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Grandes Entrevistas

 

Guimarães Rosa 1

 

Entrevistado por Pedro Bloch e   -    Extraído de: Pedro Bloch entrevista

Publicado na revista  Manchete,        Rio de Janeiro, Bloch, Ed. 1989.

nº 580, de 15/06/1963

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A Academia Brasileira de Letras espera, de braços abertos e com banda de música na porta, seu novo membro que deverá ser eleito por unanimidade: Guimarães Rosa, o genial escritor brasileiro que está invadindo o mundo com sua obra. O espanto dos editores e da crítica de todos os países, que vêm conhecer o singular homem de letras, tem sido imenso. O impacto é o da descoberta avassaladora de algo novo, inédito, neste mundo já sem originalidades. João Guimarães Rosa está na minha frente e avisa:

 

Olhe, Pedro. Não posso dar entrevista. Não dou. Neguei a meus melhores amigos. Até a José Olímpio. Se dou a você, me coloco mal diante dele

 

Prometo respeitar seus escrúpulos. Não é entrevista, que não sou entrevistador. É conversa. E não é de responder a perguntas mas, tão amigo sou de Guimarães Rosa, tanto o conheço, tanto temos falado, que nem precisaria de ali estar para entrevistá-lo. Não preciso perguntar nada pra saber que The Devil to day in the Backlands (tradução americana de Grande Sertão e que textualmente significa: "Vai Haver o Diabo no Sertão") foi editado por Knopf este ano; Il Duello (Primeira parte de Sagarana) tem êxito enorme na Itália, enquanto já se prepara a segunda parte; Seuil, da França, publicou, em 1961, Buriti (uma parte de Corpo de Baile) que, por sinal, não inclui a novela Buriti, mas três outras; em 1962 surgiu Les Nuits du Sertão (L'Express proclamou: Guimarães Rosa é Giono multiplicado por dez!); Livros do Brasil, de Lisboa, alterando todo o seu programa de publicação, dá prioridade absoluta à obra de Rosa, já tendo lançado Sagarana, com êxito invulgar; Feltrinelli, de Milão, publicará Corpo de Baile, Grande Sertão e obras futuras; na Suécia, na Alemanha (Kipenheuer), na Noruega (Gyldendel Norvsk), na Dinamarca, na Tchecoslováquia (Dilia), na Holanda, na Finlândia, na Espanha, em toda parte a obra deste vulto extraordinário de nossa literatura está provocando acaloradas disputas pela prioridade de publicação.

 

Você sabe por que não dou entrevista? - diz-me Guimarães Rosa. - Não é por vaidade, por nada. No começo, quando eu não era ninguém, ninguém queria entrevistar-me. Depois, com o começo de minha carreira literária, com Sagarana, começaram a entrevistar-me. As entrevistas saíam e eu guardava. Não tenho nada contra quem entrevista. Tenho é contra mim. Passado tempo ia ver o que tinha dito e não concordava mais comigo. Não diria mais aquilo, compreende? Não gosto do transitório, do provisório. Gosto do eterno.

 


Pra confirmar o que lhe digo, veja você, por exemplo, aquele questionário que perguntava "quais as dez palavras mais bonitas da língua". Eu, por exemplo, não acho bonita a palavra saudade. Pra mim é a palavra alma, mesmo graficamente. Das palavras que enumerei, naquela ocasião, só sobraram esta e alegria. Alma é feia em qualquer idioma, menos no nosso; anima, âme, sou!... Alma, para mim, é como tinido de cristal; alegria é cacho de uvas esmagado.

 

(Insensivelmente, Guimarães Rosa esmaga no cinzeiro o cigarro que fuma sem vocação para o fumo.)

 

Seuil, editora famosíssima, diz: "Sabemos que estamos diante de uma grandiosíssima obra, daquelas que um editor tem raríssima oportunidade de deparar no decurso de sua carreira"; "abrimos uma exceção, enviando trechos das fichas confidenciais de leitura", tal o entusiasmo provocado; "o impacto causado no público vai mudar completamente nossa atitude em face da literatura sul-americana". Albin-Michel está em vias de lançar Grande Sertão; enquanto isso, Seuil insiste: "Desejamos tornar-nos vosso único editor, em França, publicar Corpo de Baile, Grande Sertão" e obras futuras (isto vem em telegrama urgente). Não se contentam os editores com a obra que já possuem, mas querem assegurar, para si, tudo o que o escritor brasileiro ainda está para criar.

