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Grandes entrevistas

 

Gerardo Mello Mourão

    Entrevistada publicada na Revista E, do SESC/SP, ano 6, nº 37, de junho de 2000.

 

O primeiro contato com a poesia de Gerardo Mello Mourão não é dos mais fáceis. Os versos caudalosos, de sintaxe complexa e vocabulário rebuscado buscam, na essência, compor um tema universal. Só que a obra do autor é condimentada com as reminiscências das raízes mais longínquas que prendem o poeta ao torrão natal - o Ceará. É da saga da família centenária, dos sons e temperos do Nordeste, das milhares de páginas devoradas, que emerge a inspiração do, quem sabe, mais respeitado poeta brasileiro vivo. O ritmo de sua escrita, talhado por uma vasta erudição, veste, além dos versos, a prosa e, até há pouco tempo, crônicas diárias em jornais de todo o Brasil. A seguir trechos principais da entrevista exaclusiva concedida por escrito à Revista E.

Se por um lado sua obra poética é majestosa, com pretensões universalistas, por outro, o senhor utiliza elementos locais da sua família e do prosaísmo da vida nordestina. Como conciliar esses dois enfoques aparentemente discrepantes?


Majestosa? Só se for no sentido musical, em que as partituras indicam na pauta as palavras maestoso, ou andante, ou allegro e assim por diante, para marcar o ritmo e o tempo de trechos da sonata ou cantata. Nestes termos, quem me dera que meus versos guardem e transmitam ao leitor a marcação rítmica que está em toda obra poética, de Homero a nossos dias. Todo homem é uma dança, e tudo começa e tudo acaba em dança - advertia Keats. Assim é a poesia. Nasceu da marcação com os pés no chão da dança. Ainda hoje a grande poesia alemã e inglesa - como a poesia dos salmos hebraicos - guarda em cada verso os ritmos greco-latinos, a medida dos tons pela combinação das sílabas breves e longas. Esta é a poesia mensurada de John Donne e Shakespeare, de Byron a Coleridge, a Pound, a Eliot. Nas línguas neolatinas, o ritmo se faz pelas átonas e tônicas, pelo número de sílabas: heptassílabos, os decassílabos, os alexandrinos etc. Mas mesmo em nossa grande poesia, de Dante a Camões, a Mallarmé, a Baudelaire, a Rimbaud, a Leopardi, a Fernando Pessoa, está lá dentro de cada verso a batida dos pés de Homero, Virgílio, Propércio, Ovídio, com seus hexâmetros e pentâmetros, seus dáctilos, anapestos e troqueus - as sonoras combinações de sílabas. É este "arranjo" que dá espírito ao corpo do verso, e o poeta sabe gerá-lo, com a inocência do bom soprador de flauta ou tocador de viola, que rege o furo e a corda do instrumento com a sabedoria intuitiva e mágica que exclui mesmo a intenção. Por geração espontânea, digamos. Sem essa sabedoria mágica, qualquer sujeito poderá metrificar com rigorosa matemática, "more geométrico", seus falsos versos: mas fará prosa sem saber, como o Mr. Jourdain de Molière. É certo que a revolução estática do princípio do século passado, de Marinetti a Tzara, a Breton e outros, tão fecunda com as descobertas do futurismo, do surrealismo, do dadaísmo, dos concretismos e assim por diante, resolveu abominar a métrica e o verso, como formas artificiais