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Grandes entrevistas

Uma entrevista-aula com

Antonio Candido na FLIP 2011

 

 

Dizendo-se "um sobrevivente" e um homem "encalhado no passado", o crítico literário Antonio Candido deu uma inesperada entrevista coletiva no começo da tarde de quarta-feira em Paraty, horas antes de abrir a 9ª Flip com uma conferência sobre Oswald de Andrade, em companhia do ex-aluno e amigo José Miguel Wisnik. Sentado numa cadeira no jardim da pousada em que está hospedado, tratando sempre por "senhores" os repórteres décadas mais jovens espalhados no chão ao seu redor, Candido, de 92 anos e autor de clássicos como "Formação da literatura brasileira" e "Literatura e sociedade", passou 40 minutos cumprindo com desenvoltura um papel no limite entre entrevistado e professor. Após ter avisado que não falaria com a imprensa em Paraty, e embora tenha afirmado não gostar de entrevistas ("digo uma coisa, sai outra no jornal"), o crítico discorreu sobre quase tudo que lhe foi perguntado. Alternou análise e anedotas em seus comentários sobre Oswald, falou de sua formação como crítico na imprensa dos anos 1950 e até fez graça com seu bigode ("sou um homem conservador, uso bigode ainda. Os jovens usam barba"). Fundador do PT, Candido só não quis falar sobre a política brasileira atual ("não me provoque, eu sou Candido mas não cedo a provocações"), nem sobre literatura contemporânea, que afirmou não ler. Perguntado sobre e-books, disse que não sabe nem usar fax e que ainda escreve à máquina.

Leia abaixo os principais trechos da conversa:

CONVITE DA FLIP. Sou muito idoso, daqui a uns dias faço 93 anos. Considero minha vida intelectual completamente encerrada. Sou um sobrevivente. Não dou entrevista, não dou curso, não publico mais nada. Mas eu fui muito amigo do Oswald de Andrade, e me dei conta que provavelmente eu sou o último amigo vivo dele. Não sou da geração dele, sou 30 anos mais moço, quase. Achei que era uma espécie de obrigação contar como eu e minha geração víamos aquela personalidade vulcânica do Oswald de Andrade. Combinei com José Miguel Wisnik, meu aluno, meu grande amigo, que falará sobre como a geração dele viu Oswald. Só faltou uma pessoa da geração do Oswald de Andrade. Vim para dar o meu testemunho. Porque só quem conheceu Oswald de Andrade pessoalmente pode testemunhar sobre a personalidade raríssima que ele era.

FILOSOFIA DE OSWALD. Era um homem que tinha traços de gênio. Ele não lia muito, mas o que ele pegava era extraordinário. Há pessoas assim. Ele pegava. Eu vi um exemplar do Oswaldo (Candido alternou "Oswald" e "Oswaldo" durante a conversa) de um livro difícil de filosofia, que é "O ser e o nada", do Sartre. Estava anotado, mas havia páginas ainda fechadas. Ele pegava, pulava, depois voltava, mas sabia falar perfeitamente sobre "O ser e o nada". "A marcha das utopias" e "A crise da filosofia messiânica" eu acho livros muito interessantes. Oswald é um precursor. Sobre o papel da mulher, por exemplo. A visão que ele tem eu acho extraordinária. A ligação que ele faz da visão masculina com a propriedade privada. A mulher é fonte de vida, a mulher dá a vida, e não tem o senso de posse que o homem tem. Para o homem, tudo é dele: minha mulher, meu filho, minha casa, meu automóvel. A mulher é muito mais do nosso. Então ele dizia que a sociedade futura só será uma sociedade igualitária quando a mulher tiver predominância. Nós estamos caminhando para isso. Uma das coisas mais positivas do nosso tempo é a presença da mulher. Isso Oswaldo viu perfeitamente. Essa visão dele é muito bonita.

