DOXOGRAFIA SOBRE TRADIÇÃO E TALENTO INDIVIDUAL, DE T.S. ELIOT (i)
Marcelo Moraes Caetano
I) PRIMEIROS CONCEITOS E IDEIAS:
A raridade que se atribui à ocorrência da palavra “tradição” é, segundo Eliot, o retrato de muito do quanto se afirma a seguir: se há, ainda que parcamente, referência àquela palavra, muito provavelmente o é no âmbito antes da crítica pejorativa a certo poeta, antes com intuito de reprovação, em tentativa de desbancá-lo, enfim, ou, quando muito, tendo havido, naquele poeta, tentativas de “alguma deleitosa reconstrução arqueológica” (ELIOT, 1989: 37) – num sintagma que abre notório subtexto indicativo de frivolidade no poeta em questão –, de se aplaudirem sibilinamente os resultados da obra que seria, se muito, fruto da emulação, ou do que os estetas e retóricos latinos poderiam chamar de ornatio et emulatio.
E é justamente, como dizíamos, o que vem em decorrência de uma determinada visão que se tinha do artista, em que este deveria, para ser inquinado qualitativamente como bom ou talentoso, assomar no cenário artístico como o mais possível diferente de seus antecessores, mesmo (ou sobretudo) dos ilustres e já “canonizados”, crendo-se ter havido, nesse particular, o seu valor real, porquanto só então estaria ele, novo poeta, mostrando “o que é individual, o que é a essência peculiar do homem” (ELIOT, 1989: 38). Assim se acreditava a possibilidade, supostamente a única plausível, de o poeta subsistir por seus próprios expedientes, sobre os próprios pés, autonomamente, - queremos dizer no sentido de poder aquele poeta permanecer no panteão de seu tempo, não arranhado pela pecha que lhe representariam os que o precederam cronologicamente, qual seja um como contágio (ii) que estes poderiam perpetrar sobre aquele. Aí estaria, repita-se, a virtude inerente - de acordo com a ótica de uma época cuja formulação crítica Eliot põe em xeque - ao grande artista: terá prevalência sobre os demais quanto mais nele descobrirmos “algo que possa ser isolado para assim nos deleitar” (idem ibidem), isto é, quanto mais, na medida em que o pudemos separá-lo “poeticamente de seus antecessores” (idem ibidem ilibidem), pudermos apreciá-lo pelo que possui de diverso dos que antes dele viveram, naquilo enfim em que deles difere.
Tratava-se de um juízo de valor que mereceu reformulação de raiz.
Em primeiro lugar, porque a um poeta, ou a quem quer que seja, não há fuga incondicional do passado, da soma das existências pregressas que estruturaram de tais e tais maneiras (boas ou más) o mundo onde ele, poeta, hoje vive. Assim, um primeiro ponto a se depreender, instrumento do artista, seria de caráter senão lógico então, no mínimo, óbvio, seguindo uma das limitações naturais que, por um lado, tolhem, e, segundo esta filosofia que ora expomos, por outro, amplia, alarga os horizontes criativos do homem - o tempo.
São célebres as palavras de Eliot neste quesito:
A ordem existente é completa antes que a nova obra apareça; para que a ordem persista após a introdução da novidade, a totalidade da ordem existente deve ser, se jamais o foi, sequer levemente alterada: e, desse modo, as relações, proporções, valores de cada obra de arte rumo ao todo são reajustados, e aí reside a harmonia entre o antigo e o novo (ELIOT, 1989: 39)
A relação tensa e distensa entre passado e futuro gera, pois, uma ampliação, mas muito mais complexa do que um mero processo hegeliano de tese-antítese-síntese poderia prever... Dizemos que há uma ampliação por dois motivos, interligados como um pêndulo, interdependentes, ora conciliáveis, ora irreconciliáveis, um moto perpétuo: 1) é claro que não se procederá à “investigação” qualitativa do poeta de acordo com um pseudoparâmetro em que ele devesse de tal modo conhecer o próprio passado (queremos dizer historicamente, algo de que mais tarde falaremos), que, desse conhecimento, partisse ele a uma quase oblação, um culto cego, um fetiche - e por isso acrítico - no concernente àquilo que, mais uma vez o frisamos, tão-só lhe serve de arcabouço fundamental à construção da própria obra (estamos falando, reitere-se, do passado), a dois por ser algo necessário ao alargamento e ampliação de seus horizontes (quando mais não seja, temático), como dissemos pouco acima, e, ademais, por ser algo, enfim, inevitável; 2) e, sendo inevitável, do passado se deverão tirar as matérias-primas balizadoras de uma obra de arte profícua -“Shakespeare adquiriu mais noções básicas de história nos textos de Plutarco do que a maioria dos homens poderia ter adquirido em todo o Museu Britânico” (ELIOT, 1989: 42).
