“Eu me formei numa tradição que praticamente desapareceu, a do jornalismo literário francês. Costumam dizer, de fato, que no Brasil eu sou o último da raça. Deve ser verdade. Venho de um tempo em que todos os grandes jornais tinham o seu rodapé literário, cada um com seu crítico literário, com a obrigação de comentar e avaliar com regularidade a produção literária contemporânea. Esse padrão predominou, no Brasil, até os anos 1950. Depois começou a desaparecer... é uma conseqüência do aparecimento de um novo jornalismo, influenciado pelo estilo americano. Devo lembrar que morei quase 30 anos em Nova York e, portanto, tenho autoridade para falar do assunto. Os jornais americanos, há muito tempo, não têm mais críticos literários. Ele foram substituídos pelos resenhistas. As editoras mandam seus lançamentos diretamente para os editores dos jornais, que, sem muitos críticos, saem à procura de autores de resenhas. Hoje, exagerando um pouco, pode-se pensar que qualquer um pode escrever sobre qualquer livro. Há, é verdade um bom número de professores universitários gabaritados que se tornaram resenhistas literários. Mas eles já não escrevem mais crítica literária. Nos EUA, se você deseja ler artigos de fôlego, deve comprar o New York Review of Books... Nas faculdades de letras ,a crítica tradicional, de estilo oitocentista, começou a perder terreno a partir dos anos 1960 para o estruturalismo e para a nova crítica. Isso trouxe graves conseqüências para toda uma geração de especialistas em literatura. Os estruturalistas fazem teoria pela teoria. Perdem-se em suas elaborações intelectuais, em seus esquemas cifrados e deixam as obras em segundo plano... Nos jornais, propagou-se com rapidez a idéia de que a crítica literária não tem mais importância e o importante, agora, é a resenha literária. Ora, a resenha não tem pretensão crítica, ela é apenas um instrumento de apresentação e de divulgação do livro. De fato, a resenha serve muito mais à publicidade dos livros do que à crítica. Essa nova realidade agradou aos editores, que passaram a ter publicidade farta e, mais que isso, gratuita. Basta ver como é pequena a publicidade paga nas páginas literárias. Agradou, também, aos donos de jornais, que, com os cadernos de resenhas, passaram a ter um novo produto barato e de forte apelo. E agradou ainda aos estudantes de letras e aos professores menos experientes, que passaram a ter espaço para escrever e ainda encontraram uma forma de ganhar alguns trocados... Críticos não se limitam a resumir os livros, a vendê-los, mas dizem se eles são bons ou ruins e põem suas cabeças a prêmio quando se arriscam a dizer por quê. É claro que, muitas vezes, os críticos erram, pois o erro faz parte de qualquer jogo. Mas, ao contrário dos resenhistas, os críticos se arriscam. Por isso eles devem ter, obrigatoriamente, um arsenal teórico para iluminar seus objetivos. Já dos resenhistas não exige aparato teórico algum... A resenha tem um caráter noticioso, enquanto o caráter da crítica literária é judicativo, isto é, o que define a crítica é o poder de julgar. O leitor da resenha quer ser informado; o leitor da crítica quer ser obrigado a pensar... Quanto aos novos críticos, formados na onda estruturalista, eles se fecham em seus guetos intelectuais e passaram a falar entre si, esquecendo-se das obras. Nas universidades, os alunos não lêem mais as obras literárias, lêem as críticas. Os próprios escritores passaram a escrever, em muitos casos, para agradar a seus críticos. E a crítica fica felicíssima, porque a obra passa a ser, apenas, uma confirmação de suas teorias. Essa, infelizmente, é a fisionomia da crítica literária brasileira nos últimos 30 anos... Ainda não surgiu uma geração que substituísse aquela de Tristão de Ataíde, Antonio Cândido, Álvaro Lins. Continuamos esperando... Silviano Santiago, Flora Sussekind e Luís Costa Lima são nomes, sem dúvida, de primeiríssima qualidade, que conseguiram escapar desse período negro regido pela teoria pura, e prosseguiram intactos com suas obras. Mas aqui deve ser feita uma distinção: nenhum deles é, a rigor, crítico literária. Silviano, Flora, Costa Lima são, na verdade, ensaístas literários e não críticos. O ensaísta literário escreve sobre os grandes autores do passado, sobre as grandes tendências. Não fazem, a rigor, a crítica literária”.
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/01/1996 – José Castello |