuição importante tanto para os estudos literários como para os estudos freudianos, e tanto o especialista como o mero curioso encontrarão aqui farta matéria de aprendizado e reflexão. A exposição clara e metódica, bem como a linguagem leve e elegante, facilita o frutífero percurso. (Dr. Walter Carlos Costa).

 

2003

TAVAES, Pedro H.M.B. Sujeito ao olhar: o sujeito do sonho em Freud e Schnitzler. Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC. Dissertação sob orientação de Pedro de Souza. 2003.

O presente trabalho advém de uma encruzilhada entre dois olhares, dois discursos. Na Viena da Fruhe Medene (primeira modenidade), dois pensadores da cultura, cujas vidas são marcadas por um série de curiosas similitudes, terão uma trajetória intelectual cujo itinerário tem seu ponto de partida na medicina, dirigindo-se gradativamente para algo mais próximo de uma análise das interações entre o homem e a linguagem, interação essa marcada pela mise em discours de dois elementos fundamentais: a morte e a sexualidade. Trata-se de Sigmund Freud, fundador da Psicanálise, e de Arthur Schnitzler, escritor e dramaturgo, os quais preferimos tratar como autores. Não nos propomos a uma discussão mais global sobre a intersecção entre a Psicanálise e a Literatura enquanto instituições às quais estes autores vieram a se filiar ao abandonarem o paradigma médico. Procuramos antes colocar o institucional em suspenso para nos atemos aos autores enquanto nomes por trás dos enunciados que viremos a trabalhar. As análises terão por método e fundamentação, sobretudo a abra de Michel Foucault, numa investigação arqueológica dos discursos e da escola de Análise de Discurso de Michel Pêcheux, quando tratarmos do texto em sua materialidade. Sob a metáfora do olhar adotada por Foucault ao tratar da clínica moderna, procuramos ver como ele encontrará em nossos autores outro foco que não a enfermidade do corpo e sim aquela oriunda do efeito da linguagem no humano: sua clivagem. Este sujeito dividido passará s ser o objeto de Freud e de Schnitaler que o procurarão não mais na carne e sim nos sonhos/ devaneios, em seus relatos e construções textuais a eles atribuídas. É, porém, a partir dos tratamentos dados à idéias de Traum, que começaremos a perceber as diferenças surgidas das concepções de sujeito nas narrativas envolvendo esta noção em cada um dos autores. Assinaladas as diferenças e incompatibilidades que eles, poderemos pensar como, num momento lógico e epistemológico posterior, suas concepções poderão ter uma chance de conciliação a partir do pensamento de Jacques Lacan.

 

2004

RIAVIZ, Vanessa Nahas. Rastros freudianos em Mário de Andrade. Universidade Federal de Santa Catarina- UFSC. Doutorado sob orientação de Ana Luiza Andrade. 2004

A presente tese aborda as relações entre Mário de Andrade - leitor de Freud - e a psicanálise, ou seja, o uso feito pelo escritor de  conceitos e noções psicanalíticas. Ao incorporar a psicanálise aos seus estudos sobre o folclore, Mário lança mão dos termos psicanalíticos recalcamento e sublimação, criando uma tradução própria que recobre, aproximadamente, a extensão de tais noções: seqüestro. Além deste termo, outros três são destacados da obra de Mário de Andrade como termos psicanalíticos e/ou articuláveis com a psicanálise: libido, loucura e inconsciente. Percorrendo as vias freudiana e lacaniana dos conceitos, destacamos trechos da obra do escritor nos quais surgem os temas em questão. A tese desenvolve-se em duas direções: por um lado, busca a psicanálise lida e interpretada por Mário de Andrade, e por outro, através da psicanálise, num exercício crítico, constrói leituras possíveis para alguns críticos dos seus textos. Este percurso psicanalítico por textos do escritor perfaz o que chamamos de rastros freudianos em Mário de Andrade.

 

CORREA, Carlos Pinto. Por que Shakespeare? O encontro de Freud com Shakespeare. Estudos de Psicanalise (Belo Horizinte), nº 24, aug. 2004.

O autor esclarece o que é um cânone na literatura e como Shakespeare se situa frente aos demais escritores. Mostra ainda como Freud leu Shakespeare e se apoiou na literatura para desenvolver conceitos psicanalíticos.

 

2005

TEIXEIRA, Leônia Cavalcante. O lugar da literatura na constituição da clínica psicanalitica em Freud. Psyche (São Paulo), v. 9, nº 16: 115-132, jul-dez. 2005.

A invenção da psicanálise por Freud pode ser vista como uma conjugação criativa de alguns fatores fundamentais, nos quais podem ser ressaltados uma aguda reflexão sobre todo seu exercício de médico-clínico, um intenso e inquieto trabalho sobre si próprio e uma constante incitação advinda do contato e da exploração do mundo da arte, especialmente da literatura. Este texto aborda a relação psicanálise e literatura a partir do estilo freudiano, entre os apelos do modelo científico da época e a construção de uma escrita poética. Enfocaremos a importância da literatura para a constituição do arcabouço teórico-clínico da psicanálise.

 

PERES, Ana Maria Clark. Literatura, Psicanálise e... Revista Aletria – Revista de Estudos de Literatura, n.12, p.13-22, abr. 2005. (www.letras.ufmg.br/poslit).

A partir de um diálogo com o último ensino de Jacques Lacan (notadamente seu seminário O sinthoma) e com o ensino de Jacques-Alain Miller, e cotejando a experiência analítica e a experiência literária, este ensaio procura refletir sobre os escritos de Machado de Assis, tentando demonstrar que seu processo de escrita pode ser comparado ao trabalho de um lapidador de diamantes: ao mesmo tempo em que lapida sua escrita (trata-se de seu savoir-faire de artista), ele “lapida” também seu sintoma, na perspectiva de um savoir y faire (saber lidar com o sintoma).

                                                     2006

SCLIAR, Moacyr. Freud e a literatura. Revista Viver Mente & Cérebo, nº 159, abr. 2006

                  LITERATURA E PSICANÁLISE: QUAL A RELAÇÃO?

                 Apresentado na III Jornada de Psicanálise do Fórum Baiano de Psicanálise, em dezembro de 2004, e no Café da Manhã de 20.05.2006 da ELB (Escola Lacaniana da Bahia)                                                                          

                                                                                          Gilcia Gil Beckel

     O que o canavial ensina ao mar e o que o mar ensina ao canavial? O processo de aprendizagem mútua é o foco central do poema O Mar e o Canavial, de João Cabral de Melo Neto, que nos leva a refletir sobre um aprender e um ensinar constantes que se evidencia nas interações humanas.

      A exemplo do poeta, podemos também nos perguntar o que a literatura “ensina” à psicanálise? O que a psicanálise “ensina” à literatura?

      Para o poeta, para o escritor, o que de fato importa é o ato de escrever. É sublimar sua pulsão, atendendo a um desejo de expressão. É o brincar com a palavra, fazer dela seu instrumento e seu objeto, envolver-se com ela e por seu intermédio, mostrar-se. É isto o que interessa à psicanálise?

       Por ser expressão do inconsciente, despertar a livre associação e instigar o imaginário do leitor, a literatura não é apenas a forma que cada um viaja em seu imaginário, não é puro diletantismo para quem lê e lhe aprecia o valor estético, mas alguma coisa que instiga e aguça a curiosidade dos mais atentos. Um leitor que se delicia com um poema, um conto, romance, ou outra qualquer forma de expressão literária, e que busca nas entrelinhas das palavras escritas, aquelas que ficaram ao nível do não dito, assemelha-se ao analista atento que, pinçando os significantes nas histórias de vida que lhe são contadas, capta o que não está sendo enunciado.

       Como fruto da subjetividade e forma sublimatória da pulsão, a literatura fornece preciosos elementos para análise das manifestações inconscientes. Freud sempre reconheceu o quanto a arte e a literatura anteciparam e confirmavam as descobertas da clínica psicanalítica. A literatura pré-existe à psicanálise. Poderíamos dizer que esta funda a psicanálise, pois o conceito chave do complexo de Édipo tem como pano de fundo a tragédia de Sófocles. Mas não apenas o autor grego, como Shakespeare, Dotoiévski, Jensen, Leonardo da Vinci, Michelângelo, Goethe, Hoffmann, Diderot e outros povoaram a obra freudiana.

         Ao longo da construção de sua teoria, o pai da psicanálise buscou interpretar autores, baseando-se em suas obras literárias, buscando conhecer de que fonte o artista retira seu material, material este capaz de nos despertar emoções que desconhecíamos.

        Em Escritores Criativos e Devaneios, vai buscar na infância os fundamentos do caráter imaginativo do artista. Encontra-os nas atividades favoritas e mais intensas das crianças: os jogos e as brincadeiras. Ele nos diz que o poeta, assim como a criança, cria um mundo de fantasia, leva-o a sério, investe nele grande quantidade de emoção, mas o distingue perfeitamente da realidade. Segundo Freud, ao se tornarem adultas, as pessoas perdem o prazer da infância e param de brincar. No entanto, trocam o brinquedo pelas fantasias, das quais se envergonham e as ocultam, por serem infantis e, muitas vezes, proibidas. Para ele, a obra literária é um substituto do brincar infantil. O artista exprime suas fantasias, torna-as aceitáveis e até prazerosas a outros, realizando assim seus desejos e os alheios. O poeta deixa sua fantasia se evadir pelo uso das    metáforas, o romancista, pela criação de histórias, situações e tipos.