Nesta última citação do A., com efeito, convive um outro atributo louvável do poeta (se é que o podemos classificar como louvável, na medida em que seria, antes do mais, inevitável, isto sim, tanto quanto o é o próprio passado(iii)): sem precisar de preocupações exacerbadas quanto a reconstituir em sua obra o seu tempo, o grande artista, por muito que não queira ou não saiba, matizará seu texto com as marcas recônditas ou explícitas da época em que vive, ainda que sua mente, um “catalisador”, pouco saiba da consubstanciação que processou, e ainda que, como a platina, saia perfeitamente ilesa daquela transformação, porque “a crítica é tão inevitável quanto o ato de respirar” (ELIOT, 1989: 38), isto é, da mesma forma como não sentimos mais a respiração (por termos dela uma consciência periférica), no mesmo grau deixamos de sentir o “ar” da crítica que a todo o momento respiramos e expiramos quando da feitura da obra de arte. Portanto, tão incólume sairá a mente do artista-crítico (eis uma das complexidades citadas, em que a dialética hegeliana não poderia ser evocada como parâmetro da crítica na visão de Eliot), a ponto de poder efetivar outras e outras transubstanciações, praticamente de maneira ininterrupta ? um novo moto perpétuo: daí a metáfora do pêndulo, feita um pouco acima, que serve a vários dos princípios diretores do texto.
Aliás, se nos referimos duas vezes a “motos perpétuos” não foi por outra razão que não a própria consequência, digamos, última desse movimento cíclico do poeta de, conhecendo o passado, a tradição, poder, daí, dar os passos em direção ao “desconhecido” do futuro.
No entanto, pode-se entrever, nas palavras de Eliot, certa preocupação quanto a este eventual perigo de arremessar-se a um futuro que fosse “desconhecido”: ora, conhecer o passado significaria poder prever certos ciclos e consequências que tenderiam a ocorrer no futuro, esquivando-se o poeta, pois, de “armadilhas artísticas”, como, por exemplo, certos padrões (sejam referentes à temática, à construção textual etc.) já devidamente repudiados pelo passado, ou, paradoxalmente, de tal modo por ele exaltados, que tenham, pois, caído num lugar-comum, fossilizando-se e engrossando uma galeria de admirabilíssimos objetos passados e ultrapassados, distinção que parece importante ao A.: “o sentido histórico implica a percepção, não apenas da caducidade do passado, mas de sua presença” (ELIOT, 1989: 39; grifos nossos). Vemos nas palavras destacadas o mesmo binômio passado-ultrapassado, em que, apenas nesta última, residiria a carga pejorativa.
Seria como se, numa metáfora, tivéssemos de dar um salto para a frente; se o salto que pretendemos dar for muito curto, superficial, apenas um adejo e nada mais, poderão nossos pés permanecer contíguos no mesmo ponto, praticamente, sem que, com isso, seja prejudicada a nossa performance, tão curto seja, repita-se, o salto. Se, por outro lado, há necessidade ou vontade de se saltar mais longe e mais contundentemente, haverá, como consequência natural (instintiva até), e de que não se poderá escapar, necessidade de se colocar um dos pés para trás, de retroceder um passo (o passado), para que se tenha impulso bastante a imprimir suporte, velocidade e pujança ao salto longo que, só então, se conseguirá dar. O objetivo de retroceder um pé, colocá-lo atrás, é fugir mais explicitamente deste atrás: “a novidade é melhor do que a repetição” (ELIOT, 1989: 38), um ponto de que se não deve esquecer.
