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Grandes entrevistas

        

                         JEAN COCTEAU
Entrevista conduzida por William Fifield, publicada originalmente na Paris Review, nº 34, verão de 1964, e republicada no livro Os escritores 2: as históricas entrevistas da Paris Review. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.


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    Um colecionador tinha a casa abarrotada de coisas horrorosas. "Você gosta dessas coisas?", perguntou-lhe certa vez Cocteau. "Não. Mas meus pais perderam a oportunidade de comprar os impressionistas por um preço irrisório, porque não gostavam deles. Compro só o que não gosto". Cocteau também contou a história de um jovem holandês que foi o primeiro a comprar quadros dos impressionistas e levá-los para casa. Ficou internado num hospício por quinze anos, onde morreu. Em seu baú, foram encontradas algumas das obras primas do impressionismo, que haviam, então, alcançado um valor considerável. Os pais foram até o diretor do hospício e acusaram-no de haver mantido encarcerado um homem são.
    A vivacidade da inteligência de Cocteau levou-o a viver num mundo de imagens velozes, como um filme exibido em câmera acelerada. Acaba-se pensando na existência de um estágio diferente do tempo, diferenciando os seres humanos, que aparentemente ocupam, todos, o mesmo espaço físico, mas que, na verdade, encontram-se em velocidades diferentes. No caso de Cocteau, nunca houve a menor dúvida de que a rapidez de raciocínio contribuiu para a multiplicação, justaposição, proliferação e mistura da experiência e de sua face exterior, o comportamento - assim como para aquilo que foi freqüentemente chamado de uma certa superficialidade ou légereté.
    A primeira vez que nos encontramos foi no cenário de Orfeu, em 1959, entre rochas calcárias torneadas pelo vento em formas cocteaunianas, em Les Baux, Provença - muito significativamente, no dia em que filmava a morte do poeta, interpretado por ele próprio. Cocteau convidou o entrevistador a dar uma olhada em uma vida que une duas épocas (de Proust e Rostand a Picasso e Stravinsky). Conversou com vivacidade inigualável, entre as tomadas, e então foi novamente deitar no chão da caverna esculpida na rocha, estranhamente iluminada por holofotes, para ser o poeta trespassado - uma lança se cravava em seu peito. As mãos agarradas à lança, o rosto branco de talco, ressurgido da época de Diderot, tomado de angústia.
    A entrevista foi gravada na Villa Riviera, propriedade da Mme. Alec Weisweiller, poucos meses antes da morte de Cocteau, no outono de 1963. A entrada da vila era ladeada por fac-similes de duas imensas máscaras etruscas do cenário de Édipo rei - ópera de cenas estáticas, que escreveu para música de Stravinsky -; as máscaras eram trabalhadas em mosaico, no caminho cimentado que seguia sinuoso através de gardênias e lírios, até o portal à beira do cabo Ferrat. Podia-se ver o iate-escuna de Niarchos sobre as águas, voltado para Villefranche, onde Cocteau morou, em 1925, no hotel Welcome, com Christian Bérard, e onde escreveu Orfeu. O poeta estava como que emoldurado por uma tapeçaria de sua autoria, tão grande que cobria uma parede do terraço; a peça, que representava Judite e Holofernes, tinha um quê do exército romano adormecido na Ressurreição de Piero della Francesca. O almoço foi precedido de um coquetel, preparado pelo próprio escritor, que disse ter aprendido a receita em um romance de Peter Cheyney: "rum carta branca, curaçao e mais algumas coisinhas", Terminado o almoço, ligou-se o gravador.
                    

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Depois de escrever e reler uma coisa, vem sempre a tentação de consertar, de melhorar, de extrair o veneno, de tomar a ponta do ferrão menos aguda. Não... geralmente, o escritor, prefere, em sua obra, as semelhanças - como ela se harmoniza com o que ele lê. A sua originalidade ele próprio - não está lá, é lógico.

- Quando apontei sua semelhança com Voltaire, durante o almoço, o senhor se mostrou - vejamos, melhor seria dizer "muitíssimo insatisfeito". Mas o senhor tem a mesma rapidez de raciocínio de Voltaire.

Sou muito francês - como ele. Muito, muito francês.

- Em minha opinião, Voltaire não é tão perspicaz quanto o julgam; na verdade, isso é um desacerto provocado pelo fato de lhe imputarem uma hipersagacidade premeditada, no lugar de uma mente mais letárgica. Mas, na verdade, Voltaire escrevia muito rápido - Candide foi escrito em três dias. Um verdadeiro holocausto, faíscas por todo o lado. Se isso é ou não verdade em relação a Voltaire, com certeza é verdade em relação ao senhor.

Tiens! Eu sou o antípoda de Voltaire! Ele é todo razão intelecto. Eu não sou nada - "outro" se manifesta em mim. Essa força toma a forma de inteligência, e essa é a minha tragédia - que tem sido a mesma desde o início.