       Da literatura, a psicanálise toma referências, exemplos, extrai características que traçam o perfil de um autor, e por meio dela enriquece a própria teoria. Igualmente, a psicanálise oferece aos literatos a oportunidade de utilizar novas metáforas, de aprofundar o processo de criação, de liberação do inconsciente.

        Um sujeito em análise, ao contar e recontar a história de que é o protagonista, passa a interpretar com um novo olhar o livro de sua própria vida, dando-lhe outro sentido, ao tempo em que igualmente vai remodelando esse personagem.

       Um analista é, ao mesmo tempo, um leitor atento. Não um leitor preso à história que lhe narra o protagonista, mas aquele que, por meio de sua atenção flutuante, busca o enunciado na enunciação, o sentido oculto naquilo que lhe está sendo dito. Pela sua presença silenciosa ou pelas intervenções que faz, leva o sujeito a refletir sobre sua própria história e ressignificá-la. Estaria assim na posição de co-autor da nova história?

        O discurso do paciente, assim como um texto literário, demanda interpretação. Existe sempre um sentido manifesto e um sentido latente nos significantes que emergem do dizer do paciente, das suas reticências, esquecimentos e tropeços. Tal sentido revela o caráter ambíguo e equívoco das palavras. A interpretação fornece ao paciente novas significações, como acontece quando se interpreta um texto literário.

        Mas a psicanálise tanto é um instrumento de que o analista se utiliza para trazer à luz e interpretar o conteúdo inconsciente, quanto pode ser utilizada como lente de aumento para o entendimento em profundidade de uma obra, seja romance, poema, filme, pintura, ou outra forma qualquer de manifestação artística, pois são elas expressão do inconsciente, bem como, para encontrar na obra características da personalidade do sujeito de quem receberam a autoria.

         Os romancistas e poetas muito nos podem ensinar sobre a subjetividade humana. Um romance nos revela, por meio dos personagens, traços da vida introspectiva do autor. Os grandes romances têm sido referência para os psicanalistas. Muitos fornecem matéria para estudo. Freud se deu conta disto e não foi à toa que usou e abusou de exemplos e referências literárias em toda a sua obra.

        Para ilustrar nosso trabalho, buscaremos analisar, à luz dos conceitos psicanalíticos, o conto O Espelho, de Machado de Assis.            

        Nesse conto, o personagem principal, Jacobina, narra a alguns amigos um episódio que lhe acontecera quando tinha 25 anos. Aos 25 ele se torna alferes e é assim que passa a ser reconhecido, tanto na família (especialmente por sua mãe, que o chamava “meu alferes”) quanto na sociedade, a este significante se identificando e recalcando sua verdadeira identidade. A convite da tia, vai hospedar-se em sua fazenda e é por ela tratado da mesma forma que a mãe o tratava. A tia põe no quarto dele um enorme espelho, uma das peças mais nobres da casa.

         Certo dia, a tia se ausenta e os empregados, que inicialmente o cortejavam, desaparecem. A solidão e o desamparo deixam Jacobina numa situação de desespero. Frente ao espelho, não se vê, não se reconhece, até o dia em que decide vestir novamente sua farda de alferes.

         De início, o título do conto nos remete à questão da importância do olhar. Do olhar-se e do olhar do outro, do ver-se e do ser visto. Como nos diz Lacan, “eu só vejo de um ponto, mas em minha existência sou olhado de toda parte.”

         Em sua narrativa, Jacobina afirmava a existência de duas almas: “não há uma só alma, há duas (...) uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro (...) A alma exterior pode ser um espírito, um fluído, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. (...) as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira.” Vemos aí a presença de um Outro, representado pela alma exterior. O eu interior, a outra alma, poderíamos entender como o Sujeito do inconsciente? A afirmação de Jacobina sobre a existência de duas almas nos faz pensar que aí está um sujeito dividido.

        “A sala... é agora um mar morto; todos os olhos estão no Jacobina...” Escreve Machado de Assis. Mais uma vez a questão do olhar aparece. Se, ao ser abandonado na fazenda, ele não se reconhece, anos depois, alferes assumido, ele é o sujeito que narra aos amigos a própria história, e os olhares estão fixos nele.

          Diz ele: “Tinha 25 anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da guarda nacional. (...) Minha mãe ficou tão orgulhosa! Tão contente! Chamava-me o seu alferes!” Eis a relação com o Outro materno, a importância do discurso deste Outro, que o nomeia alferes, que lhe imprime este significante. Não é mais o filho, mas o alferes.        

         Continuando sua história, conta Jacobina: “Vai então uma das minhas tias, D. Marcolina, (...) Chamava-me também o seu alferes! (...) E sempre alferes; era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda hora. Eu pedia-lhe que me chamasse Joãozinho, como dantes; e ela abanava a cabeça, bradando que não, que era o senhor alferes.”Essa tia parece representar a continuidade da mãe. Ambas provocam nele a perda da verdadeira identidade. Para a mãe, não é mais o filho, para a tia, não é mais o sobrinho. Para ambas e os demais, é apenas o senhor alferes. E como afirma o próprio personagem, “O alferes eliminou o homem”...

         Em outro trecho, ele diz: “Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. (...) A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado. (...) ...em que a consciência do homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva e intensa.” A importância dada pelo social à posição, ao posto, reforçaram o significante. Ele só podia existir dentro da farda. Tomado pela palavra, Jacobina perde sua identidade. O discurso e o olhar do Outro eram o que lhe dava reconhecimento. Olhar do Outro, projetado na imagem do senhor alferes.

          Ao se ver só, sente-se abandonado, perdido. Abandono que lhe gera um sentimento estranho, que significa aí o confrontar-se com a falta, o corte, a castração. Passa a utilizar então mecanismos de defesa: atividades físicas, trabalhos intelectuais, o sono... para suportar a sensação esquisita de uma não existência, já que não havia agora o olhar nem a palavra do Outro que lhe remetesse a sua identidade. Conforme Lacan, “Na medida em que o olhar, enquanto objeto a pode vir a simbolizar a falta central expressa no fenômeno da castração, e que ele é objeto a reduzido... a uma função evanescente – ele deixa o sujeito na ignorância do que há para além da aparência”.

         Prosseguindo, diz Jacobina: “O sono dava-me alívio... o sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me, orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam alferes... (...) quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do meu ser novo e único, - porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não tornar...” O sono era um mecanismo de fuga que lhe colocava em contato com o desejo de ser alguém. A tal alma interioraparecia apenas nos momentos de vigília e ele não a reconhecia. No seu sonho, ele deseja que as pessoas retornem, que voltem a lhe olhar, a lhe falar, que se acabe a sua solidão. No conteúdo manifesto, aparece a alma exterior. No conteúdo latente, estaria o seu desejo de voltar a existir?

         Sentia-se como um fantasma a vagar pela casa, a procurar o que lhe preenchesse o tempo, o que o livrasse da angústia, da solidão, do desamparo. Passa a ter medo de olhar-se no espelho e não se reconhecer, de não encontrar ali sua própria identidade. Certo dia, toma coragem e olha-se, mas não se vê, não se reconhece diante do imenso espelho.

         Há um episódio na vida de Freud, em que, viajando num trem, de repente a porta do seu compartimento se abre devido a um solavanco e ele vê um homem estranho entrar em seu vagão. No entanto, o “intruso”, era sua própria imagem no espelho. Antipatiza com a própria aparência, não se reconhece. Segundo Quinet, Freud é afetado pelo objeto olhar que emerge do espelho, olhar que desfaz a imagem especular impedindo-o de reconhecer-se: ele é o objeto do olhar antipático do Outro. Tem algo de semelhante no que acontece com Jacobina, só que ele não se vê nem simpático nem antipático, mas deformado, inexistente. Ele simplesmente não se vê!

         Assustado por não se reconhecer diante do espelho, Jacobina lembrou-se de vestir a farda de alferes e então ele consegue se ver. “Daí em diante, fui outro”, diz ele. A farda lhe restitui a identidade. É ela a metáfora que lhe remete ao significante alferes (seu eu ideal?). A farda o identifica, remete-o à palavra e ao olhar do Outro, dá-lhe existência. Jacobina, tão impregnado estava desse olhar, que já não podia existir por si mesmo. O ver-se depois de pôr a farda é o existir pelo olhar do Outro materno e do Outro social.

          A análise deste conto nos mostra o quanto a psicanálise enriquece uma interpretação de texto e o quanto um texto literário pode enriquecer a psicanálise. Tanto podemos analisar psicanaliticamente uma criação literária, como podemos enriquecer nosso processo criativo, a partir de reflexões que são frutos de uma análise. Sublimar é desviar o desejo para o campo do simbólico.

        O sujeito, numa análise, conta a sua própria história, sua verdade. Num romance, num conto, são elementos do inconsciente de um sujeito que permeiam a história que é contada, sua verdade está subjacente à ficção.               