Tal metáfora que propusemos tem também a ver com a relação que Eliot timbra entre o poeta e a tradição, tradição esta que não é herdada, senão, sim, conquistada “através de grande esforço” (id.), como aquele em que um pé, se com intenção de salto muito grande, deva ir muito para trás, numa proporção matemática praticamente sistematizante, e sistematizável num grau ainda mais facilmente depreensível.
Agora estabeleceremos a distinção - fundamental - entre o que chamamos caráter linear e caráter pictórico da produção artística (queremos deixar claro que o texto em tela, porquanto assim o é o de Eliot, preocupa-se antes com a produção do que com a recepção). É a tal discernimento que chegamos.
Ao ter logrado, o poeta, mediante todo o esforço a que aludimos, a meta ulterior a que se propunha, dever-se-á proceder a um novo juízo de valor, colocado num segundo patamar de discernimento crítico e/ou artístico (note que todo o tempo não há como dissociar essas duas vertentes, como já foi salientado (iv)): deve-se, agora, observar todo o conjunto das obras do passado segundo o novo pano de fundo - “Não se pode estimá-lo em si; é preciso situá-lo, para contraste e comparação ” (ELIOT, 1989: 39) - , construído que será pela existência de uma obra “realmente nova” (id. ib), que instaurou, enfim, um novo concerto, uma nova harmonia, uma nova “ordem existente” (id. Ib. il.) entre passado/presente/“futuro” (ampliamos a dicotomia a esta tricotomia - com a vertente “futuro”- com base no que foi dito linhas acima).
É neste ponto, a propósito, que o presente reformula o juízo do passado, tanto quanto o passado o faz quanto ao presente. Numa nova metáfora, seria como se observássemos um balde contendo tinta de determinada cor; caindo neste balde ainda que uma única gota de tinta de outra cor - e é este em princípio o único pré-requisito, assim como deve ser diferente (isto é, outra) a nova obra de arte, cf. “uma nova (realmente nova) obra entre eles”, (ELIOT, 1989: 39) -, em maior ou menor grau, ainda que imperceptível a olho nu, há de ser afetado todo o conjunto que antes compunha a homogeneidade daquele balde, havendo uma recriação em sua estrutura mais radical: a de sua própria cor. Assim, o artista ou o crítico que olham para o passado estarão, inevitavelmente, vendo-o em uma “cor” perfeitamente distinta daquela em que o viam os que naquele passado viveram, bem como será diferente a “cor” em que artistas verão, no futuro, não apenas esse tempo que a nós já nos é passado, como, também, este que nos é, hoje, presente.
Podemos dizer, por fim, que, por este pensamento, e permanecendo na metáfora, seríamos como incapazes fisiologicamente de perceber sutilezas cromáticas ao nosso redor, de vermos o variegado do mundo que nos cinge em nosso presente, por estarmos sobremodo comprometidos com ele, e por ele envolvidos, ao passo que, uma vez no “futuro” (e “futuro” sempre relativamente a uma era pregressa: daí podermos empregar o termo ainda mesmo em referência ao presente ou ao passado), mais fácil nos será discernir matizes, sombras, filigranas, já que a distância permite uma visão panorâmica indispensável à completude da crítica. É como observarmos uma floresta tropical de seu interior, nela adentrando, cercados de sua profusão de cores, mas de tal modo com ela comprometidos que a não distinguiríamos; ou, de outro bordo, vê-la tranquilamente do alto de uma montanha, imperturbável, ainda que ali se tenha chegado mediante sacrifício (da personalidade?) e esforço inexauríveis.
Por isso dizemos que ocorre naturalmente a passagem do linear (estamos novamente numa metáfora pertinente á visão de Eliot, desta vez quanto ao caráter de sequência de quaisquer línguas, em que, por mais que o fato narrado tenha vindo em estratos concomitantes, por obediência à sintaxe, virá a língua em sucessões) ao pictórico (agora no âmbito das artes visuais, em que devemos observar toda a obra para emitirmos opinião, por muito que nos detenhamos por certo tempo em dado trecho da obra). Ou seja: ver as cores que comporão o balde entrar uma a uma, sucessivamente, para, depois, observar o distinto da cor única resultante daquela mistura, inteiramente diversa de todas as cores que a compuseram - mas resultado inquestionável delas, sem cujo conjunto se teria formado uma outra cor qualquer, que não aquela exata que ali está.