que aprisionaram o pensamento. Oswald de Andrade, um extraordinário "promoter" da boa literatura, embora sendo um poeta menor, como é o caso também de Mário de Andrade, repeliu o poeta que lhe propunha a experiência do soneto, com a famosa imprecação: "Abaixo a gaiola!". Pelo visto, não sabia o que era um soneto ou não sabia o que era uma gaiola. O soneto, como a quadra, como o decassílabo, como o alexandrino etc., é um instrumento poético, como a flauta, o piano, o violão e o cavaquinho são instrumentos musicais. Com eles se faz música boa ou música ruim, dependendo dos dedos ou do sopro e do ouvido de quem toca. O poeta não é um escravo de versos medidos e contados, mas é servidor e provedor do ritmo, do ritmo mensurado e numerado, como nos tercetos do Dante, na oitava rima de Camões, nos sonetos de Gongora, e busca sempre o ritmo - todos os ritmos-, como Claudel ou Pound ou Walt Whitman. "Todos os ritmos, sobretudo os inumeráveis", anunciava Manuel Bandeira. Mas a resposta já está ficando longa: é a má sina das respostas que em geral são sempre mais compridas do que as perguntas. Em todo caso, eu diria ainda que o poema se constrói muito como o "opus" musical: a repetição incessante da mesma frase musical, em todos os tons é a "fuga", ou o "cânon" que estão na medula sonora dos textos mais líricos de Mozart, de Beethoven e de Bach, por exemplo. O poeta repete um número sorteado de sílabas e de palavras, sem nexo entre si, ou trechos de crônicas antigas e histórias do dia-a-dia, como o músico, com apenas as oito notas musicais estabelecidas na escala de Guido d´Arezzo - do-re-mi - e estas oito notas não são uma gaiola, mas a matéria prima do canto. Não há outras, e sair delas, é desafinar. Veja os cantadores de feira do nordeste: eles cantam redondilhas, versos de oito pés em quadrão, os chamados gabinetes de dez sílabas ou o "galope-a-beira-mar" de rigorosos endecassilacos metastasianos. Nunca estudaram métrica, não precisam medir versos no dedos, mas jamais incorrem num verso de pé quebrado. O ritmo nasceu com eles. Os elementos familiares e quotidianos é que salvam o poeta do prosaismo. Convivi muito na juventude com o historiador paulistano Ernani Silva Bruno, muito importante para a nossa geração, e descobrirmos, ainda na adolescência, que a história do mundo é a história de cada homem. E vice-versa. Ernani fundara em São Paulo o movimento "Boitatá". Boitatá é a cobra de fogo, que abre e ilumina o caminho arrastando-se sobre seu chão. Ernani Silva Bruno cunhou uma frase que é o santo e senha dos que pretendemos nossa inserção no universo: "É preciso abrir uma picada para o universal". A palavra "picada", regionalismo típico do caipira de São Paulo ou do matuto do Nordeste, sugere um compromisso com o sítio próprio de nossa tribo. A maneira correta de partir é sair de onde estamos. Até por força da matemática euclidiana, eu só chego lá se partir de onde venho. Eu parto de um engenho de cana, de um curral reiúno, de uns coronéis valentes e bravateiros, de umas mulheres beatas, de uns cangaceiros matadores, bons no rifle e no punhal, que fundaram a Renascença da civilização brasileira.