UMA ANEDOTA OSWALDIANA. Ele era muito inteligente. Fulgurante. Uma vez ele queria fazer um concurso de filosofia. Eu disse: "não faça isso Oswaldo, você não é filósofo". Ele: "por que não? Sou brasileiro, vacinado, maior de 21 anos, posso fazer". Eu falei: "esse negócio de existencialismo, fenomenologia hoje em dia tem uma terminologia muito complicada que você não domina. Certamente irá para a banca o professor Fulano de Tal, que te pega com uma pergunta complicada e você não sabe responder". "Então faça uma pergunta para mim". Eu disse: "não sei, não sou filósofo", e ele: "inventa, inventa uma complicada". Eu fiz então uma pergunta bem pernóstica, do tipo que poderiam fazer no exame: "Senhor candidato, diga-me vossa senhoria qual é a empostação hodierna da problemática ontológica". Ele respondeu assim: "Está vossa excelência muito atrasado. Na nossa era de devoração universal a problemática não é ontológica, é odontológica". Isso ele fazia assim na hora. Era genial.

BRIGA E RECONCILIAÇÃO. Tínhamos boas relações depois escrevi uns artigos sobre ele que ele não gostou e ele desceu a lenha em mim - ele era terrível, me chamou de mineiro malandro -, mas depois eu vi que tinha sido um pouco injusto nos artigos e fiz um ensaio maior (embora eu sempre tenha mantido a crítica severa que fiz sobre a última parte da obra dele. Acho que o comunismo fez muito mal para o Oswald de Andrade, ele quis fazer literatura política participante. Não era o gênero dele.) Ele gostou do ensaio, e aí ficamos amigos, mas muito amigos mesmo. Ele gostava muito de mim, e eu gostava muito dele. Como os senhores sabem, uma das coisas mais importantes na vida é a gente ter certeza que a pessoa gosta da gente. Saber que uma pessoa gosta realmente da gente é muito reconfortante. Ele tinha uma coisa extraordinária: não tinha rancor.

LITERATURA ATUAL. Estou completamente fora do mundo literário. Inclusive doei grande parte da minha biblioteca. Não sei nem quais são os autores atuais. Eu saio perdendo, evidentemente. Mas há cerca de vinte anos não leio coisa nova nenhuma nem do Brasil nem do estrangeiro. Eu leio coisas do passado, sobretudo. Autores como Dostoievski, Tolstói, Proust, Machado de Assis, Eça de Queirós. Não quer dizer que os atuais não sejam do mesmo nível. Só que eu não os conheço.

LIVROS DIGITAIS. É um mundo fechado para mim. Se os senhores prometerem não contar nada para ninguém, vou contar: eu escrevo ainda em máquina de escrever. Não sei o que é computador. As pessoas perguntam qual é meu email. Eu não sei o que é isso. Fax? Não sei o que é. Comigo não adianta perguntar coisa moderna, eu sou um homem do passado. Eu estou encalhado no passado.

LITERATURA E CRÍTICA NO BRASIL. O Brasil sempre foi um país de boa crítica literária. Se a gente pega a América Latina, não há nenhum país que tenha desde o romantismo tão boa crítica literária quanto o Brasil. Pessoalmente, tive uma sorte extraordinária porque fui crítico literário militante num tempo de esplendor da literatura brasileira. Às vezes brinco com alunos meus que são bons críticos: "tenho pena de vocês, que têm que escrever sobre os autores atuais. Por melhores que sejam, não são Mário de Andrade, não são Guimarães Rosa, não são Carlos Drummond de Andrade". Eu tinha que fazer para o jornal um artigo por semana sobre as novidades. Quais eram as novidades? Drummond, Murilo Mendes, Jorge Amado, José Lins do Rego. "Acaba de publicar um livro o sr. Graciliano Ramos..." (risos) Tive a sorte de viver num tempo de esplendor, mais ou menos até 1950 e poucos. Não quer dizer que seja má [depois disso], mas não tem mais aquele esplendor.

IMPRENSA E UNIVERSIDADE. Costumo sempre dizer: eu sou um professor universitário muito defeituoso, porque fui professor de literatura e não sou formado em Letras. Tenho uma ignorância total de linguística, gramática, tudo isso. Sou formado em Ciências Sociais. Eu me fiz no jornal. Sou de um tempo em que a crítica literária era atividade jornalística. O Brasil só teve ensino superior de humanidades a partir de 1934. Eu passei para Letras já quarentão. Levei para a universidade a crítica jornalística. Hoje é o contrário. A universidade tomou conta da crítica e os professores vêm escrever no jornal. Eu não, fui do jornal para a faculdade.