- É ir um pouco longe demais pensar que o senhor é vitimado pela inteligência, principalmente porque há meio século é tido como uma das mentes mais perspicazes da crítica e da crítica poética da França; mas isso não se relaciona com aquilo que me disse a respeito de si mesmo e de Proust que vocês dois começaram errado?

Nós dois viemos do dandismo no fim do século XIX. Virei a casaca, definitivamente, por volta de 1912 - mas, no sentido literal da expressão, para o lado certo. Mesmo assim, tenho algum receio de que essa mancha tenha persistido até hoje. Suprimi todos os meus primeiros livros de poemas escritos antes de 1913 - e eles não aparecem em minhas obras reunidas. Se bem que imagino que, apesar de tudo, alguma coisa daquela época sempre... Marcel combatia esse tipo de coisa à sua maneira. Circulava entre as suas vítimas tirando seu "mel negro", seu miel noir - ele me pediu uma vez: "Estou implorando, Jean, já que você mora na rue d'Anjou, no mesmo prédio de Madame de Chevigné, em quem me inspirei para criar a duquesa de Guermantes; por favor, faça com que ela leia meu livro. Ela não vai me ler; diz que tropeça em minhas sentenças. .. Por favor; Jean... ". Disse-lhe que era o mesmo que pedir a uma formiga para ler Fabre. Não se pede a um inseto para ler entomologia.

- Em termos puramente estatísticos, o senhor nasceu em 1889. Como, então, pôde ter vivido essa fase de filho protegido, acolhido por toda Paris, de forma tão similar a Voltaire? Tinha raízes artísticas - em sua família, por exemplo?

Não. Morávamos nas Maisons-Laffitte, a poucos quilômetros de Paris; jogávamos tênis nessa casa e coisa e tal, e, por ocasião do caso Dreyfus, nos vimos divididos. Meu pai pintava um pouco, era amador - meu avô colecionou violinos Stradivarius e alguns quadros excelentes.

- Na sua opinião, a perda do pai muito cedo, em seu primeiro ano de vida, tem alguma relação com o seu talento? Existe uma teoria que diz que a genialidade está ligada à condição de filho único, e o senhor foi educado por mulheres, por sua mãe. Por sinal, uma mulher extremamente bonita, á dizer pelos retratos.

Quanto a isso, só posso dizer que nunca senti qualquer tipo de ligação com minha família. Só posso dizer que existe alguma coisa em mim que não está em minha família. Que não era visível em meu pai nem em minha mãe. E não sei a origem.

- O que aconteceu naqueles dias que se seguiram à sua estréia?

Eu tinha conhecido Édouard de Max, o ator e agente teatral, e Sarah Bernhardt, e outros então chamados de "monstros sagrados" de Paris, e, em 1908, de Max e Sarah Bernhardt alugaram o Théâtre Fémina em Champs Élysées, para uma noite de leitura de meus poemas.

- E qual a sua idade na época?

Dezessete anos. Foi em 4 de abril de 1908. Fiz dezoito três meses depois. Então, conheci Proust, a condessa de Noailles, os Rostand. Um ano depois, junto com Maurice Rostand, passei a ser diretor da sofisticada revista Schéhérazade.

- Sarah Bernhardt, Edmond - o Rostand que escreveu Cyrano. É como se estivéssemos falando de um outro século. E então?

Eu estava descendo uma ladeira que me levava direto à Académie Française (onde, por acaso, acabei chegando, afinal, mas por razões inversas); e aí, mais ou menos nessa época, conheci Gide. Eu me contentava em rabiscar arabescos; encarava minha juventude como audácia, e confundia espirituosidade com profundidade. Mas alguma coisa em Gide - na época, de uma maneira não muito clara - fez com que me envergonhasse disso.

- Lembro-me de uma passagem especialmente brilhante que escreveu em seu primeiro romance, Potomak, iniciado em 1914 - se bem que, se não me engano, só veio a ser terminado e publicado depois da guerra e que deve, então, ter sido ironicamente autobiográfica.

É, Potomak foi publicado em 1919 e 1924.

- O trecho dizia mais ou menos isso: um camaleão tem um dono que o coloca sobre um tecido xadrez escocês. Primeiro ele fica frenético, depois morre de cansaço.