 

Estou trabalhando em várias coisas, no momento. Sabe? Já entreguei ao Enio Silveira a minha Soberba, parte dos Sete Pecados Capitais.

 

No Brasil acontece uma coisa. Ou se aceita Guimarães Rosa com paixão ou se assume a atitude do “não entendo, não gosto”, sem ter realmente penetrado a obra. Em primeiro lugar é preciso que se compreenda a “alma” dessa criação.

 

- João, como é que você, que fala com essa absurda simplicidade, usa todo aquele “rebuscamento” para criar um conto?

 

Você conhece os meus cadernos, não conhece? Quando eu saio montado num cavalo, por minha Minas Gerais, vou tomando nota de coisas. O caderno fica impregnado de sangue de boi, suor de cavalo, folha machucada. Cada pássaro que voa, cada espécie, tem vôo diferente. Quero descobrir o que caracteriza o vôo de cada pássaro, em cada momento. Não há nada igual neste mundo. Não quero palavra, mas coisa, movimento, vôo.

 

Neste instante ele descobre que o fotógrafo está batendo muitas chapas.

 

Pedro, você me disse que ia só fotografar meus livros, não foi? Não dou entrevista e detesto tirar retrato, sabe por quê? É que não gosto de minha cara. Um dia o Saldanha Coelho mandou um japonês tirar uma foto minha que me agradou. O diabo é que eu nunca mais descobri o tal japonês. Fotógrafo de luxo é o diabo! Faz tanta coisa pra gente ficar bem, que, no fim, sai um retrato artisticamente formidável, mas a gente fica com a cara macerada. Eu não quero esta minha cara. Quero parecer forte e valente. Retrato para mim é sofrimento. Um dia olhei minha cara no espelho e não gostei. Nunca vi sujeito mais antipático.

 

O crítico do The New York Times, Orville Prescott, temido e respeitado, transmitiu, em sua crônica, todo o entusiasmo gerado pelo Grande Sertão: "seu livro é uma assombrosa realização"; William L. Crossman proclama: "Rosa arre­bata o leitor com a beleza selvagem desses sertões. Estilo mágico"; Sunday Star exclama no próprio título: "Um romance extraordinário"; o The Washington Post diz: "Poderoso manipulador de rico material, magistralmente tecido"; a faixa da edição italiana anuncia a obra "del piu originale narratore sudamericano d'oggi"; Juin, de Lettres Françaises, se alonga em admiração; Marcel Brion, de Nouvelles Littéraires: "O estilo de Guimarães Rosa é uma conjuração mágica"; um jornal belga publica: "Encontram-se neste romance o vigor, o estilo, a opulência de um grande escritor"; o Progres: "O primeiro livro já era ótimo; este é fascinante."

 

Nasceu em 1908; em Cordisburgo, Estado de Minas.

 

(Não diga dia nem mês, pelo amor de Deus! Sabe por quê? Começam a chegar telegramas, amigos telefonam carinhosamente e isso me dá um trabalho louco. Se é uma autoridade maior, ainda tenho que agradecer pessoalmente. Fiz o diabo para mandar tirar meu nome da lista de aniversários, nos jornais.)

 

É filho de Florduardo Pinto Rosa e Dona Chiquinha Guimarães Rosa.

 

Em menino eu gostava de isolamento. Trancava-me no quarto, deitava-me no chão a imaginar histórias. Acho que na vida da criança existe um excesso de adultos invadindo.

 

Guimarães Rosa já havia prometido:

 

Um dia ainda hei de escrever um pequeno tratado de brinquedos para meninos quietos.

 

Rosa sempre teve grande pendor para línguas. Seu primeiro professor foi "seu" Candinho, e o franciscano Frei Esteves o introduziu no francês. Guimarães Rosa é médico:

 

Fui exercer a Medicina, durante dois anos, em Itaguara (Itaúna). Só lia Medicina. Naquele tempo, quando eu tinha que atender a doentes, montado a cavalo, longe, achava que qualquer coisa que eu lesse fora da Medicina me enfraquecia. Devorava tudo com angústia, voracidade. Se ao atender um doente eu tivesse lido um jornal ou qualquer coisa não médica, tinha uma impressão de falta, enfraquecimento. Eu não podia aceitar, por exemplo, que doente meu morresse!