Assim, o presente é linear; o passado, pictórico. Não queremos dizer com isso que a crítica que farão a nosso respeito os que vierem após nós será superior à que fazemos (ou podemos fazer) a nosso próprio respeito, senão que a daqueles será, necessariamente, distinta da nossa: “Os escritores mortos estão distantes de nós porque conhecemos muito mais do que eles conheceram. Exatamente, e são eles aquilo que conhecemos” (ELIOT, 1989: 41).
Em retrospecto, vejo que escrevi melhor sobre poetas cuja obra influenciou a minha e com cuja poesia me tornei familiarizado. Antes de querer escrever sobre eles ou de ter em comum com a de Ezra Pound o fato de que seus méritos e limitações só podem ser completamente avaliados quando considerados em relação à poesia que eu mesmo escrevi. [....] (ELIOT, 1972: 152)
Nós somos aquilo que a mais do que nós conhecerão nossos sucessores. E assim eles, no “futuro”, saberão, por certo ângulo, mais a nosso respeito, assim como nós sabemos mais de nossos antecessores do que eles próprios conheciam de si mesmos, se é que isto não se trata de presunção sub-reptícia, o que se poderia chamar de uma “presunção futurizante”. De qualquer forma, há um movimento pendular, de moto perpétuo: somos afetados pelo passado que nos impulsiona ao futuro; futuro este que, por existir (e só o pôde graças ao acúmulo dos tempos passado/presente), fará instintivamente o crítico retroceder no tempo, indo à cata do passado, perquirindo-o e concebendo-o com valores tão diversos quantos tenham sido os avanços que até seu tempo se arquitetaram e acumularam. E, assim, o movimento - cíclico - nunca se encerra: é uma engrenagem pendular de alimentação à criatividade dos homens, cujo impulso inicial é a imanência crítica destes.
Um culto ao tempo linear e ao tempo pictórico. Ao tempo cronológico e ao tempo cíclico, espiralado, que a Mitologia Grega, por sinal, tanto encareceu em sua criação artística, e que, hoje, a física quântica tanto consegue comprovar, dando perfeita razão científica aos pré-socráticos.
II) FICÇÃO/REALIDADE?
Antes de tudo, não haveria nenhuma ficção que, ainda que se tendo proposto sê-lo integralmente, o tenha conseguido de fato ser, em todos os seus meios próprios de expressão. Queremos dizer que, pelo que se tem dito, torna-se óbvia a depreensão de que não existe, se se proceder a uma análise superficial, em um texto “ficcional”, a ficção em toda a sua tessitura, isto é, em direito e em fato, nem promovendo a “imitação” (mimese) daquilo que poderia ser (ou ter sido), nem se abstendo por total da referencialidade do mundo real.
Ocorre que, à medida que um poeta se arremessa à empreitada artística, esta trará paulatinamente, como marca implícita, exatamente a natureza individual daquele que a consubstanciou, não havendo, pois, divórcio completo entre a criação e o criador, e, pois, devendo o crítico se deter mais pormenorizadamente na obra em si do que no autor, que, como resultado inquestionável, estará tão presente na própria obra como o sangue nas artérias e veias. Há como que um germe necessário, fermento do autor em sua obra. E, por ser o autor um como filtro igualmente necessário de sua época, um crivo onde se retêm os elementos mais marcantes que ele tenha testemunhado, a individualidade do artista parece vergar-se ante o peso de sua cultura, enquanto conjunto maciço de engrenagens que supririam o receptáculo que é sua mente. Com tudo isso, não é fácil (e às vezes nem possível) separar numa obra “meramente” ficcional os elementos realmente ficcionais.
Antes de darmos continuidade à questão, respondemos a um óbice que se nos poderia ter defrontado, ou a uma objeção que nos parece aqui perfeitamente cabível: e as obras literárias em que nitidamente não se faz a descrição de um mundo real, como, só para citarmos um exemplo, Alice in Wonderland, de Lewis Carroll? O que parece ocorrer aí é uma igual descrição (vi) de um mundo existente no interior do poeta e, pois, por este registrado. No entanto, esse mundo de que falamos não é o descrito por uma “língua” racional, com elementos facilmente depreensíveis que o formulassem (ou reformulassem), senão um mundo simbólico, com sintaxe própria, um mundo que, a par do onírico (ou mesmo neste inserido), expressa por seus próprios meios de tradução os sentimentos mais íntimos... do autor! e, portanto, à sua referencialidade (seja lá em que nível for) subjacentes e intrínsecos. Daí termos descartado, a partir de agora, esse presumível impasse que se poderia ter erigido.