C'etait malheureusement comme ça! É, eu achava a literatura uma coisa alegre e divertida. Mas o Balé Russo tinha vindo para Paris; fora obrigado a deixar a Rússia, acho. E existem sempre essas conjunturas estranhas. Penso muitas vezes se tanta coisa teria acontecido caso Diaghilev não tivesse vindo para Paris. Ele costumava dizer, "Não gosto de Paris. Mas se não fosse Paris, acho que eu nunca teria sido levado ao palco". Tudo começou, definitivamente, veja bem, com Sacre de Stravinsky. Le sacre du printemps mudou tudo. De repente, vimos que a arte era um sacerdoce terrível - que as Musas podiam assumir aspectos pavorosos, como se fossem diabas. Era preciso abraçar a arte como abraçamos as ordens monásticas; pouco importava se você gostava disso ou não, não era esse o caso. Bem, Nijinsky. Sabe, ele era um simplório; não tinha inteligência nenhuma, era até meio estúpido. Seu corpo é que sabia tudo; seus braços e pernas concentravam toda a inteligência. Ele foi contagiado, também, por alguma coisa que estava acontecendo então - quando foi isso? Deve ter sido em maio ou abril de 1913. Nijinsky era mais alto que a média das. pessoas, com cara de macaco mongol e dedos grossos, que pareciam ter sido cortados; era uma coisa inacreditável que fosse o ídolo do público. Na época em que inventou seu famoso salto - em Le spectre de la rose -, quando saía de cena, Dimitri, seu camareiro, costumava encher a boca de água e espirrava-a em seu rosto, e logo o embrulhavam em toalhas quentes. Coitado, não conseguiu entender quando o público vaiou a coreografia de Sacre du printemps, ele que tinha sido - coitado - tão aplaudido por Le spectre de la rose. Mas, mesmo assim, ele - modelo de uma completa deformação profissional que era - foi pego no meio daquela coisa estranha que estava acontecendo. Pôs o pé lá; simplesmente porque, antes, era sempre colocado em um lugar qualquer. Lembro-me da noite depois da premiere de Sacre - Diaghilev, Nijinsky, Stravinsky e eu fomos dar um passeio de fiacre no Bois de Boulogne e foi aí que nasceu a primeira idéia de Parade.

- Mas ficou só na idéia, na época.

Um ou dois anos mais tarde, ouvindo a música de Satie, ganhou uma forma mais definida em minha mente. Aí, em 1917, ao som da música de Satie, Léonide Massine, que fez a coreografia, eu, que o escrevi, Diaghilev e Picasso - em Roma - elaboramos o projeto.

- Picasso?

Eu tinha convencido Picasso a experimentar a criação de cenários; e ele fez os cenários: as fachadas das casas parisienses, num domingo. Foi levado ao palco pelo Balé Russo, em Paris; fomos vaiados e enxotados aos gritos. Felizmente, Apollinaire, que estava de volta do front e usava uniforme - era 1917 - nos salvou, a Picasso e a mim, da multidão; do contrário, acho que poderíamos ter apanhado feio. Era novo, sabe - não era o esperado.

- Não está, na verdade, pressupondo uma espécie de paixão pelo anticonformismo na efervescência daqueles dias?

É, isso mesmo. Foi Satie quem disse, tempos depois, que não é grande coisa recusar a Legião de Honra - a grande coisa é não tê-la merecido. Tudo estava virando pelo avesso. A antiga ordem tradicional das coisas estava se invertendo. Satie dizia que Ravel pode ter recusado a Legião de Honra, mas que toda a sua obra a aceitou! Se você recebe honras acadêmicas, deve fazer isso com a cabeça baixa - como se fosse um castigo. Você se expôs; você cometeu uma falta.

- Acha que essa liberdade pode ir longe demais?

Existe uma total ruptura entre o artista e o público desde 1914, mais ou menos. Mas isso, necessariamente, vai causar o oposto, e teremos um novo conformismo. O grande pintor será, então, um figurativo - mas com algo de misterioso. Sem dúvida, Marcel - Proust - foi mais forte porque escondeu seus crimes (e ele viveu esses crimes) por trás de um classicismo aparente, sem dizer: "Sou um homem perverso, de maus hábitos, e vou lhes contar abertamente todos eles".

- Isso me faz pensar em Hemingway. Toda a sua escola ...

Ele me disse uma coisa muito interessante. Disse: "A França é impossível. As pessoas são impossíveis. Mas vocês têm sorte. Nos Estados Unidos o escritor é visto como uma foca amestrada, um palhaço. Mas aqui respeitam tanto os artistas que quando você disse: 'Cuidado; Genet é um gênio', quando você disse que Genet era um grande escritor, ele não foi condenado; os juízes ficaram com medo e o deixaram livre". E isso é verdade, o que Hemingway disse. Os franceses são desatentos, o pior público do mundo - no entanto, o artista ainda é respeitado. Nos Estados Unidos, acho que as platéias nos teatros são muito respeitosas, muito sérias.

- Quem apontaria como fundamental para toda essa conversão?

Ah... Satie, Stravinsky, Picasso.

- Se tivesse que apontar o principal arquiteto dessa revolta?