 

Guimarães Rosa foi médico na Força Pública de Belo Horizonte. Depois, em 1934, era, em Barbacena, oficial-médico do 9º Batalhão de Infantaria.

 

Fui colega e contemporâneo de Juscelino. Ele chegou a coronel da Força Pública. Eu fiquei em capitão. Vivia estudando línguas para me afogar daquela vida de interior.

 

Em 1934 mesmo veio para o Rio para fazer concurso para o Itamarati. Hoje é o Embaixador Guimarães Rosa, trabalhando em Fronteiras. Escreveu um livro de poesias, quando ainda morava na Praça da República e estudava para o concurso. O livro, Magma, foi premiado pela Academia, mas jamais quis publicá-lo. Em 37 concluiu Sagarana. Como diplomata esteve em Paris, Bogotá, Hamburgo. Em 1946 foi chefe de gabinete do Ministro João Neves da Fontoura, cuja cadeira irá ocupar na Academia.

 

Que é que você quer que eu diga de João Neves? Ele representou tanta coisa para mim! Quando morreu me telefonaram de um jornal pedindo uma frase sobre ele. Como é que eu posso resumir João Neves numa frase? Por essas e outras é que eu não dou entrevista. Há pouco esteve aqui, comigo, uma moça do  The New York Times. Travou comigo uma luta enorme: Quando você me faz uma pergunta é como se estivesse alterando alguma coisa em mim, compreende?

 

Passados instantes e mudando de tema:

 

Sempre fui místico. Tudo tem causa. A religião não está na bondade. Bondade é acessório, compreende?

 

Guimarães Rosa, num de nossos papos, já me havia dito:

 

Você sabe, Pedro Bloch, nunca se pode fazer lista das melhores coisas da vida. A razão é simples: se elas chegam de repente ... falta preparo; se as prevemos... fica sendo cópia. Eu acho que todas as coisas acontecem como se estivessem preparadas antes. A sorte é grande lei da vida e a sorte deve ter suas leis. O mundo é algo plástico. A fé criadora. Não é fé acreditar-se num sistema. Só vemos pedacinhos, fragmentos de uma coisa sempre maior. O momento feliz, já reparou?, não é o que ocorre naquele instante. Está sempre associado a outros lugares e outros tempos. É violino querendo ser orquestra. Só as coisas boas são completas.           .

 

A Araci, sua esposa, Guimarães Rosa trata de Ara. É a ela que ele dedica o Grande Sertão, sua obra máxima. Com ternura, certo dia, me conta o que ela fez, a seu lado, para salvar os perseguidos do nazismo. Deixava de comer para socorrer. Muita gente ainda chora, ao deparar com Araci e Guimarães Rosa, relembrando as vidas que roubaram à Gestapo.

 

Laura Beatriz é a netinha de quem Rosa me conta frases para os meus livros de bolso: "Sabe, mãe? A bola deve gostar muito de mim porque eu jogo ela longe e ela volta." Olhando uma frigideira empretecida: "Olha, mamãe, o de noite da panela." 'Contemplando a chuva: "Mãe, a caminha da chuva é o saco de papel que está no chão da rua."

 

Laura Beatriz trata Guimarães Rosa de Vovô Beleza. Quando telefona diz: - Um beijinho pra você, filhinho do beijo grande que já dei pra você. Adolpho Bloch, certo dia, diante de um indivíduo que criticava seus quadros abstratos, com aquele não entendo de quem não gosta, respondeu ao cavalheiro: - Pôr-de-sol o senhor entende?

 

Isso se associa ao que muita gente diz quando declara não entender o autor de Primeiras Estórias. Diz isso com ar de quem olhou um quadro abstrato ... e ficou no ar. O curioso (e nisso está a grandeza) é que, quando as pessoas dizem que não entendem, no caso do quadro o fazem, sempre, censurando o quadro. No caso de Guimarães Rosa, na grande maioria dos casos, confessam uma culpa, censuram a própria sensibilidade. E têm muita razão em fazê-la.