        Assim, se um autor pode aprofundar e enriquecer sua obra à luz da teoria psicanalítica ou de um processo analítico a que se submeta, um analista, quanto mais seja um bom leitor, tanto mais entenderá do inconsciente. Para concluir, eu diria que a relação entre a literatura e a psicanálise é uma antiga relação de amor. Um amor que se pretende eterno.

                                                    2007

COIMBRA, Maria Lucia Salvo. Errar é  humano  portanto  é   preciso  escrever. Belo Horizonte: Circulo Psicanalítico de Minas Gerais, 2007.

O trabalho discorre sobre alguns aspectos da articulação e separação entre a escrita em psicanálise e em literatura. Interroga sobre por que escrever, o que é um autor, um leitor, o que é o retorno a Freud lacaniano. Analisa o enodamento estilo, formação, transmissão e real, concluindo: o singular de uma escrita psicanalítica é seu sentido real.

 

2008

PORTUGAL, Ana Maria. O vidro da palavra – o estranho, literatura e psicanálise. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

Para Walter Benjamim, o vidro representa a transparência, a renúncia à intimidade e à subjetividade. Para Maurice Blanchot é a separação necessária, o impedimento da utilização dos objetos de prazer e interesse; o vidro é a estranheza. E se chama “Das Unheimliche” (“O Estranho”) ensaio de Sigmund Freud, de 1919, tomado pela autora como fio condutor de sua pesquisa. Entendendo a literatura como representação exacerbada da experiência humana, Ana Maria Portugal debruça-se sobre a afinidade de Freud com a literatura. Neste livro, o estranho figura como objeto limite entre a literatura e a Psicanálise. Freud lança mão do texto literário não só para ilustrar alguma questão teórica, mas também como possibilidade de enunciá-la ou introduzi-la. As referências literárias do pai da Psicanálise são analisadas por intermédio de intelectuais do século XX: Benjamim, Barthes, Borges e Blanchot. Outro nome que aparece neste livro, com menção aos seus textos atemporais é Shakespeare, com Hamlet e Macbeth, entre outros. Com a proposta de rastrear as relações entre a teoria da Psicanálise e a ficção, a autora indaga: o trabalho poético é essencial para a teoria e a clínica do inconsciente? E em que medida o inconsciente como o estranho pode esclarecer algo do trabalho poético?

                                                  * * *

 

             Sigmund Freud e Seu Duplo

O criador da psicanálise considerava o escritor Arthur Schnitzler seu ''gêmeo psíquico''. O autor de Crônica de uma Vida de Mulher, romance que só agora chega ao Brasil, desenvolveu no domínio da arte muitas das idéias pensadas por Freud no campo da ciência

(Bravo, ago;/2008)

Por Noemi Moritz Kon

 Numa carta datada de 14 de maio de 1922, Sigmund Freud faz — segundo suas próprias palavras — uma "confissão". Já consagrado como criador da psicanálise e dizendo-se próximo do "fim da vida", o médico vienense afirma ao destinatário que por muitos anos o havia evitado, pois o tomava, com admiração e temor, como seu "duplo". Alguém que, como ele, era "um explorador das profundezas", que apreendia as "verdades do inconsciente" e desmontava "as convenções sociais". "Sempre que me deixo absorver profundamente por suas belas criações", escreve Freud ao seu interlocutor, "parece-me encontrar, sob a superfície poética, as mesmas suposições antecipadas, os interesses e conclusões que reconheço como meus próprios." E concluía: "Ficou-me a impressão de que o senhor sabe por intuição — realmente, a partir de uma fina auto-observação — tudo que tenho descoberto em outras pessoas por meio de laborioso trabalho".
Quem poderia ser esse a quem Freud se ligava por "uma estranha familiaridade", alguém a quem se equiparava no trabalho monumental de construir a psicanálise e na escuta do discurso das mulheres e da histeria? Um discurso que, sistematizado em sua obra, estabeleceu o papel decisivo do desejo sexual nas ações humanas e permitiu a irrupção no pensamento ocidental das idéias de inconsciente e do homem dividido, cruciais para as décadas que viriam. O "duplo" assim declarado por Freud chamava-se Arthur Schnitzler (1862-1931). Conhecido como doctor poe­ta, o dramaturgo, contista, ensaí­s­ta, novelista e romancista foi um dos poucos escritores da Viena fin-de-siècle que adquiriu importância duradoura. Neste mês, sai no Brasil — pela primeira vez — o romance Crônica de uma Vida de Mulher, um dos livros de Schnitzler que mostram a proximidade de seus temas com os de Freud.


Em parte, essa proximidade pode ser explicada pela origem de ambos — os dois eram judeus destacados da burguesia da Viena da virada de século, centro do Império Austro-Húngaro, cuja prosperidade e vigor cultural marcariam profundamente o pensamento ocidental nas décadas subseqüentes. Enquanto Freud era filho do pequeno comerciante Jacob Freud, Schnitzler provinha de uma família de médicos da alta burguesia liberal. Seu pai, Johann Schnitzler, era reconhecido por seu trabalho em consultório particular, como editor do Jornal Médico de Viena e por seu cargo de direção na Policlínica da cidade. Nesse meio, Schnitzler cresce entre apreciadores das artes e gente do teatro, recebendo sólida instrução em música e línguas estrangeiras. Precoce, aos 18 anos já tem 23 dramas acabados e 13 iniciados.

"NÃO SE PODE SER PLENO POETA E PLENO MÉDICO AO MESMO TEMPO" (Schnitzler, numa anotação no diário, em 1880)

Apesar de suas reconhecidas qualidades artísticas, Schnitzler cede à pressão paterna e se decide pela profissão de médico. Um ano depois de começar os estudos, em 15 de maio de 1880, descre­ve em seu diário o dilema que vive: "Posso medi­tar o quanto quiser sobre a íntima ligação entre medicina e poesia, e, não obstante, permanece verdade que não se pode ser pleno poeta e pleno médico ao mesmo tempo. Jogado para lá e para cá entre ciência e arte, não entrego meu pleno eu a nenhuma das duas e me atrapalho pela poesia no trabalho e pelo trabalho na poesia". Ainda assim, Schnitzler mantém as tradições familiares. Recebe seu título de doutor, especializa-se em laringologia e, em 1886, faz seu estágio médico — como Freud — na clínica de Theodor Meynert, renomado psiquiatra que trabalha experimentalmente com as técnicas de hipnose e sugestão.


Freud e Schnitzler poderiam ter seguido a mesma carreira. Ironicamente, o mesmo evento — a morte de seus pais — os levou a caminhos opostos. Com a morte de Johann, em 1893, Schnitzler se afastou da medicina para tomar em definitivo o caminho da literatura; já a morte de Jacob, em 1896, foi a oportunidade para que Freud criasse sua grande obra, A Interpretação dos Sonhos (1900). Nela, foram construídos, a despeito do repúdio da intelligentsia médica e de uma sociedade de inclinações anti-semitas, os alicerces de sua nova ciência: um aparelho psíquico inédito e com dinâmica própria, no qual surgiam figuras conceituais tais como o inconsciente, o recalque e a sexualidade infantil.


Cada um a seu modo, os dois denunciaram a hipocrisia de sua sociedade, a falsa harmonia de um império, o Austro-Húngaro, assolado por diferenças sociais e nacionais — tensões que resultariam, no fim da Primeira Guerra Mundial, na desintegração do país. Para ambos, a espessura do social é diminuta ante a força dos impulsos sexuais e do determinismo psíquico calcado na polaridade amor e morte. O jogo político é neutralizado, sendo reduzido a categorias psicológicas. Tanto na obra de Freud como na de Schnitzler, o tom é de ceticismo. Ceticismo com relação a uma sociedade que se desarranja e busca escamotear sua face real. Ceticismo quanto às capacidades humanas de dar conta de seus problemas pela via da razão e da moral.


Assim como a de Freud, também a obra de Schnitzler provoca escândalo. Pois, à diferença da maior parte da literatura austríaca da época, que ressaltava a suposta harmonia do império comandado pela dinastia dos Habsburgo, Schnitzler evidencia e combate a hipocrisia da sociedade decadente. É contra o mito habsbúrgico que se manifesta Schnitzler — mito que, como diz o crítico italiano Claudio Magris, "não é um simples processo de transfiguração do real, próprio de toda atividade poética, mas é a completa substituição de uma realidade histórico-social por uma outra fictícia e ilusória, é a sublimação de uma sociedade concreta por um pitoresco, seguro e ordenado mundo de fábula".


Schnitzler abordará, em suas obras, homens e mulheres em situações de desespero pela ruína financeira ou familiar, pelo jogo, pelo endividamento ou, ainda, pelo incesto, adultério e abandono, mas que ainda assim se mantêm fiéis aos códigos consagrados de aparência social. Exibe com crueza os desejos e a repressão na mulher e as relações de fachada dos "bons casamentos". Evidencia também a hipocrisia dos princípios religiosos e expõe os sentimentos anti-semitas da sociedade vienense.