Na minha opinião, Stravinsky. Mas, veja bem, conheci Picasso só em 1916. E naturalmente ele já havia pintado Demoiselles d'Avignon há quase uma década. E Satie era um grande inovador. Vou lhe contar uma coisa sobre ele que talvez pareça ser apenas engraçada. Mas que é muito significativa. Ele morreu, e todos nós fomos ao seu apartamento; e debaixo do mata-borrão, na escrivaninha, encontramos todas as cartas que havíamos escrito para ele - fechadas.

- Agora há pouco, o senhor falou desse "outro". Acho que seria interessante tentar explicar melhor o que quis dizer com isso. Picasso falou sobre o "outro", também - disse que é o verdadeiro agente de sua própria criação - e o senhor falou a mesma coisa em nossas conversas anteriores. Como definiria esse "outro"?

Eu me sinto habitado por uma força ou ser - do qual conheço muito pouco. Ele dá as ordens; eu obedeço. A concepção do meu romance Les enfants terribles me ocorreu através de um amigo, do que ele me contou sobre um grupo de pessoas: uma família isolada da vida em sociedade. Comecei a escrever: exatamente dezessete páginas por dia. Fluía bem. Eu estava gostando. De verdade. Havia, na história real, alguma ligação com os Estados Unidos, e tinha algo que eu queria dizer sobre os Estados Unidos. Pufl O ser em mim não queria escrever sobre isso! Bloqueio total. Um mês inteiro só olhando o papel feito bobo, incapaz de escrever o que quer que fosse. Então, um dia, ele começou de novo, à sua própria maneira.

- Quer dizer, então, que o inconsciente cria?

Disse há algum tempo atrás que a arte é o casamento do consciente com o inconsciente. Depois, comecei a pensar: será que a genialidade é uma forma da memória ainda não descoberta?

- Bem, em relação a isso, o senhor escreveu uma vez, há muito tempo, que a idéia nasce da frase, como o sonho nasce da posição do sonhador. E Picasso diz que a criação tem que ser um acaso, uma falta ou um passo em falso, pois, do contrário, tem que se originar da experiência consciente, do que se observa a partir daquilo que é preexistente. E o senhor declarou: o poeta não inventa, ele escuta.

É, mas pode ser muito mais complexo do que isso. Veja Satie, por exemplo, que se recusava a receber mensagens externas. E a que nós escutamos?

- Só por perguntar, como lida com coisas como nomes de personagens?

Dargelos, naturalmente, era uma pessoa real. Ele é aquele que atira a bola de neve fatal em O sangue do poeta; depois, de novo, a bola de neve em meu romance Les enfants terribles, que Rosamond Lehmann traduziu para o inglês (com uma dificuldade obsessiva, conforme me escreveu numa carta); e dessa vez, também; o glóbulo negro de veneno... levou Paul a cometer o suicídio; senti que tinha de usar o nome de uma pessoa real, com quem eu tivesse estado na escola. O nome é mítico, mas, de qualquer forma, tinha que ser o mesmo do garoto. Há coisas estranhas que fazem parte dessas origens. Radiguet me disse: "Em três dias, vou ser morto pelos soldados de Deus". E três dias depois morreu. Tinha isso, também. O nome do anjo Heurtebise do livro de poemas L'Ange Heurtebise, que foi escrito num automatismo ininterrupto, do início ao fim, foi tirado de um nome que vi numa parada ocasional de elevador. E já dei a personagens nomes iguais aos. que vi nos rótulos daqueles frascos de vidro enormes e antigos em uma farmácia na Normandia.

- E sobre o mecanismo da tradução? Creio que uma vez escreveu em alemão...

Tive uma governanta alemã. Fora algumas dezenas de palavras em seu idioma, alemão é a única língua que sei, além do francês. Mas meu vocabulário era muito limitado. Dessa desvantagem é que eu acabei tirando proveito - pensei que poderia usá-la como vantagem e escrevi alguns poemas em alemão. Mas isso já é outro assunto e toca toda aquela questão da necessidade de obstáculo.

- Bem, e qual é essa questão da necessidade de obstáculo?

Sem resistência não se pode fazer nada.

- O senhor estava contando uma história a respeito dos impressionistas e de um holandês que os comprou - que, na minha opinião, expressa uma de suas principais convicções: a da mutabilidade do gosto, ou, na verdade, da inexistência do bom/ruim, em qualquer sentido objetivo verdadeiro. E, naquela hora, acho que sugeriu que a poesia é intraduzível. Rilke ...

É, Rilke estava traduzindo Orphée quando morreu. Ele me disse numa carta que todos os poetas falam uma língua comum, mas com estilos diferentes. Sou sempre maltraduzido.

- O que eu li de sua poesia em inglês não lhe faz, realmente, a mínima justiça.