Quais foram os escritores que o influenciaram mais intimamente? Com quais poetas o senhor alinha sua obra?


Não sei se é próprio falar de influências. Prefiro lembrar algumas referências. A primeira delas foi o caboclo Anselmo Vieira, cantador da feira de Ipueiras, com sua rebeca rouca, sua voz gemedeira, cantando quadras e sextilhas de sete sílabas, mourões de oito pés em quadrão, galopes-à-beira-mar em puros endecassílabos de Metastasio e assim por diante. Aos cinco anos aprendi seus versos de cor, depois de tanto ouvi-los, antes mesmo que os pais do folclorismo nordestino, Gustavo Barroso, Leonardo Mota e Câmara Cascudo os recolhessem em antologias. Depois, entre os doze e os treze anos, comecei a ler e traduzir em grego e em latim, Homero e Píndaro, Virgílio e Horácio, Ovídio e Propércio, nos exercícios que eram a voluptuosa disciplina cotidiana e o pão de cada dia no convento de redentoristas holandeses em que vivi até os dezoito anos. E naturalmente a Sagrada Escritura, em que fui iniciado desde a primeira adolescência e que me deu a salubre convivência e o vício da vida inteira no convívio de Isaías, Jeremias, Ezequiel, e Daniel com os quatro evangelhos e as cartas de São Paulo, tudo isso no ritmo religioso do canto gregoriano, cantado de manhã, de tarde e de noite na serenidade claustral, ritmo dominante, talvez, de minha poesia. E mais: nos textos às vezes da Koiné grega, mas sobretudo na linguagem vigorosa do violento latim de são Jerônimo. Este Jerônimo que é para mim, como para André Gide, Léon Bloy e Valéry Larbaud, o maior escritor do Ocidente. De uma de suas passagens, a conversa de Jesus com seus amigos apóstolos na Última Ceia, o agnóstico Gide diria que se nunca tivesse havido um Deus ele teria afinal aparecido naquela noite, com aquele texto, pois jamais um ser humano poderia tê-lo redigido. Só um Deus. No ano passado, em Seminário realizado na Sorbonne pelo Professor Christos Klairis, em sua cátedra Lingüística e com a participação de quinze lingüistas, para um debate sobre um de meus livros de poemas, lembrou aquele mestre que Dionísio, o Trácio, em sua Gramática, a mais antiga que se conhece no Ocidente, ao falar da natureza do poema, dizia que a poesia é um sopro. E Christos Klairis invocava ainda um dos mais antigos estudos de poética que se conhecem, o de Zenon e Eléia, para quem a poesia deve ter duas medidas: a metonímia e os "pachos", a palavra que quer dizer "espessura". (Daí vem a palavra "pacote"). Com esta espessura que se constrói com as palavras, uma depois da outra, em cima da outra, o poeta estende no leito dos vales da linguagem o rio volumoso de corrente de sua expressão, para a metáfora de seu canto. Talvez por isto o que é próprio do rio do poema é ser um rio caudaloso. Também em 1999, o jornal Le Monde promovia um debate entre escritores para identificar a qualidade e as tendências da mais autêntica poesia francesa contemporânea. Houve um entendimento praticamente unânime de que os dois poetas mais representativos da França neste século poderiam ser Claudel, entre os mortos, e meu amigo Robert Marteau, entre os vivos, com seus largos, longos, caudalosos versos, capazes de sustentar a metonímia e o pachos da visão eleata da poesia. Sobretudo porque esta caudal se faz com as águas substantivas da metáfora, e não com os berliques e berloques dos adjetivos, artificiais e ornamentais da eloqüência vazia. Parece-me que seria fútil ou arrogante alinhar com a de outros poetas a minha própria obra. Lembraria mesmo a resposta de Heidegger, quando lhe perguntaram como situar "a filosofia de Heidegger". A resposta do filósofo foi que não havia uma filosofia de Heidegger, e se houvesse não haveria importância alguma. O que existe e o que importa é a filosofia, ponto. No caso, a poesia, e não a poesia de Gerardo.

Durante sua trajetória, o senhor nunca se filiou a nenhuma corrente estilística, nem ideológica. O senhor não concebe a produção artística engajada, como um suporte para para ideologias?