"AMBOS, O POETA E o PSICANALISTA,
OLHAMOS ATRAVÉS DA JANELA DA ALMA"
(Schnitzler, numa entrevista em 1927)

Com Freud, Schnitzler compartilhará a idéia de que a verdadeira motivação humana são os desejos se­xuais, desejos capazes de destruir todas as barreiras sociais e morais. É assim com sua Senhorita Else (1924), que, por meio de um monólogo interior, denuncia ter sido oferecida a um lascivo barão como pagamento das dívidas de jogo do próprio pai. Ou, ainda, com o belo e próspero casal de Breve Romance de Sonho (1926), que tem sua vida totalmente transformada no momento em que Albertine expõe para o dr. Fridolin seus desejos eróticos. A história foi adaptada com sucesso para o cinema por Stanley Kubrick em De Olhos bem Fechados (1999). Em Crônica de uma Vida de Mulher (1928), Schnitzler se detém de maneira amarga na vida de desventuras de Therese Fabiani. Após a derrocada da família, motivada pela loucura do pai, ela enfrentará a sociedade corrompida e decadente da Viena daquele período. Desorientada — no sentido de ser desprovida de um norte moral —, ela pula de emprego em emprego, buscando sua redenção em um casamento que não se concretiza. Em uma ocasião, engravida de galanteador pobre. Anos mais tarde, ela será morta pelo próprio filho, um ilegítimo como muitos daquele tempo.


"Schnitzler", escreve o estudioso austríaco Wolfgang Bader, "sempre atravessa os limites do que é meramente agradável e do tabu moral, indo em direção à verdade não expressa. O que irritava a mentalidade do público não era o fato de aquilo ser verdadeiro, mas tão-só ter sido mostrado e, com isso, ter acabado com o consenso da bela ilusão sobre o qual a sociedade fundava sua coesão."


A proximidade com a psicanálise se dá também no nível formal. Em 1901, em O Tenente Gustl, Schnitzler introduz o fluxo de consciência na narrativa de língua alemã, o que, na visão do crítico tcheco J. P. Stern, seria "o correspondente do mé­todo psicanalítico" na literatura germânica. Mas, mesmo nesse texto que poderia traduzir prioritariamente uma crítica contundente às instituições sociais, Schnitzler se atém aos conflitos internos da personagem, dando assim a entender que, de seu ponto de vista, o social parece ter pouca importância diante da intensidade dos conflitos internos.


Esse percurso foi acompanhado à distância por Freud. Ao longo de suas trajetórias, os dois médicos — o cientista e o poeta — pouco tiveram contato. À "confissão" feita por Freud seguiram apenas alguns breves encontros. No mais, instalou-se o silêncio, apenas adornado por alguns bilhetes, cartões de visita e troca de cumprimentos. Na referida carta de 1922 a Schnitzler, Freud se recrimina, pois "durante todos esses anos nunca procurei sua companhia e usufruí uma conversa com o senhor". Freud acreditava, de fato, que o escritor havia se aproximado por demais do universo próprio à psicanálise, mas por meios muito diversos. E isso o incomodava. Compreende-se, então, que o receio de uma maior intimidade com o poeta por parte do médico denuncia a profunda ambigüidade, marcada pela sedução e também pelo terror, que o liga à fantasia, à imaginação, suporte maior da criação artística.


Em Estudos sobre a Histeria (1893-1895), Freud escreve com certo desconforto: "A mim causa singular impressão comprovar que minhas histórias clínicas carecem, por assim dizer, do severo selo da ciência, e que apresentam mais um caráter literário. Mas consolo-me pensando que este resultado depende inteiramente da natureza do objeto, e não de minhas preferências pessoais. O diagnóstico local e as reações elétricas não têm eficácia alguma na histeria, enquanto uma exposição detalhada dos processos psíquicos, tal como estamos habituados a encontrar na literatura, me permite chegar, por meio de um número limitado de fórmulas psicológicas, a um certo conhecimento da origem de uma histeria".
Assim, da parte de Freud, assumir diante de um outro a estranha familiaridade que o uniria a seu duplo-Schnitzler traduz um intenso trabalho de superação da resistência diante da percepção da atividade da fantasia em sua própria disciplina. Freud preferiria abrigar-se sob o severo selo da ciência, distanciando-se do solo incerto sobre o qual habita o criador. Já Schnitzler parece ter superado seu dilema juvenil, assumindo sem medo a via artística. Em uma entrevista, em 1927, o escritor austríaco faz uma alusão à carta de Freud transcrita acima: "Por algum aspecto eu me constituo no 'duplo' do professor Freud. Ele me definiu certa vez como seu gêmeo psíquico. Na literatura percorro a mesma estrada sobre a qual Freud avança com uma temeridade surpreendente na ciência. Entretanto, ambos, o poe­ta e o psicanalista, olhamos através da janela da alma".

2009

CARONE, André. O escritor Freud e a psicanálise. Ciência e Cultura, v. 61, nº 2, 2009.

2009

PASSOS, Cleuza Rios P. As armadilhas do saber: relações entre literatura e psicanálise. São Paulo: Edusp.

Os ensaios que compõem este livro, escritos por Cleusa Rios Passos em momentos diferentes e agora reunidos para esta publicação, têm em comum o objetivo de verificar a presença e a transmutação de conceitos e procedimentos psicanalíticos em textos da prosa, da canção popular e do teatro da literatura brasileira. Os textos analisam autores como Machado de Assis, Chico Buarque, Oswald de Andrade, Drummond, Murilo Mendes, Cecília Meireles e Clarice Lispector, sempre sob a perspectiva da crítica literária. Segundo a autora, a leitura se apoia no que considera subsídios psicanalíticos para a interpretação literária, enfatizando que não pretende reduzir o literário a exemplos da psicanálise, e observando “os limites entre os dois campos, evitando que um sirva de mera ilustração do outro, para, isto sim, estabelecerem confluências entre si”.

 

MARTINS, Maria Helena. Machado de Assis e Alain Robbe-Grillet nos meandros do ciúme. (palestra)*           


    A literatura de ficção é pródiga em histórias de infidelidade amorosa e seu correlato, o ciúme romântico. Vou assinalar alguns traços dessa situação, escolhendo uma dupla de escritores, no mínimo, curiosa: o nosso  Machado de Assis e o novelista francês Alain Robbe-Grillet. Tomo o texto mais emblemático do tema, na literatura brasileira, o romance Dom Casmurro (1899), e elejo para contrastá-lo O ciúme (1957), nouveau roman, de Robbe-Grillet, que tornou seu autor internacionalmente conhecido. Além do tema do ciúme, essas duas obras compartilham pouca coisa. Cerca de meio século separam-nas, mas é tempo suficiente para revelar transformações e embates pelos quais a ciração literária passou. Não se pode descontextualizar esses escritos, esquecer que entre ambos aconteceram duas Guerra Mundiais, Proust e James Joyce. Freud e Jeidegger, tudo isso implicando mudanças radicais no universo social, nas relações interpessoais, no conhecimento do hohmem sobre si mesmo nas manifestações artísticas em geral. Ademais, a constituição de cada um desses textos, por si só já indica como ambos são histórica e literalmente originados e plasmados por seus autores. Vejamos então como a questão do ciúme aparece nesses textos.


     Machado, em Dom Casmurro, está no ápice de seu domínio de um realismo literário intimista, com pleno conhecimento da criatura-personagem, em suas ambivalências e ambiguidades, insinuações e cismas, deixando o leitor entrevê-las pelas franjas do discurso e nos volteios da linguagem.


     O narrador-personagem, Dom Casmurro ou Bento Santiago ou Bentinho, relata sua história em flashback na 1ª. pessoa. Em tom memorialista, com intimismo contido, mostra seu ponto de vista – e só o seu – com suposições, mas sem relatar o que se passa na mente das demais personagens; é apenas um  observador - delas e de suas ações. Diz ele sobre o que vai relatar: “... vou deitar ao papel as reminiscências que vierem vindo. Desse modo, viverei o que vivi (...)  (p.9- Martins Fontes, 1988).


    Tudo indica que o leitor, cortejado pelo narrador com chamamentos não raro irônicos, irá acompanhar a narrativa pari passu. Mas esta não é linear e o confessional de fato não será o tom predominante. A ironia e o humor se encarregam de modular eventuais arroubos emocionais ou o confidencial pleno. Até porque, concordando com um velho tenor, está Dom Casmurro ironicamente convencido de que “a vida é uma ópera”, uma representação, ainda que verossímil: “Cantei um duo terníssimo, depois um trio, depois um quatuor ...” 


    Mas Bentinho se permitirá essa auto-ironia  lá as tantas, porque só no capítulo CVII (p.107) vai registrar uma primeira manifestação ciumenta, íntima e metaforicamente revelada, ao se referir ao mar que teria distraído a atenção de Capitu, enquanto ele lhe falava de astronomia: "... não fora o mar que lhe provocara ciúmes, mas o que poderia estar na cabeça dela". (p, 264).  Já aí se percebe um processo emocional em construção, não ligado a fatos, mas a conjeturas.    