Escrevo com uma simplicidade aparente - que, na verdade, é o resultado de cálculos matemáticos violentos -, a linguagem e não o conteúdo. Que é, por assim dizer, o trabalho depois-do-fato, porque, lamentavelmente, nossos veículos de comunicação na escrita são as convenções. Se Picasso desloca um olho para fazer com que um quadro ganhe vida, ou cria uma colisão, que dá a impressão de multivisão, isso é uma coisa; se desloco uma palavra para recuperar algo de sua força, isso é uma outra coisa muito, muito mais difícil. Os tradutores, confundindo minha simplicidade com insubstancialidade, acabam me traduzindo de forma superficial, já me disseram. Rosamond Lehmann diz que sou maltraduzido em inglês. Tiens, na Alemanha pensaram em traduzir meu La difficulté d'être como "a dificuldade de Leben" nunca! é "a dificuldade zu sein". A dificuldade de viver é outra coisa; impostos, complicações e coisas do gênero. Mas a dificuldade de ser - ah!' de estar aqui; de existir.

- Bem, é claro, se é que cabe falar nisso agora, parece que o senhor está escrevendo numa linguagem consideravelmente contraída, a partir de um mundo em que existe uma gama bastante substancial de jogos de luz e sombra. Tem que expressar uma quantidade enorme de coisas em um espaço reduzido, se pretende transmitir a simultaneidade. O senhor escreveu em algum lugar que não se deve olhar para trás (para a sua própria produção) pois, do contrário, "será que você não se transformaria em uma estátua de açúcar caso olhasse para trás?". É fácil pegar a superfície dessa brincadeira, assim, por alto. Mas me parece que o senhor evoca lapidação, brilho, cristalização, talvez até mesmo o cubo, já que esteve intimamente ligado às origens do cubismo não quero ir longe demais. Sei, pelo que me disse, que o senhor não "arquiteta essas coisas" - elas vêm à sua mente. E o que faz, então? As desarruma? Torna-as menos "arrumadas" e as dilui? Mas isso seria falso. ~ possível se pensar que exista aqui um meio para se chegar a verdades mais misteriosas, verdades que nascem da justaposição, por parte de uma mente delicada e, de uma maneira bem característica, bastante modesta.

Contos, é claro, são bem traduzíveis. Shakespeare é traduzível em parte por causa de seu grande relevo - o imenso relevo do conto que se origina normalmente de crônicas, que pode ser lido como se lê Braille.

- Mas, com toda certeza, o mundo não lê Shakespeare só como se fosse uma espécie de aproximação dos contos de Lamb (1).

Não. É verdade. Existe algo mais. Madame Colette me disse uma vez que não precisamos ler os grandes poetas porque deles emana uma atmosfera. É mesmo muito estranho, também, que nós poetas possamos ler uns aos outros, como diz Rilke. Com um amigo para ajudar com as palavras, consigo ler Shakespeare em inglês, mas não um jornal.

- A sua própria definição de poesia parece ser relevante aqui. O senhor disse uma vez que quando adora uma peça teatral, os outros dizem que não é teatro, mas outra coisa; se adora um filme, os amigos dizem que não é filme, que é outra coisa; e se admira algum esporte, dizem que não é esporte, é outra coisa. E finalmente chegou à conclusão de que a "outra coisa" é a poesia.

Veja bem, a gente não conhece aquilo que faz. É impossível fazer o que se pretende. O mecanismo é sutil demais para isso, secreto demais. Apollinaire decidiu que iria copiar Anatole France, seu modelo, e falhou magnificamente. Criou uma nova poesia, pequena, mas válida. Alguns fazem uma coisa bastante diminuta, como Apollinaire, e recebem grande reconhecimento, como ele afinal recebeu; outros fazem uma coisa enorme, como Max Jacob, que foi o verdadeiro poeta do cubismo, e não Apollinaire, e o resultado - o que se ganha e a reputação - é ínfimo. Baudelaire escreve um verso altamente elaborado e então - tout à coup! - poesia.

- Não acontece o mesmo com Shelley?

Shelley. Keats. Uma única frase, e o poema todo é levado aos céus! Ou Rimbaud, que começa a escrever poesia desde o início e então simplesmente desiste, porque é evidente demais que o público não se importa.

- Isso é mesmo verdade?

O seu métier e o meu são horríveis, meu amigo. O público nunca está satisfeito com o que fazemos, sempre querendo uma cópia do que fizemos. Por que escrevemos - e, sobretudo, publicamos? Fiz essa pergunta a meu amigo Genet. E sua resposta foi: "Fazemos isso porque uma força desconhecida do público e também de nós mesmos, nos leva a tanto". E é verdade. Quando você fala dessas coisas a alguém que trabalha sistematicamente alguém como Mauriac - pensam que você está brincando. Ou que você é preguiçoso e usa isso como desculpa. Já para a escrivaninha e trate de escrever! Você é um escritor, não é? Voilà! Já tentei isso. E o resultado não é nada bom. Nunca sai nada de bom. Claudel na escrivaninha, das nove às doze. É inconcebível trabalhar desse jeito!