CRÍTICA E RISCO. Antigamente alguns jornais tinham um crítico titular, que tinha muita autoridade, pois representava o veículo. Eu escrevia na "Folha da Manhã", atual "Folha de S. Paulo". Costumo dizer que a crítica literária naquele tempo era uma atividade de alto risco. O crítico literário arriscava sua reputação toda semana. Se começava a errar muito, o jornal mandava embora. Eu recebi um livro um dia: Clarice Lispector, "Perto do coração selvagem". [Pensei] "quem será? Deve ser pseudônimo, porque isso não é nome de gente, Lispector". Eu não sabia quem era. Tinha que dizer se era bom ou ruim. A crítica universitária é uma atividade extremamente segura, não tem risco nenhum. Os rapazes fazem tese sobre Machado de Assis, Jorge Amado, Clarice Lispector, José Lins do Rego. Agora, a pessoa pegar o livro é dizer "esse é bom", "esse é ruim", isso acabou.

CRÍTICA NA UNIVERSIDADE. A crítica universitária não arrisca nada, o juízo já está feito. Ninguém vai fazer uma tese universitária sobre o jovem escritor Pedro de Araújo de Paraty, que escreveu um poema épico. Ninguém. Não é que seja mal, não é tarefa dela se arriscar. Na universidade houve sempre a seguinte tradição, no Brasil e fora: não se escreve sobre autor vivo, pois enquanto ele está vivo, pode mudar. Quando eu fui ensinar literatura na Universidade de São Paulo (USP) o último autor estudado era Luís de Azevedo. Fui a primeiro a dar um curso lá onde se falava de Drummond. Depois, minha mulher deu o primeiro curso sobre modernismo na USP. Hoje os jovens só querem fazer tese sobre autores atuais. Sobre a Lygia Fagundes Telles tem 40 ou 50 teses. É difícil falar, "estude Machado de Assis, estude Tomás Antônio Gonzaga". Mudou. Está um pouco exagerado, mas é uma conquista. A universidade está aplicando os métodos de pesquisa erudita à atualidade. Isso é muito bom. Cada época tem ser perfil, não é melhor nem pior.

ALUNOS. Admiro muito os jovens críticos brasileiros. Tive inclusive a sorte extraordinária, questão de pura sorte, de reunir em volta de mim um grupo dos melhores críticos do Brasil. Os senhores vão ver hoje à noite um deles, que é o José Miguel Wisnik. São os meus filhos. Costumo dizer sempre com muita sinceridade que a coisa mais importante que eu fiz na vida foi ter em volta de mim o grupo de jovens que eu tive. Isso foi a contribuição maior que eu dei para a cultura brasileira e para a Universidade de São Paulo. Roberto Schwarz, José Miguel Wisnik, João Lafetá, Walnice Nogueira Galvão, Telê Ancona Lopes... São grandes críticos, de primeira categoria.

POLÍTICA. Fui ainda de uma geração muito engajada, como se dizia. Achávamos que era obrigação do intelectual participar da política. Eu participei. Não gosto de política e não tenho nenhuma vocação política, mas na minha geraçao havia essa ideia, talvez não fosse correta, de que o intelectual tinha obrigação de fazer isso.

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Fonte: http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2011/07/06/uma-entrevista-aula-com-antonio-candido-na-flip-2011-390689.asp (20/05/2013)

 

Antonio Cândido  

 

Entrevista conduzia por Joana Tavares, publicada no site www.brasildefato.com.br, em 12 de julho de 2011

 

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Crítico literário, professor, sociólogo, militante. Um adjetivo sozinho não consegue definir a importância de Antonio Candido para o Brasil. Considerado um dos principais intelectuais do país, ele mantém a postura socialista, a cordialidade, a elegância, o senso de humor, o otimismo. Antes de começar nossa entrevista, ele diz que viveu praticamente todo o conturbado século 20. E participou ativamente dele, escrevendo, debatendo, indo a manifestações, ajudando a dar lucidez, clareza e humanidade a toda uma geração de alunos, militantes sociais, leitores e escritores. Tão bom de prosa como de escrita, ele fala sobre seu método de análise literária, dos livros de que gosta, da sua infância, do começo da sua militância, da televisão, do MST, da sua crença profunda no socialismo como uma doutrina triunfante. “O que se pensa que é a face humana do capitalismo é o que o socialismo arrancou dele”, afirma.