A ideologia é a negação da fecundidade e da liberdade do espírito. O sujeito que se escraviza a uma ideologia não tem idéias. Tem uma idéia só. Às vezes, fascinado por um sonho generoso, o homem se encerra no círculo de ferro, estéril e sem saída, de uma ideologia. O século 20 conheceu esta indigência e esta impostura, com a endemia do marxismo. Parece que hoje não há mais marxistas nos círculos respeitáveis do pensamento em nenhum país culturalmente aparelhado. O marxismo, que se tornou uma redução política na União Soviética e seus satélites do Leste, já não existe mais a não ser na pobre ilha desolada de Fidel Castro, onde sobreviverá, se sobreviver, até o dia em que o idoso "comandante" venha a morrer, e na indigente e agoniada Coréia do Norte, até o dia em que se recolham a um manicômio o ditador "minus habens" ali entronizado por direito hereditário. O marxismo começou a morrer no dia em que um de seus maiores aplicados clérigos, o lúcido e inteligente Achille Occhetto, Secretário Geral do Partido Comunista italiano proclamou: "Il comunismo è finito." Aí veio o terremoto de Berlim, e um dos mais eminente cardeais da ideologia da Europa, convidado a falar sobre aqueda do muro, respondeu: "Houve um terremoto, e eu não discuto com um terremoto." No Brasil, quase todos os membros do atual governo pagaram seu pedágio ao marxismo. Hoje, seria uma injúria ou uma desinformação supor que algum deles seja ainda marxista. Restam alguns cavalheiros na mediocridade do mundo acadêmico ou dos supostos profissionais da cultura, que encontraram no marxismo um pé-de-cabra para seus supostos êxitos literatura, conseguidos à custa dos patrulhamentos vergonhosos e imorais, institucionalizados por um funcionário de Stalin, o medíocre escritor Ilia Ehrenburg, como documenta o grave terrível livro de Lottman, La Rive Gauche. Mas, de certo modo o destino do marxismo chega ao fim, com a morte das ideologias, que vão parar todas na lata de lixo da história. Isto não significa que devamos satanizar o marxismo e os marxistas. Eles cumpriram uma importante missão histórica: acelerar o respeito aos direitos dos trabalhadores na selva selvagem do capitalismo desumano. Veja homens como o Oscar Niemeyer: ele é o último dos moicanos do comunismo, e é um santo por sua profissão de fé de amor ao ser humano.

Por que a inteligentzia que compunha os movimentos de vanguarda no início do século 20 (como Ezra Pound e T.S Eliot) comprou idéias fascistas?