- Por que, então, se preocupar?

Quando tudo vai bem, a euforia desses momentos é, de longe, a mais intensa e gratificante que já experimentei em toda a minha vida.

- O que, afinal, ocorreu entre o senhor e Gide? Li uma vez um crítico francês que dizia que a obra de Gide tendia sempre a se manter presa à superfície, mas que a sua mergulhava nas profundezas com - às vezes uma considerável quebra das ondas e também sondagem.

Começamos nossa disputa na imprensa por volta de 1919. Gide sempre quis ser visível; para mim, o poeta é invisível. Aquele que anda nu impunemente. Gide foi o arquiteto de seu labirinto, através do qual negou a condição de poeta.

- O senhor tem em mente algum tipo de leitor ou espectador potencial abstrato, quando está criando?

A gente fica sempre concentrado no aspecto interior da coisa. No momento em que se torna consciente da multidão, produz para a multidão, passa a ser espetáculo. Fica fichu.

- Poderia falar alguma coisa sobre a inspiração?

Não é inspiração; é expiração. (As mãos finas e pálidas sobre o peito; solta o ar; um profundo suspiro saindo bem de dentro.)

- Usa algum tipo de auxílio artificial - estimulantes ou drogas? Recorreu ao ópio após a morte de Radiguet, escreveu um livro a respeito - Opium - e, se não me engano, foi durante um período de desintoxicação que escreveu Les entants terribles.

É muito útil ter algum sedativo acho. Cansaço extremo serve. Na filmagem de A bela e a fera (Labelle et la bête) no Loire, em 1945, logo depois do fim da guerra, eu estava muito doente. Deu tudo errado. Falta de luz quase todo dia; aviões passando bem no meio de uma cena. Os cavalos de Jean Marais criaram problemas, e ele insistia em saltar sobre eles, da janela do segundo andar, recusando o dublê e pondo em risco a própria pele. E luz do sol muda, no Loire, a cada momento. Todas essas coisas contribuíram para a qualidade do filme. E em O sangue do poeta, a mulher de Man Ray fez um papel; ela nunca tinha feito isso antes. A tensão e o medo acabaram por paralisá-la, e ela passou pelas câmeras tão atordoada que não se lembrava de nada depois. Nos testes, tínhamos visto que era esplêndida; esquecendo o que havia ao redor, ela podia ser atriz.

- Enfrentamos grandes dificuldades de comunicação por escrito, comunicação impressa. Nem todos os nossos leitores são John Gielgud ou Louis Jouvet e, infelizmente, ao lerem um romance, são obrigados a interpretar os papéis. Como tornar claras as nuances? Pergunto isso porque sei que o senhor procurou soluções para esse dilema. Espero que não se importe se eu reproduzir oito versos de seu Le cap de Bonne Espérance.

Tudo bem.

- Não vou precisar traduzir. Não é isso o que vai interessar.

                  Mon oeuvre encoche et là
                  et là
                  et là [Descoberta repentina.]
                   et
                   là [Descendente, com uma nota quase de sofrimento.]
                   dort
                   la profonde poésie.

Por mais que se tentasse, tenho certeza de que poucos leitores recuperariam o sentido desse fraseado, caso as palavras fossem impressas em linha reta.

É, dificilmente.

- Rossellini, em Roma, me disse que, se fosse pôr em um roteiro tudo que sua imaginação confere à cena, teria que escrever um romance; mas na ficção temos que fazer isso, caso contrário perde-se tudo.

E o público é preguiçoso! Você pede a eles que penetrem em modos de pensar distintos dos deles, mas se recusam. E aí... o que você escreveu com a sua letra muda ao ser datilografado, e novamente na hora da impressão. A pintura é mais gratificante porque é mais direta; você trabalha diretamente na superfície.

- Estamos lidando com elementos imponderáveis aqui.

Mas é claro. Os cubistas tiveram que abandonar completamente a questão do assunto, que é palpável, para expressar a poesia - ou a arte que é palpável também. E esse era o significado do cubismo, e não o fato casual de Matisse perceber que as formas eram cúbicas.

- O senhor é o maior comentador de Pablo Picasso, creio que, muito provavelmente, incluindo o próprio Picasso. Seu testemunho tem um valor inestimável, pois esteve com ele, lado a lado, durante toda a revolução artística, de 1916 em diante, e, também, porque disse que o princípio da revolução e renovação permanentes na arte, defendido por Picasso, é a única influência marcante existente em seu próprio universo criativo.