Atendendo a que proceda o quanto se dizia linhas acima quanto à descrição de um mundo “apenas ficcional”, não haverá tampouco obra dita retratadora de uma realidade (ou aquelas em que se quer fazer prevalecer a função referencial) ? por exemplo as obras biográficas ou autobiográficas ? em que não haja por seu turno um quinhão razoavelmente grande de ficção pura , seja esta intencional ou fortuita.
Pela metáfora do “catalisador”, presente no texto (e por cujas diretrizes principais é largamente responsável), a mente de um poeta, posto que saindo ilesa da “reação” por seu intermédio processada, é elemento, ainda assim, não só indispensável, como, sobretudo, inconsciente em relação à nova realidade que se dará então. Em outras palavras, deve haver um heteróclito e caótico conjunto de elementos em jogo para que se inicie o processo de criação: daí a presumível supremacia dos mais velhos sobre os mais jovens. Isso se dá, pois, em geral, os jovens não têm à frente o indispensável caos, tampouco o instrumento fino ? a mente ? de que os velhos dispõem, conjunto este que, dado o “aparato mental” superior dos mais velhos, repita-se (inclusive por causa da conquista de um sentido histórico que tenham efetivado), apesar de terem saído, como a platina, imunes (já que servirão, ao menos em tese, a outros processos de transformação), terá sido fundamental à criação da nova realidade almejada ? a obra de arte recém-feita.
É mercê do concurso de toda a natureza individual do artista (concebida como resultado necessário da imortalidade dos ancestrais) que se criará uma nova experiência, ainda que o artista creia equivocadamente já tê-la vivido, ainda que creia estar apenas como que descrevendo um período de sua existência, quando estará, na melhor das hipóteses, recriando aquele momento, se não estiver, no fundo, criando um novo, quase que totalmente desligado daquele de cujo centro acreditava fazer brotar a “descrição” acalentada (e até que ponto conseguida?).
É claro que as influências desse processo atingem igualmente o a ele inverso, como, em tempo, já rascunhamos pouco acima, estando, agora, contudo, mais armados a respondê-lo. Isso é algo que, a esta altura, já se nos avizinha como dedutível: quanto haveria de real (ou referencial), por exemplo, num poema dito de cunho peremptoriamente emotivo, ou, num sentido lato, subjetivo? Aquela inconsciência de que falávamos acima, no que concerne à mente “catalisadora” do poeta ? atributo que, junto à necessidade inquestionável de uma mente finamente aparelhada, promove a consubstanciação da obra de arte ?, é o instrumento igualmente indispensável e responsável no que tange a este caminho ora em discussão: a dissociação entre o real e o ficcional. Voltamos a alertar que muito importante é a discussão para obras ditas biográficas ou memorialistas.
Pode-se explicar um poema investigando-se do que ele é feito e quais as causas que o formam; uma explicação pode ser uma preparação necessária para a compreensão. Mas, para compreender um poema é também necessário, eu diria que na maior parte das circunstâncias, que nos esforcemos para compreender o que a poesia almeja ser; (...) para compreender sua enteléquia . (ELIOT, 1972:158)
Se a inconsciência seria responsável por que toda obra de arte dita ficcional tivesse algo de real, por outro lado essa mesma inconsciência é que toldaria a visão do artista em relação ao quanto de referencial (ou onírico, o que, neste caso, vem a dar no mesmo) está entrando como ingrediente em sua criação supostamente “subjetiva” ou “ficcional”. A mesma inconsciência que arquiteta o real (ou que com este real acimenta o ficcional) é a que nubla ao poeta o sentido do verdadeiro legado e proveito que ele estaria deixando a seus sucessores, na medida em que, a estes, estará aquele deixando viva uma parte substantiva da história de que foi ou de que estará sendo testemunha ou agente. Quantas gotas de sangue há em cada poema?