Não sei se a inteligentzia comprou idéias fascistas. Mas os exemplos de Ezra Pound não são únicos. Na literatura inglesa, além de Chesterton, que foi militante uniformizado do Partido Fascista de Sir Oswald Mosley, como tantos outros intelectuais, basta lembrar que D. H. Lawrence, o mais importante romancista inglês de seu tempo, assinou manifestos favoráveis a Mussolini, como o próprio James Joyce, que saudou o Duce italiano como uma esperança jovem para o mundo. Quase todos os membros do círculo que girou em torno de Pound, os chamado "Pound's artists" acompanhavam as idéias políticas do poeta. As patrulhas de esquerda escondem esses fatos, temerosas do peso desses nomes na opinião cultural. Mas todo o mundo sabe disso. Em Portugal, praticamente toda a inteligentzia lusíada aplaudia Salazar e participava de seu governo. O poeta Fernando Pessoa é signatário de vários manifestos e moções de louvor e apoio a Salazar. Na Alemanha, além de Heidegger, passaram pelo nazismo figuras como o cientista Max Planck, criador da teoria dos "quanta", sem a qual não teria existido Einstein, a Heisenberg, criador da teoria mais avançada da física de nosso tempo, a teoria da indeterminabilidade, que ampliou os horizontes einsteinianos. O dramaturgo Gerhard Hauptmann foi filiado ao Partido Nazista, como Prêmio Nobel de literatura norueguês Knut Hamsum e o pintor Paul Klee saudou o advento de Hitler. Na Itália, o próprio Alcide de Gasperi, ao chefiar o primeiro governo do país depois de Mussolini, recusou-se a promover julgamentos contra os fascistas, para não Ter de meter na cadeia toda a inteligentzia italiana. O poeta D'Annunzio recebeu o título nobiliárquico de Príncipe das mãos de Mussolini, por sua luta armada e por suas odes em favor do fascismo. O mesmo Mussolini nomeou Senadores romanos pelo Partido Fascista o teatrólogo Pirandello e o poeta Marinetti, criador do futurismo e cabeça de todo o vanguardismo literário e artístico da Europa. O então jovem poeta Ungaretti pediu a Mussolini para fazer o prefácio de seu primeiro livro de poemas. E por aí afora, sem esquecer que o próprio Benetto Croce, pai do liberalismo deste século e pai da moderna crítica literária e do pensamento estético moderno, antes de recolher-se ao ostracismo em seu "palazzo" napolitano, em silenciosos e digno protesto contra o regime, votara a favor da investidura de Mussolini como Primeiro-Ministro, depois da famosa Marcha sobre Roma. Quando se sabe que até o divino poeta Rainer Maria Rilke, tão alheio aos problemas temporais, saudou com entusiasmo a chegada de Hitler, não é difícil imaginar o que aconteceu no resto da Europa. As relações do psicanalista Jung com o ditador alemão foram as mais explícitas. Hitler o fez presidente da Sociedade Alemã de Psicanálise, e teve nele seu mestre e seu guru: a escolha da cruz suástica como símbolo do nazismo foi uma indicação pessoal de Jung. E além de pai da suástica, Jung foi o inventor da pureza da raça ariana e da exclusão dos judeus da Europa, teses que se tornaram marca registrada do nazismo. Na França, basta lembrar os livros reeditados no ano passado, do escritor israelense Zeev Sterbnell (Gallimard, quase 700 páginas), A Direita Revolucionária e As origens francesas do fascismo. Seria interminável a lista dos escritores franceses oriundos do fascismo, como o próprio Bernanos e toda a legião de impressão de que Charles Maurras fez a cabeça dos franceses militantes e simpatizantes da "Action Française". Tem-se a impressão de que Charles Maurras fez a cabeça dos franceses representativos, nas letras, nas artes e na política, incluindo o General De Gaulle, Pompidou, o socialista Mitterand e assim por diante. A França madrugou para o fascismo e o anti-semitismo com o "affaire Dreyfus". Assim, não é por acaso que o mais consagrado - talvez o maior - poeta francês do século, Paul Claudel, tenha escrito uma ode retumbante ao General Franco quando o fascismo despontou na Espanha. E ainda recentemente, em minucioso levantamento divulgado pelo jornal de esquerda Le Monde, a melhor crítica literária do país, ao relacionar os grandes escritores do século no país, chegava à conclusão de que todos eram de direita. E concluía: "Hélas! Ils sont à droite". Num cotejo entre Aragon e Céline, isto é, entre o poeta símbolo da literatura de esquerda e o romancista condenado como nazista, não era possível hesitar na escolha. O nome a ficar para a posteridade era Céline. E ponha cotejos semelhantes nisto! Basta lembrar o caso da fama pirotécnica de Sartre, cuja obra filosófica está condenada a um julgamento irremissível: é apenas um pastiche, uma contratação medíocre da obra de seu antigo mestre Martin Heidegger, "ad usum Delphini". No caso, "ad usum" das militâncias de esquerda nas ruas e nas medíocres academias do Terceiro Mundo.

Esse exemplo foi seguido no Brasil com o Estado Novo?