 

Guimarães Rosa encontrou nas palavras uma quarta dimensão. Elas estão pejadas de novos sentidos. Mesmo apelando para os nossos sentidos poderíamos repetir com Drummond que "cinco sentidos é tão pouco!" Especialmente quando se trata de penetrar a obra de Rosa. As palavras estão nele sentidas e ressentidas, criadas e recriadas. Quem conseguiria dizer como ele, falando de certo indivíduo que "ele era um rico diabo bem-trapilho"?; "Enormes e desenormes"; "mudou e demudou"; "essezinho, essezim"; "abriu em mim um susto; porque: passarinho que se debruça, o vôo já está pronto"; "tosse, tossura da que puxa secos peitos"; "por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, para desdoidar"; "antesmente"; "um era ruim, como o outro ruim era"; "um poucadi­nho"; "sozinhozinho"; "uma tristeza que até alegra"; "Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança; sempre um mi1agre é possível, o mundo se resolve."             .

 

E não me venham dizer que o importante em Guimarães Rosa é só forma. Conteúdo está ali, em cada frase, em cada palavra, em cada silêncio, em cada desfalar. Vou dirigindo o carro e conversando e as coisas vão brotando e desbrotando. A não entrevista é conversa de amigo, conversa de todos os dias, de telefone comprido, de comprida presença.

 

Nossa bondade é diferente - explica Rosa. - Bondade não tem nada que ver com religião. Depois: O meu amor exige distância. Eu só sou sincero quando estou sozinho. Não posso ser sincero não estando só. E adiante: Entrevista não posso. Pra quê? Você já me conhece tão bem! Você sabe o que vai dizer.

 

- Fale de seu pai.

 

Papai é um homem muito rigoroso. Quando eu era menino me levava pra caçar com ele. Quando eu avistava caça, gritava por papai. Ele vinha correndo e a caça fugia. Um dia papai desconfiou que eu gritava de propósito para que ele não pudesse matar os bichos e nunca mais me levou. Papai era comerciante, está velhinho hoje. Quando eu era garoto pensava que era rico. Lá, em Cordisburgo ... eu era. Mas quando precisei ser rico ... cadê?

 

- Você não acha que seria bom, para aproximar sua obra do grande público, para que o público venha conhecer melhor Guimarães Rosa gente, falar mais de você?

 

Não. Quero que a minha obra se imponha sozinha. O livro deve ser vendido como toucinho, manteiga. Nunca quis ajuda de pessoas amigas para os meus livros. Deve ser coisa impessoal. A prova da arte é vender-se por si. Eu não crio facilidade, crio dificuldade. Só acredito no eterno. Não quero facilidades. Por isso meu livro Sagarana começa com o conto mais difícil. Se eu pudesse só poria, nas capas, as críticas que escrevessem mal de meus livros, para dificultar ainda mais. Tenho tanta confiança de que a minha obra vai crescer com o tempo que sua divulgação não me preocupa.

 

A conversa muda de rumo:

 

Quando vim para a cidade grande, respirei ao ver que a gente não conhece o condutor nem o vizinho. A cidade grande desumaniza ... mas depois, humaniza num plano mais alto. Detesto o cotidiano. Pra mim é um suplício comer, fazer a barba, vestir. O todo-dia é um inferno. Não leio jornal na hora. Jornal é angústia concentrada. Só leio matutino à noite ... pra dar distância. Vivo para uma coisa maior, um vir-a-ser de uma natureza diferente. A arte permite isso. Permite essa transformação. Por mim os livros não deviam nem trazer nome do autor. O autor devia ser um mistério.

 

Estamos quase chegando e eu pergunto cretinamente: - Por que você só usa gravata borboleta?

 

Não é, pergunta de entrevista, é?

 

- Não. É que eu acho que a gravata borboleta define as pessoas.

 

É porque nunca aprendi a dar laço nas gravatas comuns. Acho esta

mais fácil.

 

Paro o carro, enquanto Rosa termina um pensamento de algo discutido antes:

 

Vejo o ser humano como rascunho do que vai ser.

 

Ele salta e se despede:

 

Desculpe, Bloch. Não fique decepcionado comigo, mas eu não dou entrevista. Você compreende, não é? Não posso magoar os outros.

E fecha a porta do carro, enquanto lhe grito: - E o Brasil, hem?

 

 O Brasil, como?

 

- Você não está sofrendo com as surras que estamos levando na Europa  em futebol?

 

- Eu não leio as derrotas do Brasil. ("Você sabe que eu fui center-half no time do meu colégio ?")

 

E ao se afastar: Só leio jornal quando o Brasil ganha.

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