                                         * * *

 

- Nos seus textos é perceptível a intenção de ser entendido. Apesar de muito erudito, sua escrita é simples. Por que esse esforço de ser sempre claro?

 

Acho que a clareza é um respeito pelo próximo, um respeito pelo leitor. Sempre achei, eu e alguns colegas, que, quando se trata de ciências humanas, apesar de serem chamadas de ciências, são ligadas à nossa humanidade, de maneira que não deve haver jargão científico. Posso dizer o que tenho para dizer nas humanidades com a linguagem comum. Já no estudo das ciências humanas eu preconizava isso. Qualquer atividade que não seja estritamente técnica, acho que a clareza é necessária inclusive para pode divulgar a mensagem, a mensagem deixar de ser um privilégio e se tornar um bem comum.

  

- O seu método de análise da literatura parte da cultura para a realidade social e volta para a cultura e para o texto. Como o senhor explicaria esse método?

 

Uma coisa que sempre me preocupou muito é que os teóricos da literatura dizem: é preciso fazer isso, mas não fazem. Tenho muita influência marxista – não me considero marxista – mas tenho muita influência marxista na minha formação e também muita influência da chamada escola sociológica francesa, que geralmente era formada por socialistas. Parti do seguinte princípio: quero aproveitar meu conhecimento sociológico para ver como isso poderia contribuir para conhecer o íntimo de uma obra literária. No começo eu era um pouco sectário, politizava um pouco demais minha atividade. Depois entrei em contato com um movimento literário norte-americano, a nova crítica, conhecido como new criticism. E aí foi um ovo de colombo: a obra de arte pode depender do que for, da personalidade do autor, da classe social dele, da situação econômica, do momento histórico, mas quando ela é realizada, ela é ela. Ela tem sua própria individualidade. Então a primeira coisa que é preciso fazer é estudar a própria obra. Isso ficou na minha cabeça. Mas eu também não queria abrir mão, dada a minha formação, do social. Importante então é o seguinte: reconhecer que a obra é autônoma, mas que foi formada por coisas que vieram de fora dela, por influências da sociedade, da ideologia do tempo, do autor. Não é dizer: a sociedade é assim, portanto a obra é assim. O importante é: quais são os elementos da realidade social que se transformaram em estrutura estética. Me dediquei muito a isso, tenho um livro chamado “Literatura e sociedade” que analisa isso. Fiz um esforço grande para respeitar a realidade estética da obra e sua ligação com a realidade. Há certas obras em que não faz sentido pesquisar o vínculo social porque ela é pura estrutura verbal. Há outras em que o social é tão presente – como “O cortiço” [de Aluísio Azevedo] – que é impossível analisar a obra sem a carga social. Depois de mais maduro minha conclusão foi muito óbvia: o crítico tem que proceder conforme a natureza de cada obra que ele analisa. Há obras que pedem um método psicológico, eu uso; outras pedem estudo do vocabulário, a classe social do autor; uso. Talvez eu seja aquilo que os marxistas xingam muito que é ser eclético. Talvez eu seja um pouco eclético, confesso. Isso me permite tratar de um número muito variado de obras.

 

 

- Teria um tipo de abordagem estética que seria melhor?

 

Não privilegio. Já privilegiei. Primeiro o social, cheguei a privilegiar mesmo o político. Quando eu era um jovem crítico eu queria que meus artigos demonstrassem que era um socialista escrevendo com posição crítica frente à sociedade. Depois vi que havia poemas, por exemplo, em que não podia fazer isso. Então passei a outra fase em que passei a priorizar a autonomia da obra, os valores estéticos. Depois vi que depende da obra. Mas tenho muito interesse pelo estudo das obras que permitem uma abordagem ao mesmo tempo interna e externa. A minha fórmula é a seguinte: estou interessado em saber como o externo se transformou em interno, como aquilo que é carne de vaca vira croquete. O croquete não é vaca, mas sem a vaca o croquete não existe. Mas o croquete não tem nada a ver com a vaca, só a carne. Mas o externo se transformou em algo que é interno. Aí tenho que estudar o croquete, dizer de onde ele veio.