No Brasil, até por ser impostura e uma contrafação do fascismo, o Estado novo não aliciou entusiasmos maiores no universo artístico cultural. A eventual presença de artistas e escritores em órgãos do governos não chega a comprometer ideologicamente ninguém. Ninguém vai acusar Carlos Drummond ou Clarice Lispector de serem partidários da ditadura só pelo fato de haver o poeta servido no gabinete do Ministro da Educação, Gustavo Capanema - um grande ministro, de resto - ou a romancista por haver tido um emprego no DIP, a agência de propaganda do Goebbels tupiniquim do Estado Novo. Mesmo intelectuais e artistas que foram colaboradores de projetos do governo da ditadura, como Cassiano Ricardo, o citado Gustavo Capanema, o maestro Villa-Lobos, o pintor Portinari e o arquiteto Oscar Niemeyer, estão todos eles acima de qualquer suspeita. Aqui, os compromissos com o fascínio da direita devem ser catalogados entre os militantes e simpatizantes do integralismo, entre os quais não fujo de incluir meu próprio nome, certamente o menos importante entre tantos outros, como Luiz da Câmara Cascudo, Miguel Reale, Gustavo Barroso, Gofredo Silva Teles, Almeida Sales, Ernani da Silva Bruno, Rolan Corbisier, Antônio Galloti, Américo Jacobina Lacombe, Adonias Filho Guerreiro Ramos, os poetas Olegário Mariano, Jorge de Lima, Augusto Frederico Schmidt, Tasso da Silveira e Francisco Karam - doce poeta hoje tão esquecido - e toda uma legião de pensadores, professores, artistas plásticos, músicos, acadêmicos, e o próprio Tristão de Athayde, por cuja mão cheguei à filiação integralista. Isto, sem falar nos que passaram apenas por alguma tempo pelo integralismo como o crítico Álvaro Lins e o romancista José Lins do Rego. Mas o integralismo brasileiro era uma direita à moda da casa e não pode ser confundido com o nazismo. Sua satanização pelas esquerdas incompetentes é uma falta de informação. Por exemplo: o integralismo estava cheio de militantes judeus ortodoxos. Meu primeiro chefe imediato, o Diretor do Departamento Universitário a que fui filiado, era o brilhante judeu Aben-Attar Neto, fundador do Centro Osvaldo Spengler, que passou de Chefe do Departamento Universitário a Secretário Provincial de Propaganda do Integralismo no Rio de Janeiro. Mas isso é outra história.

O poeta é um santo?

O poeta é um santo, um santo mártir, no sentido etimológico da palavra, que quer dizer testemunha. Mas o poeta é também um endemoniado. As duas coisas, para lá de todas as medidas. Gide e meu saudoso amigo, o romancista Lúcio Cardoso, achavam que o demônio é a mais permanente fonte de inspiração.

Durante sua trajetória, o senhor nunca se filiou a nenhuma corrente estilística, nem ideológica. O senhor não concebe a produção artística engajada como um suporte para para ideologias?


A ideologia é a negação da fecundidade e da liberdade do espírito. O sujeito que se escraviza a uma ideologia não tem idéias. Tem uma idéia só. Às vezes, fascinado por um sonho generoso, o homem se encerra no círculo de ferro, estéril e sem saída, de uma ideologia. O século 20 conheceu essa indigência e essa impostura, com a endemia do marxismo. Parece que hoje não há mais marxistas nos círculos respeitáveis do pensamento em nenhum país culturalmente aparelhado. O marxismo, que se tornou uma redução política na União Soviética e seus satélites do Leste, já não existe mais a não ser na pobre ilha desolada de Fidel Castro - onde sobreviverá, se sobreviver, até o dia em que o idoso "comandante" venha a morrer - e na indigente e agoniada Coréia do Norte, até o dia em que se recolham a um manicômio o ditador "minus habens" ali entronizado por direito hereditário. O marxismo começou a morrer no dia em que um de seus mais aplicados clérigos, o lúcido e inteligente Achille Occhetto, secretário-geral do Partido Comunista italiano, proclamou: "Il comunismo è finito". Aí veio o terremoto de Berlim, e um dos mais eminente cardeais da ideologia na Europa, convidado a falar sobre aqueda do muro, respondeu: "Houve um terremoto, e eu não discuto com um terremoto". No Brasil, quase todos os membros do atual governo pagaram seu pedágio ao marxismo. Hoje, seria uma injúria ou uma desinformação supor que algum deles seja ainda marxista. De certo modo o destino do marxismo chega ao fim, com a morte das ideologias, que vão parar todas na lata de lixo da história. Isto não significa que devamos satanizar o marxismo e os marxistas. Eles cumpriram uma importante missão histórica: acelerar o respeito aos direitos dos trabalhadores na selva selvagem do capitalismo desumano. Veja homens como o Oscar Niemeyer: ele é o último dos moicanos do comunismo, e é um santo por sua profissão-de-fé de amor ao ser humano.

Qual a finalidade da literatura?