III) AS FALÁCIAS NA CRÍTICA:
Aqui tão-só arremataremos tudo quanto dizíamos.
Sendo a literatura uma transformação operada ao promover a tematização dos objetos, não há na realidade um “mimetismo” (na questão anterior, chamamos a esse procedimento, se é que ele é possível, de ficção em direito, alertando, em rodapé, que desenvolveríamos o tema). O que há é, isto sim, a transcrição do interior do poeta, porque a literatura opera uma transformação dessa experiência; por conseguinte, não se processa a descrição de uma experiência passada, senão a criação, ainda que baseada naquela outra, de uma experiência nova. A crença no contrário foi o que se determinou chamar “falácia do mimetismo”, pensada primeiramente por Yvor Winters, diga-se em tempo.
Complementando, o trabalho do crítico, pela visão de Eliot, não será buscar no poema imitação de objetos ou fenômenos, já que se deverá dar prioridade à observação dos “procedimentos”, relegando-se a planos inferiores dados como particularidades biográficas, fatores sócio-culturais etc. (Lembramos que são dispensáveis porquanto já sobremodo inerentes à criação.) O texto deve então ser “lido” em sua imanência, estreme da realidade extratextual.
Seria falacioso, também, o movimento crítico que pretendesse esposar o sentimento do próprio crítico, ao ler o poema, ao do autor, ao tê-lo feito. Isto é, não se pode julgar um poema segundo aquilo que poderia ter sido a intenção do autor ao fazê-lo. Do mesmo modo, o crítico não estaria apto, de nenhuma forma, a “entender” a reação psíquica pela qual teria passado o autor, devendo conter-se na análise intratextual , não partindo, daí, a ilações de cunho psicologizante.
Tais foram as “falácias” “intencional” e “da ilusão psicológica”, que, ao lado da “do mimetismo” (de que já falamos acima; q.v. o que se diz a respeito da imitação) e da “da comunicação” ? que apregoa ser a poesia um gênero livre de obrigações doutrinárias de qualquer espécie ? formam o corpo das prescrições do que, afinal, se chamou New Criticism.
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NOTAS:
i) Este ensaio doxográfico se restringirá, como será perceptível, à ótica de Eliot em seu ensaio Tradição e talento individual, em que se lançaram as bases para uma nova e revolucionária crítica da literatura, que até hoje tem respaldos importantes.
ii)Em que pese à aparente negatividade atribuível à palavra contágio, leia-se o seguinte trecho: “Ao contrário, se nos aproximarmos de um poeta sem esse preconceito, poderemos amiúde descobrir que não apenas o melhor mas também as passagens mais individuais de sua obra podem ser aquelas em que os poetas mortos, seus ancestrais, revelam mais vigorosamente sua imortalidade” (p.38). Dividamos a assertiva em dois pontos primaciais. O primeiro diz respeito à crítica feita por Eliot em relação aos que se dispunham a fazer a análise qualitativa de um artista tomando por base um preconceito intrínseco ? perquirir na obra do tal artista pontos de total desquite entre aquela obra e as demais, representantes de cânones então vigentes. Desse modo, seria, pois, um como contágio, sofrido pelos artistas de menor quilate, uma apropriação total ou mesmo parcial da estética que até ali se construíra. Um segundo ponto de igual relevância no mesmo trecho do A. é o em que se toca na ânsia, na vasca, que estaria intimamente associada à natureza do artista, de imortalidade e, o que seria aparentemente um contrassenso, de individualidade. Um contrassenso, sim, pois, a todo momento, se acentua a relevância da atenção acurada que se deve dar à tradição. Há de fato um não responder à seguinte pergunta: como deve o poeta dar vazão às individualidades (a dele próprio e as dos seus “ancestrais”), se ambos, ele e os ancestrais, seriam, em primeira instância, sobrelevados, como acossados pelas épocas em que viveram e pelas anteriores a essa época? Como um poeta faria emergir sua individualidade se estivesse baseando-se na imortalidade (ou na individualidade) de seus predecessores? E mais: o que é exatamente essa “imortalidade”, exaltada sobretudo, segundo o A., exatamente onde as individualidades se exacerbam? Daí a discussão de um conceito ? contágio ? ser concernente ao que, assim nos parece, estaria no âmago da falibilidade da teoria que ora debatemos, debate em cujo fim achamos por bem fulgurar um desconcerto do próprio Eliot, com suas palavras: “Isso equivaleria a afirmar que uma grande cultura debilita ou perverte a sensibilidade poética” (ELIOT, 1989: 41).