    Assim se insere o ciúme no contexto ficcional, sutilmente, entremeado de dúvidas que logo dão lugar à certeza. Bentinho, em tom de cumplicidade com o leitor, vai desvelando o que se passa consigo:

    “Por falar nisto, é natural que me perguntes se, sendo antes tão cioso dela, não continuei a sê-lo apesar do filho e dos anos. Sim, senhor, continuei. Continuei a tal ponto que o menor gesto me afligia, a mais ínfima palavra, uma insistência qualquer. Muita vez só a  indiferença bastava. Cheguei a ter ciúme de tudo e de todos. Um vizinho, um par de valsa, qualquer homem, moço ou maduro, me enchia de terror ou desconfiança”. (p.279)

    Eis um quadro típico da representação do ciúme amoroso, que torna o ciumento um obsessivo, e é esse quadro que a literatura mais sabe explorar, levando, não raro, a  desfechos catastróficos, como o que anuncia Dom Casmurro:


    “Quando me achei com a morte no bolso senti tamanha alegria como se acabasse de tirar a sorte grande, ou ainda maior, porque o prêmio da loteria gasta-se, e a morte não se gasta.” (p.323)


    Machado prolonga esse anti-climax numa cena em que – desviando-se da finalidade inicial (matar-se), Dom Casmurro quase obriga o filho a tomar o veneno. Essa cena - e ante  reiteradas alusões do marido a seus amores com Escobar, já então morto -  leva Capitu ao desabafo: “Pois até os defuntos! Nem os mortos escapam aos teus ciúmes” (333). E assim fica selado e qualificado o comportamento doentio de Bentinho, por ele mesmo relatado.


    À revelia de um possível desfecho de sangue, dá-se, porém,  um acerto socialmente aceitável: a família embarca para a Europa, de onde Bentinho volta e retorna algumas vezes, até não deixar mais o Brasil, onde recebe o filho, já adulto, quando então declara:     “... posto que a idéia da paternidade do outro me estivesse já familiar, não gostava da ressurreição”. (p346).


    E é essa  fleuma que envolve o final da narrativa, embora ele ainda relembre “os olhos de ressaca”, de “cigana oblíqua e dissimulada”. Passo então, ao livro de Robbe-Grillet, O Ciúme.

    O autor pertence ao grupo dos escritores que, na década de 50-60 pretendem desconstruir o romance convencional, criando o nouveau roman. Este é proposto como uma narrativa em que a história dá lugar a pequenas sequências de acontecimentos sem continuidade cronológica, assim como as personagens não são apresentadas pelo que pensam ou sentem, mas apenas em ações; portanto se trata de um processo bastante diferente do realizado no romance convencional, que enfatiza a perspectiva psicológica, a história, o enredo.


    O autor joga duplamente com o sentido do título da obra. Por um lado, trata do ciúme (jalousie) de um anônimo (supostamente o marido) que espia sua mulher (identificada apenas como A...) e o amigo que ela recebe,  Franck, segundo insinua o narrador, amante dela. Por outro lado, é atrás de uma persiana (também jalousie em francês) que ele os observa, como se estivesse onipresente. Assim, o esquema do livro pode ser visto como o do clássico triângulo amoroso.


    Cabe aqui assinalar o que escreve Donatella Marazziti,  ao tecer considerações sobre  as origens do vocábulo ciúme:


    Em francês, jaloux corresponde ao adjetivo ciumento  (geloso, em    italiano), mas significa também cego e, como substantivo, jalousie,  além de ciúme, indica persiana de barras horizontais, através da qual se pode perscrutar sem ser visto. Mesmo em italiano, manteve-se o significado o substantivo gelosia para conotar  persiana. (...e viveram ciumentos & felizes para sempre. Porto Alegre, Casa Editorial Luminara, 2009, p. 62-3)


    Pois o narrador anônimo, atrás da persiana, se põe a descrever detalhada e obsessivamente o cenário dessa trama ciumenta, como se uma lente substituísse seu olhar. Ou, como declara Robbe-Grillet, como se o narrador estivesse ausente do romance, “sua consciência é inteiramente voltada para o exterior e ele não observa jamais sua própria interioridade”  ( p. 86 –Préface de Alain Robbe-Grillet, Préface à une vie d'écrivain, Editions du Seuil, 2005.


    Entre a descrição de cenas e cenários e pequenas sequências narrativas, repetidas com mínimas variações e pequenos diálogos, se desenrola o relato.

    Trata-se de um texto exemplar do nouveau roman. O que prevalece é a descrição pura e simples de ambientes ou de ações, como a de A ... penteando os cabelos e o observador ou suposto marido  circulando por espaços da casa, aparentemente sem outro propósito que o de descrever  tudo em pormenor. ( p. 38-39):

   Desfeito totalmente o penteado, a escova desce com um ruído leve que lembra o sopro e a crepitação. Mal chegada embaixo, muito rapidamente, ela sobe em direção à cabeça, onde golpeia com toda a sua superfície os cabelos, antes de deslizar de novo sobre a massa negra , oval cor de osso cujo cabo, bastante curto, desaparece quase totalmente na mão que o segura com firmeza. (O Ciúme. Rio de Janeiro, Nova Fronteira,1986, p. 38).


    Embora a questão do ciúme não se explicite, o título do livro e a perspectiva voyerista levam a pensar em triângulo amoroso.  Mas não se espere uma história, isto é, uma narrativa de acontecimentos cronologicamente apresentados. O texto começa assim:


    “Agora, a sombra da coluna – a coluna que sustenta o ângulo sudoeste do telhado – divide em duas partes iguais o ângulo correspondente da varanda. Essa varanda é uma larga galeria coberta, cercando a casa por três lados. Como sua largura é igual na parte central e nas partes laterais, o traço da sombra projetada pela coluna chega exatamente à quina da casa; mas detém-se ali, pois apenas as lajes da varanda são alcançadas pelo sol, ainda demasiado alto no céu. (....) Assim, neste instante, a sombra da beirada do telhado coincide exatamente com a linha, em ângulo reto, que formam a varanda e as duas faces verticais da quina da casa.

            
    Agora, A... entrou no quarto, pela porta interna que dá para o corredor central. Ela não olha para a janela escancarada, por onde, desde a porta, veria este canto da varanda. Voltou-se agora para a porta a fim de fechá-la. (Id. Ibid. p.7)

     O narrador de Robbe-Grillet parece uitlizar, para registrar a cena, a impessoalidade da "objetiva", isto é, da lente da câmera fotográfica ou de filmar. Tal recurso tornaria o registro mais imparcial, não teria a subjetividade do observador humano, como a que pertuba a visão do narrador-personagem de Machado.
            

    Esse exercício de disciplina obsessiva ( patológica diriam os analistas) tende a irritar o leitor, que fica em suspenso, à espera de algo mais que não acontece... ou acontece a meias.  Enfim, cabe ao leitor construir a história com indícios espalhados pelo texto, como pistas para desvendar um acontecimento, num romance policial. Melhor, num filme policial, pois o que mais se sabe é dos exteriores, do cenário, e nada do que se passa na mente das  personagens.

    Os diálogos e atutudes de A... e Franck parecem artificiais e dissimulados como se soubessem estar sendo vigiados. Cenas, gestos e falas se repetem qual flashes cinematográficos. Aliás, como cineasta Robbe-Grillet usa recursos semelhantes. Basta lembrar Ano passado em Marienbad (1961), dirigido por Alain Resnais com roteiro de Robbe-Grillet.


    Enfim, aos poucos o desconjuntado de fios soltos começa a fazer sentido ao leitor. Uma carta que A... escrevia passa para um bolso de Franck ...p.60 O anônimo narrador espera A ...na casa vazia... Mas A ... não volta... Nem Franck. Ambos, porém,  voltam e, num ritornello,  tudo recomeça ...

   Os narradores de Machado e de Robbe-Grillet  estão longe de terem vivido “ciumentos e felizes para sempre”. Bentinho não supera seu ciúme, se deixa envolver pelo ceticismo e desencanto, enquanto o narrador anônimo de Robbe-Grillet, permanece enredado em sua sondagem obsessiva e doentia. O que aconselharia  Dra. Donatella a cada um deles?  

__________________

*Palestra realizada no dia 6/11/2009, na Livraria da Vila, durante o lançamento do livro ...e viveram ciumentos e felizes para sempre (Casa Editorial Luminara), para recepcionar sua autora, Dra. Donatella Marazzit, pesquisadora da Universidade de Pisa. Saiba mais sobre o livro no site: http://www.celpcyro.org.br

____________________

Maria Helena Martins é

Doutora em Letras, Professora de Literatura da USP e UFRGS e Diretora do Centro de Estudos de Literatura e Psicanálise Cyro Martins-CELPCYRO

(www.celpcyro.org.br), sediado em Porto Alegre, RS

                                                     * * *

 

Março/2010

CASTELO, José. Sigmund Freud: do Divã para os Livros. Revista Bravo! março, 2000.

Uma nova edição das obras de Sigmund Freud mostra como os casos clássicos da psicanálise têm pegada literária, e podem ser lidos como romances

Em 1930, aos 74 anos de idade, Sigmund Freud recebeu a notícia de que a cidade de Frankfurt lhe concedera o Prêmio Goethe. Foi a única honraria importante que o criador da psicanálise recebeu em vida - uma láurea dedicada não aos cientistas, mas aos escritores. Antes dele, foram premiados o poeta Stefan George, o biógrafo Albert Schweitzer e o filósofo Leopold Ziegler. Depois dele, a cidade homenageou escritores como Hermann Hesse, Thomas Mann e Amos Oz. A emoção de Freud foi mais forte porque o prêmio leva o nome de um de seus escritores favoritos, Johann Wolfgang von Goethe. Um dos mais importantes biógrafos do cientista, Peter Gay, relata que ele recebeu a notícia com grande espanto. Naquele ano, já tinha desistido de seu sonho, o Nobel de Medicina. Não podia esperar que a literatura o consagrasse.