A finalidade da literatura é a verdade. Mais claramente: é a beleza da verdade. O escultor Brancuse pergunto um dia a Pound o que ele buscava em seu trabalho. O poeta respondeu: a beleza. Brancuse, que era oficial do mesmo ofício comentou: "Beauty is difficult". Por isso, Lautréamont advertia: "A missão da poesia é difícil. Ela não se mete nos acontecimentos da política, na maneira pela qual se governa um povo, não faz sequer alusão aos períodos históricos, aos golpes de Estado, aos regicídios, às intrigas da corte. Não trata nem mesmo das lutas que excepcionalmente o homem trava consigo próprio, com suas paixões. O que ela faz é descobrir as leis que dão corpo e vida à política teórica, à paz universal, às refutações de Maquiavel, aos corneteiros da obra de Proudhon, à psicologia da humanidade". Por isso mesmo, Novalis lembrava as origens apolíneas da poesia nos oráculos de Delfos. Ela junta as palavras e os sons que compõem a magia de sua mensagem logicamente incompreensível, claros enigmas que se dão ao conhecer na zona incontaminada do conhecimento intuitivo. Do conhecimento mágico. A Sibila Délfica, ao proferir certa vez um oráculo a um capitão de Atenas, foi por ele solicitada a interpretá-lo. Respondeu: "Apolo não ensina. Apolo revela." Assim, a poesia. Ela não ensina. Ela apenas revela, e isto é tudo. Enganam se os poetas que querem ensinar. Como o nosso bom e sofrido João Cabral, que escrevia seus breves versos didáticos como se estivesse sempre ensinando, pedagogicamente. Ele mesmo sabia que não era um poeta e preferia ser chamado de "escritor de poesia". Escritor, sim, de poesia não. Seus textos devem ser didáticos, mas nunca poéticos. Proferem instruções, ordens do dia, mas não revelações. O mesmo equívoco ocorre com todos os outros supostos poetas engajados.

Tido por muitos como adepto das esquerdas, o senhor recebia pressões por parte da intelligentzia de esquerda para tingir sua obra com um caráter político imediato?

Nas duas ditaduras deste país, a do Estado Novo e a do regime militar de 64, fui perseguido, preso, torturado (em 67 quase até a morte), primeiro como fascista, depois como comunista. Estou vivo por milagre. O oportunismo revolucionário, à esquerda e à direita, forçou a catagolação de quem lhe convinha, neste ou naquele esquema. Haja vista o escritor Otto Maria Carpeaux, até filiado ao fascismo austríaco, que foi confiscado pela esquerda apenas porque lutou aqui contra a ditadura militar. Todos nos querem enquadrar.

O crítico literário Wilson Martins afirma que a literatura brasileira é irrelevante para os outros países. O senhor concorda com ele?


O sr. Wilson Martins, que exerce a missão de crítico com independência, dignidade e uma lucidez rara entre nós para os de seu ofício, sabe o que diz.

Nós ainda padecemos do mal da especialização, da ditadura da certeza e dos bárbaros da individualidade que marcaram nossa história?


A especialização é uma das pragas de nosso tempo cultural. Cito sempre Ortega: o especialista é o sujeito que sabe cada vez mais sobre cada vez menos.

O senhor considera o esquema proposto por Decartes falido? É preciso acreditar mais na essência do homem? O ser e a razão são irreconciliáveis? O senhor acredita que estamos retomando gradualmente a espiritualidade? Ela é legítima?


Seria preciso um tratado inteiro para responder a esta pergunta. O racionalismo cartesiano não é tão excludente como pensam alguns. O próprio Descartes conta que formulou seu famoso teorema depois de uma revelação que lhe chegara num sonho. Quer dizer: o sonho e a razão, a fé e o raciocínio têm um ponto de encontro no âmago do ser.

O fenômeno da globalização impõe a homogeneização cultural?