iii) Lembremo-nos de que o ensaio começa com o sentimento por parte de Eliot de descrever o papel antes da crítica, comparando os ingleses aos franceses: “Cada nação, cada raça, tem não apenas sua tendência criadora, mas também sua tendência crítica de pensar.” (ELIOT, 1989: 37) Por isso, dado o determinismo que todo o tempo norteia o texto, inserimos num mesmo paradigma central as três noções: passado, criação e crítica, abarcando esta última não apenas a que um homem faz da obra de outro, como, também (e esta nos soa mais relevante no texto, dirimindo impasses que se nos defrontariam não estivesse ela elucidada), a crítica inevitável que um grande artista faria à sua sociedade, a seu tempo, ainda que o faça inconscientemente (ou parcialmente em tal estado), ainda que sua mente, instrumento de “catálise”, não tenha percebido nitidamente o que fez. Visão, sem dúvida, determinista, mas retratadora de parte do sentimento que carreia o texto.
iv) Nem poderia ser diferente, já que é a suposta necessidade de promover crítica (tão intrínseca ao homem como a própria respiração), a que fomenta no artista o retratar de seu mundo real. Assim, encare-se a crítica sob essa égide bipartida: de um lado o artista, eterno crítico de seu tempo e dos pregressos; de outro o que reformula amiúde as estéticas, em função sempre de novidades então vigentes, vigorosas.
v) Em outro ensaio meu, intitulado A antiperístase em Manuel Bandeira, exploro a noção (grega) de que o contraste ressalta ou aviva a natureza de uma palavra, de um verso, de uma estrofe, de uma obra.
vi) E é óbvio que ampliamos “descrição” para onde se deveria ter dito “narração”, e fazemos a crítica também à rigidez que os manuais de literatura apõem às tipologias e aos gêneros textuais
vii) Chamamos de ficção pura tudo aquilo que, promanando do poeta, não traga arraigado consigo um pujante recorte do mundo, do momento, da vida enfim daquele poeta, seja em que mundo for, ou, melhor dizendo, seja na linguagem ou na “língua” de que mundo for; algo que, já se sabe, é tido como quase impossível, conforme a óptica de Eliot. Tratar-se-á melhor a questão ao discorrer-se sobre as falácias, particularmente a que diz respeito ao mimetismo.
viii) Na resposta à primeira questão, no ensejo da metáfora do balde com tinta (q.v.), utilizamos o mesmo adjetivo: nova. Alertamos para que se não confundam os dois referentes por ele qualificadas: na primeira questão, fazíamos menção à nova obra, ou a um novo conjunto de obras cujo valor intrínseco é tamanho a ponto de acarretar mudança de juízo de valor quanto à crítica que se faça ao passado. Na resposta à questão dois, aludimos não mais à obra integral de um artista, senão às parcelas que a compõem, parcelas que, isto sim, são sempre novas experiências, apesar, repita-se, da crença de que se estará tão-somente descrevendo algo que se já vivenciou. Cremos de suma importância esta distinção: a novidade é a todo momento fundamental; contudo, se divide basicamente em uma que diga respeito à crítica (e às reformulações por que esta passará) e outra que, positivamente, faz de qualquer (grande) artista um eterno criador de novas situações, por muito que se creiam estas passadas ou acontecidas. Desenvolvemos, ainda que parcamente, este tema.
ix) Do gr. entelekheia. Aristóteles assim designa a alma, natureza perfeita similar ao princípio do movimento.
x) Não é do escopo deste trabalho traçar paralelos com as noções de intertextual (de Julia Kristeva) ou dialógico (de Mikhail Bakhtin), pois trataremos dessa visão crítica específica em outro ensaio.
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REFERÊNCIAS:
ELIOT, T.S. As fronteiras da crítica. In: A essência da poesia. p. 148-167. Rio de Janeiro: Artenova, 1972.
______. Tradição e talento individual. In: Ensaios. p. 37-48. São Paulo: Art Editora, 1989.
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