O prêmio ficou como um sinal, definitivo, das profundas relações de Freud e da psicanálise com a literatura. Indícios importantes surgem bem antes disso. Já em 1907, no auditório de seu editor, Hugo Heller, Freud fez uma célebre palestra sobre a importância do devaneio na criação literária. Publicada no ano seguinte sob o título de Escritores Criativos e Devaneio, ela é, até hoje, uma das leituras favoritas dos autores. Ainda antes, em A interpretação dos Sonhos, de 1900, já se evidenciava seu interesse pelas narrativas. Sonhos nada mais são que relatos imaginários. Freud nunca escondeu que, entre suas leituras de fundo, se destacavam as obras de três grandes escritores: Goethe, Friedrich Schiller e William Shakespeare. Entre seus contemporâneos, tinha especial interesse pela obra do austríaco Arthur Schnitzler. Lia com prazer, ainda, as histórias de detetive da britânica Agatha Christie.

Assim, a psicanálise sofre, desde o início, forte influência da literatura. A teoria psicanalítica é, em grande parte, a narrativa de casos clínicos que podem ser lidos como fabulosos romances. Uma nova tradução das obras de Sigmund Freud, lançada pela editora Companhia das Letras e que chega às livrarias neste mês, é uma prova disso [leia exemplos ao longo desta reportagem]. Uma personagem como Anna O. (na verdade, a líder feminista e escritora Bertha Pappenheim) é hoje muito mais célebre que grande parte dos personagens literários de seu tempo. Ela se tornou famosa não por protagonizar um romance, mas como a figura central dos Estudos Sobre a Histeria, uma das peças fundamentais da teoria analítica, que Freud escreveu em colaboração com Josef Breuer. Tratando-a no início dos anos 1880, e depois de tentar sem sucesso a hipnose, o Dr. Breuer resolveu pedir que Anna simplesmente falasse. Seu tratamento deu origem ao que o próprio Breuer chamou de "método catártico". Mais inspirada, Anna preferiu batizá-lo de "cura pela fala". Quando começou a relatar sua vida, ela traçava, sem saber, o destino narrativo da psicanálise. O "Pequeno Hans", menino de cinco anos que se recusava a sair de casa com medo de ser mordido por um cavalo, ponto de partida das investigações freudianas a respeito das fobias, é outro personagem cuja vida se assemelha à ficção. A partir dele, Freud cunhou a expressão "romance familiar", isto é, a história imaginária que toda criança inventa a respeito de suas origens. Ele desenvolveu essa idéia em Romance Familiar do Neurótico, ensaio de 1909.

ratos invasores

Ernst Lanzer, o célebre "Homem dos Ratos", que sofria de uma neurose obsessiva - temia que ratos invadissem o ânus da mulher que amava - se tornou personagem a que os psicanalistas do mundo inteiro sempre retornam. Assim como o famoso presidente Schreber - Daniel Paul Schreber, Presidente do Tribunal de Recursos de Dresden, que, a partir de suas Memórias, publicadas em 1903, possibilitou a Freud escrever um célebre estudo sobre a paranoia. A neurose de Schreber foi desencadeada por uma derrota eleitoral. A de Lanzer, pela visão de uma técnica de tortura. O mesmo acontece com o famoso "Homem dos Lobos" - Sergei Pankejeff -, protagonista de um caso clínico que inspirou a Freud uma reflexão sobre a neurose infantil. Tais relatos têm tanta pegada literária que são capazes de inspirar obras de ficção. A pedido de BRAVO!, o escritor Moacyr Scliar criou um conto a partir da história do Homem dos Lobos [leia texto na página 80].

O inverso também é verdadeiro. Grande parte da teoria psicanalítica se inspira em obras da literatura, pela simples e boa razão de que Sigmund Freud era um grande leitor. Já em A Interpretação dos Sonhos, o cientista se refere aos sentimentos de culpa experimentados pelo príncipe Hamlet, diante de seu amor pela mãe e seu ódio ao pai. A hesitação de Hamlet em vingar a morte do rei, pensava Freud, era provocada por essa culpa avassaladora. Matar o tio paterno, Claudio, assassino de seu pai, era, de alguma forma, matar a si mesmo - já que, quando criança, ele tivera o mesmo desejo de parricídio. As dúvidas de Hamlet resumem, assim, o grande impasse que ocupa o centro da teoria psicanalítica, batizado "complexo de Édipo". O qual, por sua vez, é uma apropriação teórica do Édipo Rei, a célebre tragédia do grego Sófocles.

o sumiço das cinzas

Da mesma forma que a literatura influenciaria a psicanálise, a teoria criada por Freud contaminaria grande parte da ficção do século 20, inclusive no Brasil. Toda a reação intimista à geração conhecida como "Romance de 30", de cunho regionalista, se baseia, em parte, no legado psicanalítico. Um romance exemplar como A Crônica da Casa Assassinada, que Lúcio Cardoso publicou em 1959 e que sintetiza essa reação ao realismo e ao regionalismo, é um exemplo forte dessa influência. Cardoso era católico, mas, por ser também um homossexual assumido, encarnava em si próprio os conflitos que a psicanálise investiga. Mesmo outros escritores católicos, como Octavio de Faria e Cornélio Pena, não escondem a sombra da psicanálise. Também a obra de Clarice Lispector está, toda ela, marcada pela inflexão psicanalítica. Como se sabe, Clarice se submeteu a duas análises longas, com os doutores Inês Besouchet e Jacob Azulay. Escritores como Hilda Hilst, Lygia Fagundes Telles e Ana Cristina Cesar, com narrativas que se tornam grandes viagens interiores, são outros exemplos dessa influência. Pela importância que atribui aos mitos, um escritor como João Guimarães Rosa envereda pelo mesmo caminho. Não podemos esquecer que, na tragédia de Édipo, a figura da Esfinge ocupa um lugar central. Em toda a obra de Freud, os mitos têm participação decisiva. Na própria relação entre o psicanalista e seu paciente, devido ao que Freud chamou de "transferência", o analista ocupa esse lugar de Esfinge.

Quando, em 1938, um ano antes de morrer, Freud chegou a Londres, em fuga do nazismo, se comoveu, em particular, com a atenção que recebeu de grandes escritores. Virginia Woolf, Stefan Zweig, Arthur Koestler e H. G. Wells estão entre aqueles que foram pessoalmente lhe dar as boas vindas. Em 1939, quando morreu, suas cinzas foram depositadas em uma urna grega, do século 4 a. C.. A urna foi roubada e as cinzas desapareceram - sinal, talvez, da persistência do enigma de que nem a psicanálise, nem a literatura podem resolver. Território secreto, mais de perguntas do que respostas, no qual ambas se desenvolvem.

2010

DACORSO,, Stetina Trani de Meneses e. Psicanálise e crítica literáriaEstudos de Psicanalise (Belo Horizonte), nº.33. jul. 2010

A psicanálise sempre se utilizou da literatura desde Sigmund Freud. A literatura, por sua vez, também se utiliza da psicanálise seja na construção de seus textos, seja na forma de crítica literária. Este artigo tem por objetivo analisar abordagens da Crítica Literária Psicanalítica e as várias formas de análise de um texto sob a ótica da psicanálise.

 

2011

ROSENBAUM, Yudith; PASSOS, Cleusa R.P. Escritas do desejo: crítica literária e psicanálise. São Paulo: Ateliê Editorial, 2011.

Reúne onze ensaios sobre as confluências entre Literatura e Psicanálise. Da experiência poética dos gregos às recriações linguísticas de Guimarães Rosa, do romance policial a questões autobiográficas, dos surrealistas ao teatro de Nelson Rodrigues, da modernidade de Flaubert às rupturas de Clarice, do jogo desejante entre autor-obra-leitor ao traço ficcional da escrita freudiana, este livro propõe modos distintos de ler as relações críticas entre os dois campos, reafirmando, na esteira de Freud e Lacan, a “dimensão da subjetividade humana” na obra literária.


                                                   2014


PONTALIS, J.B; MANGO, Edmundo Gómez. Freud com os escritores. São Paulo: Três Estrelas, 2014.

Sigmund Freud possuía um acervo de mais de 20 mil livros em suas estantes e conta-se que desde a adolescência, gostava de tomar emprestadas falas de personagens de Shakespeare e Goethe como forma de traduzir o próprio estado de espírito. A psicanálise teria nascido da paixão de Freud por literatura e do profundo conhecimento que ele possuía da imaginação literária. As obras que leu ao longo da vida teriam ditado sua produção intelectual e personagens literários serviam para ilustrar seus estudos clínicos. Ao menos essa é a teoria defendida no livro Freud com os Escritores, dos psicanalistas J.B. Pontalis e Edmundo Gómez Mango. Lançado no Brasil pela Três Estrelas Editora (o original saiu pela francesa Gallimard), o livro é a última produção de Pontalis, considerado um dos maiores intelectuais da França, morto em 2013. Ao amigo Thomas Mann, Freud teria confessado a profunda inveja que sentia dos escritores, justamente pelo trabalho criativo que realizavam. No livro sobre a relação do criador da psicanálise com a literatura, além da amizade com Mann, que dedicou Doutor Fausto à ele e teria escrito Morte em Veneza sob o impacto da recém-criada psicanálise, também é citada a relação de Freud com Stefan Zweig, com quem se correspondia. A obra traça um panorama das preferências literárias de Freud, que incluíam os já citados Mann, Shakespeare e Goethe, e mais Émile Zola e Fiódor Dostoievski. Fã de Os irmãos Karamazov, Freud considerava este livro a maior obra-prima literária da humanidade. (Extraido da reportagem publicada na revista Istoé de 17/02/2014).