 

 

O que é mais importante ler na literatura brasileira?

 

Machado de Assis. Ele é um escritor completo.

 

 

- É o que senhor mais gosta?

Não, mas acho que é o que mais se aproveita.

  

- E de qual o senhor mais gosta?

 

Gosto muito do Eça de Queiroz, muitos estrangeiros. De brasileiros, gosto muito de Graciliano Ramos... Acho que já li “São Bernardo” umas 20 vezes, com mentira e tudo. Leio o Graciliano muito, sempre. Mas Machado de Assis é um autor extraordinário. Comecei a ler com 9 anos livros de adulto. E ninguém sabia quem era Machado de Assis, só o Brasil e, mesmo assim, nem todo mundo. Mas hoje ele está ficando um autor universal. Ele tinha a prova do grande escritor. Quando se escreve um livro, ele é traduzido, e uma crítica fala que a tradução estragou a obra, é porque não era uma grande obra. Machado de Assis, mesmo mal traduzido, continua grande. A prova de um bom escritor é que mesmo mal traduzido ele é grande. Se dizem: “a tradução matou a obra”, então a obra era boa, mas não era grande.

 

- Como levar a grande literatura para quem não está habituado com a leitura?

É perfeitamente possível, sobretudo Machado de Assis. A Maria Vitória Benevides me contou de uma pesquisa que foi feita na Itália há uns 30 anos. Aqueles magnatas italianos, com uma visão já avançada do capitalismo, decidiram diminuir as horas detrabalho para que os trabalhadores pudessem ter cursos, se dedicar à cultura. Então perguntaram: cursos de que vocês querem? Pensaram que iam pedir cursos técnicos, e eles pediram curso de italiano para poder ler bem os clássicos. “A divina comédia” é um livro com 100 cantos, cada canto com dezenas de estrofes. Na Itália, não sou capaz de repetir direito, mas algo como 200 mil pessoas sabem a primeira parte inteira, 50 mil sabem a segunda, e de 3 a 4 mil pessoas sabem o livro inteiro de cor. Quer dizer, o povo tem direito à literatura e entende a literatura. O doutor Agostinho da Silva, um escritor português anarquista que ficou muito tempo no Brasil, explicava para os operários os diálogos de Platão, e eles adoravam. Tem que saber explicar, usar a linguagem normal.

 

- O senhor acha que o brasileiro gosta de ler?

Não sei. O Brasil pra mim é um mistério. Tem editora para toda parte, tem livro para todo lado. Vi uma reportagem que dizia que a cidade de Buenos Aires tem mais livrarias que em todo o Brasil. Lê-se muito pouco no Brasil. Parece que o povo que lê mais é o finlandês, que lê 30 volumes por ano. Agora dizem que o livro vai acabar, né?

 

- O senhor acha que vai?

 

Não sei. Eu não tenho nem computador... as pessoas me perguntam: qual é o seu... como chama?

 

E-mail?

 

Isso! Olha, eu parei no telefone e máquina de escrever. Não entendo dessas coisas... Estou afastado de todas as novidades há cerca de 30 anos. Não me interesso por literatura atual. Sou um velho caturra. Já doei quase toda minha biblioteca, 14 ou 15 mil volumes. O que tem aqui é livro para visita ver. Mas pretendo dar tudo. Não vendo livro, eu dou. Sempre fiz escola pública, inclusive universidade pública, então é o que posso dar para devolver um pouco. Tenho impressão que a literatura brasileira está fraca, mas isso todo velho acha. Meus antigos alunos que me visitam muito dizem que está fraca no Brasil, na Inglaterra, na França, na Rússia, nos Estados Unidos... que a literatura está por baixo hoje em dia. Mas eu não me interesso por novidades.

  

- E o que o senhor lê hoje em dia?

 

Eu releio. História, um pouco de política... mesmo meus livros de socialismo eu dei tudo. Agora estou querendo reler alguns mestres socialistas, sobretudo Eduard Bernstein, aquele que os comunistas tinham ódio. Ele era marxista, mas dizia que o marxismo tem um defeito, achar que a gente pode chegar no paraíso terrestre. Então ele partiu da ideia do filósofo Immanuel Kant da finalidade sem fim. O socialismo é uma finalidade sem fim. Você tem que agir todos os dias como se fosse possível chegar no paraíso, mas você não chegará. Mas se não fizer essa luta, você cai no inferno.