Ele não tem uma teoria. Não pode ter, já que a criação termina em seus pulsos. Aqui. (Cocteau toca os dois pulsos magros e delicados, bem diferentes dos pulsos fortes de Picasso.) Sua mente não entra; há um isolamento, uma defesa, que ele formalizou durante anos. ~ a mão - la main de gloire -, dá para se pensar na mão da múmia sagrada, capaz de abrir todas as portas, mas separada do pulso. Um problema essencial é que não dá para saber, questões de formulação e arte são complicadas demais para que seja possível se prever alguma coisa e, simplesmente, não se sabe. Talvez seja por isso que Picasso diz a respeito da pintura, que ela é a arte do cego. Ele nunca reflete; nunca hesita; não faz nenhum esforço para concentrar sua expressão em um dado trabalho... para produzir uma chef-d'oeuvre. Com ele, nada é supérfluo e nada é de importância capital.

- Essa não seria uma outra maneira de se dizer que tudo é de importância capital para a oeuvre total - mas disperso e difuso, e não compactado -, como em um Da Vinci?

Picasso fez isso uma ou duas vezes. Formulou Guernica. E Demoiselles d'Avignon - que deve ser reconhecido como o início da arte picassiana, já que antes dele não existe "Picasso", embora existam Picassos. Primeiro ele descobre, e depois pesquisa. E não, como às vezes se diz, trazendo à tona o que lhe é dado pela intuição - é muito mais se acomodando às descobertas de sua mão. B importante ver que isso o coloca numa fuga constante de si mesmo; de sua "experiência". Como Orfeu, Picasso toca a flauta, e os objetos seguem em fila atrás dele, os mais diversos, e se submetem à sua vontade. Mas o que é essa vontade ... ?

- Lembra-se do que escreveu sobre ele em 1923?

Se você me ajudar...

- Escreveu: "Ele se contenta em pintar, adquirindo um incomparável métier e colocando-o a serviço do acaso. Muitas vezes vi Picasso tentar abandonar sua musa - isto é, tentar pintar como todo mundo. Ele volta para ela imediatamente, os olhos vendados... "

Isso mesmo. Um dia, em 1917 - ano em que o convenci a tentar a criação de cenários, os cenários de Parade -, a companhia estava no palco, ensaiando, quando percebemos um vide - um vazio - no cenário. Picasso pegou uma lata de tinta e, com algumas pinceladas, no mesmo instante, fez com que retas explodissem em colunas gregas - de maneira tão espontânea, tão 'repentina e surpreendente que todo mundo aplaudiu. Perguntei depois: "Você sabia de antemão o que ia fazer?" E ele disse, "Sim e não. O inconsciente deve funcionar sem o nosso conhecimento". Vê, a arte é o casamento do consciente com o inconsciente. O artista não deve interferir. Picasso, também, não quer que interfiram com ele. Uma vez, quando estávamos jantando, o primeiro satélite passou sobre nós. "Ça m'emmerde", disse ele - "Isso me enche o saco. O que é que tem a ver comigo?" Ele é inteiramente voltado para seu trabalho - mais do que qualquer outro homem que eu conheça -, não é humano! Ele não precisa de nada que esteja fora de seu próprio universo fechado. Afasta os amigos, mas convive com entidades imaginárias - por quê? Porque, diz ele, não quer alimentar ressentimentos em relação às poucas pessoas que ama: que, por si, podem desorientá-lo. Ele não quer se ressentir da intromissão delas na gestação permanente em que vive. Mesmo assim, como é estranho ver que essa arte, tão inteiramente "fechada", quer dizer, pessoal e isolada, tem um sucesso popular tão grande. Contraria por completo toda aquela história do contato do artista com o público.

- É possível penetrar nesse universo e saber do próprio Picasso qual a opinião (sem dúvida parcial e suspeita) que tem de si mesmo?

Ele não lhe diria nada! Ele nunca discute o racional. E como poderia, já que é um processo das mãos - manual, plástico. Responderia com boutades, brincadeiras e absurdos: vive por trás desses tipos de resposta, na proteção que elas lhe dão, como se fossem os espinhos de um ouriço. Seu trabalho extraordinário - trabalha mais do que qualquer outro ser humano é a fuga do vazio dá vida e de qualquer tipo de formalismo no que quer que seja. O expressionismo foi dando muitos nós na corda - até que parecia só haver sobrado o vácuo. Mas se a revolução de Montparnasse. chegou ao fim, Picasso parece capaz de seguir adiante. Pode acreditar - ele não sabe o que fazer, mas sabe, sem erro, o que não fazer. Sua mão sabe onde não ir, sabe evitar a menor pincelada da banalidade, o mais insignificante toque acadêmico - uma renovação constante -; mas onde ela vai, onde o traço realmente vai, é simplesmente no único espaço possível.

- Por que ele enaltece o feio? O efeito da Guerra Civil espanhola em sua psique?