 

2012

  

               
MARZAGÃO, Lúcio Roberto; RIBEIRO, Paulo de Carvalho; BELO, Fábio R.R. Psicanálise e Literatura: seis contos da era de Freud. Petrópolis, R.J: KBR, 2012. (www.kbrdigital.com.br)

Como explicar a fascinação que o texto literário sempre exerceu sobre a Psicanálise? É bem possível que, desde Freud, a aproximação entre Literatura e Psicanálise continue a nos seduzir justamente pelo parentesco existente entre a criação do texto literário e o discurso produzido na situação clínica, considerações que se destacam neste livro.

Um texto formado por elaborações clínicas e interpretações teóricas, que tomam, como ponto de partida, contos consagrados da literatura universal; assim faz a junção de dois temas:  teoria de Freud e a literatura que, ao se somarem , enriquecem-se mutuamente. A primeira vista, essas ficções poderiam ser tomadas tão somente como mais um recurso pedagógico dente os muitos existentes. Nada mais equivocado. A ambição que pode se revelar inalcançável , é propor uma mirada diversa para o cotidiano dos personagens, e ao mesmo tempo, arrancar  psicanálise de seu viés anamnésico. São tratados temas como o desejo, o feminino, a morte, a exclusão, a função paterna, dentre outros pelas seis mãos dos autores, cada um sua própria subjetividade. E é nessas singularidades que é possível encontrar as marcas secundariamente transformadas da interioridade de Machado de Assis , Del Picchia, Julia Lopes de Almeida, Unamuno, Alan Poe e Guido de Verona . Portanto, se existe uma teoria estética da recepção propriamente psicanalítica, ela se constrói sobre a possibilidade que os aspectos funcionais da escrita literária sejam vislumbrados pelos seus efeitos.    

 

TESES E DISSERTAÇÕES

Leite, Julia C. Tosto. Psicose e escrita: ao pé da letra. Rio de Janeiro: UERJ, 2012. Doutorado sob a orientação de Marco A. Coutinho Jorge.

Esta tese aborda a clínica psicanalítica da psicose através de uma articulação entre psicose e escrita, privilegiando a relação entre o empuxo à escrita e a valorização da letra como característica da posição do sujeito na linguagem. Consideramos, inicialmente, que a interseção entre inconsciente e pulsão, presente na obra freudiana e no ensino lacaniano, constitui um ponto de trabalho conceitual importante para a discussão de nosso tema. Em seguida, tomando a postulação do "inconsciente a céu aberto" na psicose, buscamos destacar que Freud e Lacan estabelecem uma dimensão de criação na psicose correlativa a não inscrição da função paterna. Entre as estratégias de estabilização da psicose, enfatizamos o recurso da escrita como uma das implicações fundamentais desse ensinamento. Examinamos, ainda, as relações entre loucura e literatura e os fenômenos de linguagem comuns na psicose como referências importantes para a discussão das relações entre psicose e escrita a partir do conceito lacaniano de letra. Finalmente, apresentamos nossa experiência em uma oficina de escrita no campo da saúde mental, defendendo sua importância como dispositivo clínico de acolhimento da peculiaridade estrutural da psicose.

 

 

PERES, Wesley Godol. A escrita literária como autobioficção: parlêtre, escrita, sinthoma. Brasilia: UnB, 2012. Doutorado sob orientação de Tania Cristina Rivera.

A hipótese fundamental desta tese é a de que toda escrita literária é autobioficção, no seguinte sentido: na escrita literária, o parlêtre daquele a quem chamamos de escritor coloca-se em questão, uma vez que sua força motriz é algo da dimensão gozosa do sinthoma, entende-se por sinthoma o ponto de singularidade no qual o inconsciente e o real se enodam. Esta tese se divide em três partes: a primeira consiste de um romance, intitulado As pequenas mortes; a segunda parte foi estruturada sob a forma de um livro-poema, intitulado Voz de um corpo despedaçado; enquanto que a terceira parte foi montada sob a forma ensaística, forma literária instaurada por Montaingne, que se caracteriza, justamente, pela dificuldade de caracterização, pela limitrofia entre a dissertação, a autobiografia, o diário íntimo, a poesia e a narrativa de ficção. As três partes compõem um percurso movido não pelo desejo de validação universal da hipótese, sustentada pela exemplificação exaustiva e descartante da singularidade de diversas obras, mas pelo desejo-motriz de fazer a hipótese, de que toda escrita literária é autobioficcional, consistir o suficiente para se tornar peça considerável nas montagens reflexivas que visem ampliar a compreensão acerca da escrita literária. Ao final, busca-se também fazer com que a literatura ensine algo à psicanálise, no sentido de, como consequência da investigação central da tese, acerca da obra literária como autobioficção, alguma contribuição tenha sido dada para a compreensão de concepções complexas, como a de sinthoma, parlêtre, Outro Gozo, letra, escrita e lalangue. palavras-chave: Sinthoma, parlêtre, letra, escrita, autobioficção

Azevedo, Fernanda M. de Almeida. Romance policial: psicanálise e cultura contemporânea em Luiz Alfredo Garcia-Roza e Dennis Lehane. Rio de Janeiro: UERJ, 2012. Doutorado sob a orientação de  Francisco V. dos Santos.

Esta tese traça um estudo comparativo entre o Romance policial contemporâneo e o discurso psicanalítico na produção ficcional de Luiz Alfredo Garcia-Roza (1936-) e Dennis Lehane (1963-), tomando, por base, relações de aproximação entre os métodos investigativos na literatura e na psicanálise. Para isso, o corpus constitui-se dos romances O silêncio da chuva (1996) e Espinosa sem saída (2006), ambos do escritor brasileiro e Sagrado [Sacred] (2004) e Paciente 67 [Shttter Island] (2005), do ficcionista norte-americano. A análise destas narrativas revela pontos de aproximação entre os dois discursos inseridos no cenário cultural caótico e desajustado. E questiona a emergência deste novo contexto sociocultural, onde personagens sem identidade definida, sendo o principal deles, o detetive, realizam sua flânerie através de deslocamentos constantes associados à paisagem e em busca do desvendamento do crime urbano. Como seres de ficção perdidos, estes private eyes precisam encontrar os desajustes psíquicos de toda espécie de criminosos daí a representação da cidade, que ora se converte no solo para a flânerie dos investigadores, ora contribui para o apagamento e/ou ocultamento das subjetividades criminais. A relação entre os discursos policial e psicanalítico aponta para a associação entre a obscuridade do texto literário e o da cultura onde estamos inseridos sem falar do mal-estar de um e de outro campo, que tem a ver com as transformações da esfera da sociedade contemporânea.

MONTI, Tony. Escritores e assassinos: urgência solidão e silêncio em Rubem Fonseca. São Paulo: USP, 2011. Doutorado sob orientação de Vagner Camilo.

Por outro lado, a necessidade de renovação processual estende o alcance e a importância do retorno esperado a longo prazo. A prática cotidiana prova que a valorização de fatores subjetivos obstaculiza a apreciação da importância das diretrizes de desenvolvimento para o futuro. Por conseguinte, a crescente influência da mídia exige a precisão e a definição dos níveis de motivação departamental. Desta maneira, a estrutura atual da organização apresenta tendências no sentido de aprovar a manutenção do investimento em reciclagem técnica. As experiências acumuladas demonstram que a complexidade dos estudos efetuados faz parte de um processo de gerenciamento das novas proposições. Acima de tudo, é fundamental ressaltar que o desenvolvimento contínuo de distintas formas de atuação oferece uma interessante oportunidade para verificação das direções preferenciais no sentido do progresso. Nunca é demais lembrar o peso e o significado destes problemas, uma vez que a constante divulgação das informações facilita a criação das condições financeiras e administrativas exigidas. Do mesmo modo, a adoção de políticas descentralizadoras assume importantes posições no estabelecimento de alternativas às soluções ortodoxas.

LEITE, Marcela M. Borges. Construção narrativa e campo de ficção: uma forma de pensar a clínica psicanalítica. Uberlância, MG: UFUB, Mestrado sob orientação de Maria L. Castilho Romera. 2011.