  

 

O senhor é socialista?

 

Ah, claro, inteiramente. Aliás, eu acho que o socialismo é uma doutrina totalmente triunfante no mundo. E não é paradoxo. O que é o socialismo? É o irmão-gêmeo do capitalismo, nasceram juntos, na revolução industrial. É indescritível o que era a indústria no começo. Os operários ingleses dormiam debaixo da máquina e eram acordados de madrugada com o chicote do contramestre. Isso era a indústria. Aí começou a aparecer o socialismo. Chamo de socialismo todas as tendências que dizem que o homem tem que caminhar para a igualdade e ele é o criador de riquezas e não pode ser explorado. Comunismo, socialismo democrático, anarquismo, solidarismo, cristianismo social, cooperativismo... tudo isso. Esse pessoal começou a lutar, para o operário não ser mais chicoteado, depois para não trabalhar mais que doze horas, depois para não trabalhar mais que dez, oito; para a mulher grávida não ter que trabalhar, para os trabalhadores terem férias, para ter escola para as crianças. Coisas que hoje são banais. Conversando com um antigo aluno meu, que é um rapaz rico, industrial, ele disse: “o senhor não pode negar que o capitalismo tem uma face humana”. O capitalismo não tem face humana nenhuma. O capitalismo é baseado na mais-valia e no exército de reserva, como Marx definiu. É preciso ter sempre miseráveis para tirar o excesso que o capital precisar. E a mais-valia não tem limite. Marx diz na “Ideologia Alemã”: as necessidades humanas são cumulativas e irreversíveis. Quando você anda descalço, você anda descalço. Quando você descobre a sandália, não quer mais andar descalço. Quando descobre o sapato, não quer mais a sandália. Quando descobre a meia, quer sapato com meia e por aí não tem mais fim. E o capitalismo está baseado nisso. O que se pensa que é face humana do capitalismo é o que o socialismo arrancou dele com suor, lágrimas e sangue. Hoje é normal o operário trabalhar oito horas, ter férias... tudo é conquista do socialismo. O socialismo só não deu certo na Rússia.

- Por quê?

 

Virou capitalismo. A revolução russa serviu para formar o capitalismo. O socialismo deu certo onde não foi ao poder. O socialismo hoje está infiltrado em todo lugar.

- O socialismo como luta dos trabalhadores?

 

O socialismo como caminho para a igualdade. Não é a luta, é por causa da luta. O grau de igualdade de hoje foi obtido pelas lutas do socialismo. Portanto ele é uma doutrina triunfante. Os países que passaram pela etapa das revoluções burguesas têm o nível de vida do trabalhador que o socialismo lutou para ter, o que quer. Não vou dizer que países como França e Alemanha são socialistas, mas têm um nível de vida melhor para o trabalhador.

- Para o senhor é possível o socialismo existir triunfando sobre o capitalismo?

 

Estou pensando mais na técnica de esponja. Se daqui a 50 anos no Brasil não houver diferença maior que dez do maior ao menor salário, se todos tiverem escola... não importa que seja com a monarquia, pode ser o regime com o nome que for, não precisa ser o socialismo! Digo que o socialismo é uma doutrina triunfante porque suas reivindicações estão sendo cada vez mais adotadas. Não tenho cabeça teórica, não sei como resolver essa questão: o socialismo foi extraordinário para pensar a distribuição econômica, mas não foi tão eficiente para efetivamente fazer a produção. O capitalismo foi mais eficiente, porque tem o lucro. Quando se suprime o lucro, a coisa fica mais complicada. É preciso conciliar a ambição econômica – que o homem civilizado tem, assim como tem ambição de sexo, de alimentação, tem ambição de possuir bens materiais – com a igualdade. Quem pode resolver melhor essa equação é o socialismo, disso não tenho a menor dúvida. Acho que o mundo marcha para o socialismo. Não o socialismo acadêmico típico, a gente não sabe o que vai ser... o que é o socialismo? É o máximo de igualdade econômica. Por exemplo, sou um professor aposentado da Universidade de São Paulo e ganho muito bem, ganho provavelmente 50, 100 vezes mais que um trabalhador rural. Isso não pode. No dia em que, no Brasil, o trabalhador de enxada ganhar apenas 10 ou 15 vezes menos que o banqueiro, está bom, é o socialismo.