A resposta também teria que ser longa. Depois que Paul Valéry nos advertiu que as civilizações morrem, muita gente passou a confundir civilizações com cultura. As culturas não morrem. E quando morrem, é para nascer de novo. O bem-sucedido pragmatismo norte-americano confunde as coisas no simplismo de sua filosofia do êxito. Nas universidades americanas Sócrates e Platão são acusados de fascistas, e os ingênuos professores das Harvards da vida proclamam que estes filósofos estão superados. Não é assim: um automóvel Ford 1930 pode estar superado pelo Ford 1980. Mas o pensamento essencial de um filósofo de 1500 anos atrás não é superado com a facilidade com que se supera um artefato mecânico. Homero ou Dante não podem ser superados. Situam-se num campo em que não existe esse negócio de superação.

Nesse sentido, existiria uma cultura brasileira?


Mesmo quando seja nos seus balbucios, é claro que há uma cultura brasileira. Refiro-me à cultura do saber, como a definiu Max Scheler, e que não tem nada a ver com os conceitos sociológicos e antropológicos de cultura que estão na moda. A cultura brasileira há de ser um quinhão valioso no formal de partilha da cultura ocidental.

Como o senhor enxerga a crise por que passa a Universidade pública? Estamos realmente vivendo um período de crise ou é o conceito de universidade que está deteriorado? Existe alguma saída viável?


Creio que a Universidade no mundo inteiro, salvo raríssimas exceções, está em crise. Melhor: não é a Universidade que está em crise, com a depravação pós-iluminista do conceito de saber.

Como o senhor assistiu às comemorações dos 500 anos de Descobrimento? Mais uma vez a festa - elemento que caracteriza o país - foi imposta de cima para baixo e os representantes legítimos foram alijados?


Convidado certa vez para as comemorações do segundo centenário de Goethe, Ortega y Gasset excusou-se dizendo - "no estoy para commemoraciones." Eu também, não estou para comemorações, sobretudo quando dirigidas por comandos institucionais.

De sua experiência como correspondente no Oriente, notadamente na China, como o senhor vê a recepção dos países a valores ocidentais, depois da abertura econômica?


Não sei. A China é difícil. Não creio que um povo tribalmente homogêneo, com 5 mil anos de história escrita, possa um dia perder sua identidade. Aquele perigo de ianquização da Europa, denunciado por Ortega y Gasset, não existe na China nem no Jap
ão. Talvez acabe um dia ocorrendo o inverso, como se diz dos gregos: acabaram sempre colonizando seus colonizadores.

No fim da década de 70, o senhor afirmou que naquele momento era necessário "maquiavelizar" o Brasil, seguindo uma orientação de Octavio de Faria. Isso ainda se faz necessário hoje em dia? Como Nicolau pode ajudar nosso governo?


Em seu admirável livro quase adolescente, Maquiavel e o Brasil, escrito aos 22 anos, Octavio de Faria abriu uma picada para a organização do poder político neste país. O Chico Campos, seu mestre e sobretudo seu discípulo em algumas coisas, tentou encontrar aquele momento maquiavélico, também lembrado por Popper, depois de Octavio, para repetir a experiência florentina de fundação de uma civilização política. Mas o ditador de que Chico Campos dispunha não estava à altura. O general Castelo Branco, também influenciado por Campos e pelo romancista Adonias Filho, antigo integralista e discípulo de Octavio, pensou em ser o protagonista desse momento maquiavélico. Também não esteve à altura, até porque Machiavel não propunha ditadores. Propunha estadistas. Neste momento, embora oriunda das esquerdas e dos equívocos marxistas, parece que o presidente Fernando Henrique está, de certo modo, atento aos semáforos do momento maquiavélico. O tempo pode ser propício. Mas o espaço político em que está condenado a operar é precário e inepto. Pode até haver uma vocação de Lorenzo di Medicis na solidão do Planalto. Mas não há aquela graça do Ponte Vecchio sobre o rio, por onde cruzava diariamente para seu despacho na mesa de carvalho do Palazzo della Signoria o amanuense Niccolo Machiavello. No chão de figueiras estéreis do estéril burgo podre de Brasília jamais poderão medrar o espírito e o cérebro do florentino que sonhou o perfil do Príncipe para sua admirável república.

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