Esta investigação surgiu da necessidade de encontrar subsídios teóricos e conceituais para determinadas experiências clínicas vividas com alguns pacientes que foram denominadas de construções narrativas. A partir de três experiências clinicas, a pesquisa se constituiu, gerando a hipótese de que o setting no atendimento de pacientes graves configura-se por meio da abertura de um campo de ficção e a interpretação pode se dar através da construção narrativa. Estas experiências clínicas foram sendo tecidas e re-tecidas no decorrer do desenvolvimento da pesquisa, de forma que ao final se configuraram tanto como causa quanto como produto da investigação, assim a construção da dissertação se deu no après-coup. Inicialmente, foi retomado o "caso Schreber" de Freud que apesar de não ser um tratamento, configura-se como uma análise de uma obra ficcional/paciente grave por meio de uma construção narrativa; o texto freudiano. Com a exploração deste "caso" freudiano, procurou-se apreender o método psicanalítico em ação, tal como compreendido pela Teoria dos Campos resultando na aproximação entre construções narrativas e delírio. A investigação do "caso Schreber" desdobrou-se em outra onde foi considerado o lugar e a economia psíquica com que Freud tratou as criações imaginárias no transcorrer de produção de seu conhecimento. Frente a esse levantamento, foi considerada a relação de duplo e alteridade existente entre Psicanálise e Literatura e o caráter ficcional do método Psicanalítico. Aproximações cabíveis entre a Literatura e a Psicanálise foram consideradas em vários aspectos: na forma de construção dos seus saberes sobre o ser humano, no uso comum do poder da palavra, da narração e da imaginação e finalmente o compartilhamento de um mesmo momento histórico. Nesse sentido, as teorias de Walter Benjamin tornaramse ferramentas-ideias indispensáveis para que fossem articulados: modernidade, romantismo, crise da narrativa, surgimento da psicanálise, rememoração ou salvação do passado, dimensão social do sujeito, arte de narrar e construção de histórias ou fabulação. Ao final dessas considerações adentrando na função da crença, tal como definida por Fabio Herrmann, chegamos ao objeto imaginário. Diante disso, consideramos mais particularmente o conceito de fantasia para Freud, Lacan, Herrmann e também retomamos o conceito de espaço potencial de Winnicott com o intuito de mergulharmos nos alicerces da construção narrativa. A partir da reedição daquelas experiências clinicas, foram possíveis as seguintes articulações: o setting - enquanto aquilo que circunscreve a transferência protegendo-a da interferência da realidade rotineira - nasce junto com o atendimento por meio da identificação analista-paciente e exige ser constantemente reconstruído por motivos advindos do próprio desenvolvimento do tratamento. No caso de pacientes graves, a construção do setting demanda sobrevivência psíquica do analista frente à necessária identificação com uma espécie de fragmentação e/ou enrijecimento psíquico. Essa sobrevivência que gera condição de espera e possibilita a construção do setting, pela destinação que tive na clínica constituída nesta investigação, foi possível por meio da incursão no universo literário/ficcional.

Nubile Marisa V.F. Cunha. Uma viagem pelo território das letras: ressonâncias do feminino na escrita numa perspectiva psicanalítica. 2011. Doutorado em Educação USP. Orientador: LENY M. Mrech.

Este trabalho tem como base os aportes da teoria psicanalítica, em especial daquilo que Lacan desenvolveu acerca do feminino e da escrita. Ao usar esse referencial, buscou-se fazer um rastreamento teórico dos dois conceitos, com o objetivo de articulá-los. Em Psicanálise, desde Freud, a escrita foi pensada como uma metáfora das inscrições psíquicas, portanto, do substrato do inconsciente. O feminino recebeu também um tratamento diferenciado do senso comum, pois, embora anatomia e gênero sejam aspectos que não se podem negligenciar, os últimos aportes a respeito do feminino, para a Psicanálise de orientação lacaniana, fazem referência a uma posição em que o sujeito está não-todo regulado pelo padrão fálico. Além disso, essa posição comporta um gozo que foge da possibilidade de apreensão pelo aparato simbólico humano. Ora, se o feminino aponta para um excedente, essa mesma perspectiva é encontrada na concepção de escrita e, em especial, de letra, quando Lacan começou a articulála com o gozo. A partir desse enquadre, foi proposto o argumento de que o feminino habita o lugar de gozo da escrita/letra. Como é possível observar, fez-se uma torção no uso dos dois significantes, de maneira que, ao invés de uma escrita feminina, sugeriu-se pensar no feminino na escrita. Deixando de ser adjetivo, o feminino passou a ser tratado não como a qualidade de alguns escritos, mas como substância da escrita, que seria, eventualmente, reconhecida em certos escritos literários construídos nesse território-litoral, no qual gozo e significante se margeiam. Assim, saindo da perspectiva da escrita psíquica, foram trabalhados alguns textos literários, nos quais, foi possível observar ressonâncias da posição feminina. Por fim, discutiu-se como tal posição poderia comparecer na educação de maneira geral e na escrita trabalhada na escola, de maneira específica. Observa-se que o professor tem maiores e melhores condições de criar alternativas para lidar com o "gozo excessivo" que permeia o campo educativo quando a posição feminina, na sua vertente de não-todo e de pluralidade, pode ser sustentada.

LIMA, Marcos Edaurdo R. Três esquizos literários: Antonin Artaud, Raymond Roussel e Jean Pierre Brisset. Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC. Doutorado sob orientação de Pedro de Souza. 2005

Trata-se aqui de uma aproximação às vidas e obras de Antonin Artaud (1896-1948), Raymond Roussel (1877-1933) e Jean-Pierre Brisset (1837-1919). Os três escaparam da loucura através da escritura. Por isso mesmo, não serão vistos como "fous littéraires" ("loucos literários"): a loucura é a ausência de obra, o desmoronamento que interrompe o processo criativo. Toda a tese é uma longa interrogação sobre o que acontece durante esses processos criativos (moleculares, esquizos), que envolvem exercícios de despersonalização, a constituição de corpos intensos, o encontro com devires irresistíveis e a invenção de delírios singulares.   

 

GATTI, José A. de Andrade Soares. Teixeira de Pascoaes e Manoel de Barros não sabem o que sabem o que Freud e Lacan descobriram. UERJ, 2012. Mestrado em Letras sob orientação de Nádia Paulo Ferreira.

A psicanálise e a arte sempre se atraíram. Freud e Lacan se utilizam muito da literatura, das artes plásticas, da música e do teatro para a ilustração de importantes conceitos psicanalíticos. Esta dissertação tem a intenção de mostrar a relação da psicanálise com a literatura, sobretudo, da psicanálise com a poesia. Através da obra do poeta e escritor português Teixeira de Pascoaes (1877-1952), o principal representante do saudosismo e uma das mais proeminentes figuras da cultura portuguesa do século XX, e do poeta brasileiro Manoel de Barros, considerado por muitos, o maior poeta brasileiro vivo, ratificaremos como a literatura foi fundamental para a construção do corpus teórico de Freud e Lacan e de outros grandes autores da psicanálise. Usaremos a poesia de Pascoaes e Barros para exemplificarmos conceitos como a pulsão, o inconsciente e a sublimação, este último, inacabado pelo pai da psicanálise. Mostraremos também, como a obra dos dois poetas, de alguma forma, se encontram.

 

 

ROCHA, Darislania da Silva. A escrita da angústia em Graciliano Ramos: uma leitura psicanalítica. Alagoas: UFAL, 2012. Mestrado sob  orientação  de Jerzui Mendes T. Tomaz.

  

Este trabalho tem por objetivo identificar nos romances São Bernardo (1934) e Angústia (1936), de Graciliano Ramos, o papel desempenhado pela escrita, uma vez que os romances em questão nos apresentam personagens-narradoras que testemunham a dor, as perdas e a angústia por meio da fala e da escrita de um livro. Sustenta-se a hipótese de que o ato narrativo dos protagonistas Paulo Honório e Luís da Silva aponta para a força que a palavra possui e para a possibilidade de construir a partir da angústia e do sofrimento. Utilizando como referencial teórico basilar para a análise o arcabouço teórico psicanalítico, pretende-se mostrar que o ato de testemunho/narração possibilitado pela escrita leva o sujeito a suportar as grandes perdas e dificuldades da sua existência, numa alternativa sublimatória, que oferece vida e prazer libidinal, em lugar da morte e do aniquilamento do sujeito.

BORGES, Fabiola G. Abadia. Sobre o feminino: uma investigação psicanalítica com vislumbres mítico-clínico a partir da literatura de Hilda Hilst. Minas Gerais, Uberlândia: UFU, 2012. Mestrado sob orientação de Maria Lucia C. Romera.

Esta investigação parte de um incômodo com a situação da mulher contemporânea que se apresenta na clínica, particularmente da escuta dessas mulheres à luz de algumas teorias que as reduzem basicamente a duas condições: de passividade ou de histeria. Durante o percurso da pesquisa, entretanto, tomada pelo método interpretativo, delineia-se também outra questão urgente, que se dirige para um além da mulher. A questão central passa a ser o feminino, que, desde sempre, constitui-se no imaginário, envolto num espectro de terror e fascínio, mais facilmente captado pelas artes do que pela ciência. Para o estudo da questão, a pesquisadora recorre à literatura de Hilda Hilst, ao mito de Eco e Narciso e a um caso clínico. A escuta e a análise desses três elementos conduzem a investigação e possibilitam algumas descobertas/invenções em relação ao feminino, o qual se revela no entrelaçamento com o processo de constituição do sujeito em seu traço fundante do desamparo. Permeado de um caráter subversivo, que suspende padrões - sejam eles de gênero ou não, o feminino aponta para a possibilidade da criação de si mesmo em meio a impossibilidades e desvãos.