- O que o socialismo conseguiu no mundo de avanços?

 

O socialismo é o cavalo de Troia dentro do capitalismo. Se você tira os rótulos e vê as realidades, vê como o socialismo humanizou o mundo. Em Cuba eu vi o socialismo mais próximo do socialismo. Cuba é uma coisa formidável, o mais próximo da justiça social. Não a Rússia, a China, o Camboja. No comunismo tem muito fanatismo, enquanto o socialismo democrático é moderado, é humano. E não há verdade final fora da moderação, isso Aristóteles já dizia, a verdade está no meio. Quando eu era militante do PT – deixei de ser militante em 2002, quando o Lula foi eleito – era da ala do Lula, da Articulação, mas só votava nos candidatos da extrema esquerda, para cutucar o centro. É preciso ter esquerda e direita para formar a média. Estou convencido disso: o socialismo é a grande visão do homem, que não foi ainda superada, de tratar o homem realmente como ser humano. Podem dizer: a religião faz isso. Mas faz isso para o que são adeptos dela, o socialismo faz isso para todos. O socialismo funciona como esponja: hoje o capitalismo está embebido de socialismo. No tempo que meu irmão Roberto – que era católico de esquerda – começou a trabalhar, eu era moço, ele era tido como comunista, por dizer que no Brasil tinha miséria. Dizer isso era ser comunista, não estou falando em metáforas. Hoje, a Federação das Indústrias, Paulo Maluf, eles dizem que a miséria é intolerável. O socialismo está andando... não com o nome, mas aquilo que o socialismo quer, a igualdade, está andando. Não aquela igualdade que alguns socialistas e os anarquistas pregavam, igualdade absoluta é impossível. Os homens são muito diferentes, há uma certa justiça em remunerar mais aquele que serve mais à comunidade. Mas a desigualdade tem que ser mínima, não máxima. Sou muito otimista. (pausa). O Brasil é um país pobre, mas há uma certa tendência igualitária no brasileiro – apesar da escravidão - e isso é bom. Tive uma sorte muito grande, fui criado numa cidade pequena, em Minas Gerais, não tinha nem 5 mil habitantes quando eu morava lá. Numa cidade assim, todo mundo é parente. Meu bisavô era proprietário de terras, mas a terra foi sendo dividida entre os filhos... então na minha cidade o barbeiro era meu parente, o chofer de praça era meu parente, até uma prostituta, que foi uma moça deflorada expulsa de casa, era minha prima. Então me acostumei a ser igual a todo mundo. Fui criado com os antigos escravos do meu avô. Quando eu tinha 10 anos de idade, toda pessoa com mais de 40 anos tinha sido escrava. Conheci inclusive uma escrava, tia Vitória, que liderou uma rebelião contra o senhor. Não tenho senso de desigualdade social. Digo sempre, tenho temperamento conservador. Tenho temperamento conservador, atitudes liberais e ideias socialistas. Minha grande sorte foi não ter nascido em família nem importante nem rica, senão ia ser um reacionário. (risos).

 

A Teresina, que inspirou um livro com seu nome, o senhor conheceu depois?

 

Conheci em Poços de Caldas... essa era uma mulher extraordinária, uma anarquista, maior amiga da minha mãe. Tenho um livrinho sobre ela. Uma mulher formidável. Mas eu me politizei muito tarde, com 23, 24 anos de idade com o Paulo Emílio. Ele dizia: “é melhor ser fascista do que não ter ideologia”. Ele que me levou para a militância. Ele dizia com razão: cada geração tem o seu dever. O nosso dever era político.

- E o dever da atual geração?

 

Ter saudade. Vocês pegaram um rabo de foguete danado.

- No seu livro “Os parceiros do Rio Bonito” o senhor diz que é importante defender a reforma agrária não apenas por motivos econômicos, mas culturalmente. O que o senhor acha disso hoje?

 

Isso é uma coisa muito bonita do MST. No movimento das Ligas Camponesas não havia essa preocupação cultural, era mais econômica. Acho bonito isso que o MST faz: formar em curso superior quem trabalha na enxada. Essa preocupação cultural do MST já é um avanço extraordinário no caminho do socialismo. É preciso cultura. Não é só o livro, é conhecimento, informação, notícia... Minha tese de doutorado em ciências sociais foi sobre o camponês pobre de São Paulo – aquele que precisa arrendar terra, o parceiro. Em 1948, estava fazendo minha pesquisa num bairro rural de Bofete e tinha um informante muito bom, Nhô Samuel Antônio de Camargos. Ele dizia que tinha mais de 90 anos, mas não sabia quantos. Um dia ele me perguntou: “ô seu Antonio, o imperador vai indo bem? Não é mais aquele de barba branca, né?”. Eu disse pra ele: “não, agora é outro chamado Eurico Gaspar Dutra”. Quer dizer, ele está fora da cultura, para ele o imperador existe. Ele não sabe ler, não sabe escrever, não lê jornal. A humanização moderna depende da comunicação em grande parte. No dia em que o trabalhador tem o rádio em casa ele é outra pessoa. O problema é que os meios modernos de comunicação são muito venenosos. A televisão é uma praga. Eu adoro, hein? Moro sozinho, sozinho, sou viúvo e assisto televisão. Mas é uma praga. A coisa mais pérfida do capitalismo – por causa da necessidade cumulativa irreversível – é a sociedade de consumo. Marx não conheceu, não sei como ele veria. A televisão faz um inculcamento sublimar de dez em dez minutos, na cabeça de todos – na sua, na minha, do Sílvio Santos, do dono do Bradesco, do pobre diabo que não tem o que comer – imagens de whisky, automóvel, casa, roupa, viagem à Europa – cria necessidades. E claro que não dá condições para concretizá-las. A sociedade de consumo está criando necessidades artificiais e está levando os que não têm ao desespero, à droga, miséria... Esse desejo da coisa nova é uma coisa poderosa. O capitalismo descobriu isso graças ao Henry Ford. O Ford tirou o automóvel da granfinagem e fez carro popular, vendia a 500 dólares. Estados Unidos inteiro começou a comprar automóvel, e o Ford foi ficando milionário. De repente o carro não vendia mais. Ele ficou desesperado, chamou os economistas, que estudaram e disseram: “mas é claro que não vende, o carro não acaba”. O produto industrial não pode ser eterno. O produto artesanal é feito para durar, mas o industrial não, ele tem que ser feito para acabar, essa é coisa mais diabólica do capitalismo. E o Ford entendeu isso, passou a mudar o modelo do carro a cada ano. Em um regime que fosse mais socialista seria preciso encontrar uma maneira de não falir as empresas, mas tornar os produtos duráveis, acabar com essa loucura da renovação. Hoje um automóvel é feito para acabar, a moda é feita para mudar. Essa ideia tem como miragem o lucro infinito. Enquanto a verdadeira miragem não é a do lucro infinito, é do bem-estar infinito.

 

 

 

QUEM É

Antonio Candido de Mello e Souza nasceu no Rio de Janeiro em 24 de julho de 1918, concluiu seus estudos secundários em Poços de Caldas (MG) e ingressou na recém-fundada Universidade de São Paulo em 1937, no curso de Ciências Sociais. Com os amigos Paulo Emílio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado e outros fundou a revista Clima. Com Gilda de Mello e Souza, colega de revista e do intenso ambiente de debates sobre a cultura, foi casado por 60 anos. Defendeu sua tese de doutorado, publicada depois como o livro “Os Parceiros do Rio Bonito”, em 1954. De 1958 a 1960 foi professor de literatura na Faculdade de Filosofia de Assis. Em 1961, passou a dar aulas de teoria literária e literatura comparada na USP, onde foi professor e orientou trabalhos até se aposentar, em 1992. Na década de 1940, militou no Partido Socialista Brasileiro, fazendo oposição à ditadura Vargas. Em 1980, foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores. Colaborou nos jornais Folha da Manhã e Diário de São Paulo, resenhando obras literárias. É autor de inúmeros livros, atualmente reeditados pela editora Ouro sobre Azul, coordenada por sua filha, Ana Luisa Escorel.

 

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