Sabe que ele fez os primeiros esboços em direção a Guernica antes da Guerra Civil? A verdadeira inspiração de Guernica foi Goya.

- Mesmo assim, Picasso estava voltado para a obra final de Goya por ocasião da Guerra Civil? É como se Picasso fosse transportado "corporeamente" mais do que alterado por uma influência, mesmo que se mantenha em uma estrutura de referência artística.

A arte, para ele, é unicamente uma extensão do processo da vida. Buffet o criticou em público e, quando lhe pediram para revidar, fazendo um julgamento da arte de Buffet, ele disse, "Não olho para a arte que ele faz. Não gosto do modo como vive". Quando se mostrava impiedoso e inacessível em alguma situação que exigia humanidade, eu o confrontava com isso. "Sou como a minha pintura", ele dizia. Tiens, mon ami, é preciso muita coragem para ser original! A primeira vez que uma coisa aparece, desconcerta todo mundo, o artista também. Mas você tem que deixar como está - sem retocar nada. Então, é lógico que se canonize o "mau". Porque o "bom" é o familiar. O novo só chega como uma fatalidade. Como diz Picasso, é uma falta. E é santificando nossas faltas que criamos. "Isso é bastante fácil quando se tem uma certa competência em se estar certo, em se ter razão", ele diz.

- Picasso conscientemente tenta desagradar - reserva-se o direito de desagradar, como seu amigo torero Luis Miguel Dominguín? O senhor me contou como estavam bonitos os croquis da capela de La guerre et la paix, e como, progressivamente, ele os deformou, até que tivéssemos a obra final que é bem assustadora - e que o senhor me disse que deixou Matisse com tanto medo de ser surpreendido produzindo uma beleza convencional que ele também deformou a sua capela em Vence.

Picasso não pensa nem em agradar, nem em desagradar. Simplesmente não pensa nisso.

- Qual sua opinião a respeito dos novos romancistas franceses que estão começando a abandonar o entrecho - Robbe-Grillet? Nathalie Sarraute?

Sou obrigado a fazer uma confissão bem desagradável. Não leio nada que esteja na mesma linha do meu trabalho. Acho muito desconcertante; acabo desorientando o "outro". Não ponho os olhos num jornal há vinte anos; se trazem um para dentro do quarto, saio correndo. Não porque eu seja indiferente, mas porque não se pode seguir todos os caminhos. E, no entanto, uma coisa como a tragédia da Argélia certamente entra no trabalho das pessoas, sem dúvida tem seu papel no estado de cansaço e frustração em que você me encontra. Não que eu não queira "perder a Argélia!", mas a matança inútil, matar pelo prazer de matar. Com medo da polícia, os homens se atêm a uma certa conduta; mas quando passam a ser a polícia, são terríveis. Não, a gente sente vergonha de fazer parte da raça humana. Voltando aos romances: leio romances policiais, de espionagem, ficção científica.

- Recomenda, então, que os escritores não leiam absolutamente nada sério?

(dá de ombros): Eu não leio.

- Voltando um pouco ao que falou sobre a Argélia - a título de esclarecimento. O que entendi é que, na sua opinião, o escritor não pode fugir do mundo em que vive, mas não deve deixar que sua memória detalhista receba uma interferência excessiva - é isso?


E neste ponto da entrevista, Cocteau tomou uma atitude excêntrica. Ficou em pé e, demonstrando um certo cansaço - era bastante esguio e um tanto pequeno: suas fotografias mentem, não o mostram como realmente é; Picasso, por exemplo, é muito bem representado em suas fotos e qualquer um que as vir, saberá como ele é - com passos vagarosos foi até uma mesinha de canto. Pegou um tubo prateado de papel ou folha metálica, que dava o efeito de um espelho cilíndrico pelo lado de fora. Colocou esse tubo com todo o cuidado exatamente no centro de uma fotografia indecifrável que se achava sobre a mesinha e que depois eu viria a saber que era a Crucifixion de Rubens tirada com uma câmera que distorcia a imagem. Massas de nevoeiro nublavam a foto; fantasmas sem sentido. Na superfície do tubo, que correspondia de maneira misteriosa à própria câmera, a criadora, a fotografia surgia perfeita - espirais transformavam-se em homens. No entanto, a fotografia real permanecia absurda. Ele não disse nada. Depois, ao sentar-se, exausto, comentou: "Tenho pena dos jovens. Não é mais como na Paris de 1916. Paris se transformou numa garagem cheia de carros. Neon, jazz - condicionam todas as coisas. E não é mesmo como era, um jovem sentado, escrevendo à luz de vela. Em Montparnasse, nunca pensávamos em "público". Ficava tudo entre nós. Um grande cientista esteve aqui outro dia; ele disse: "Não existe quase mais nada para ser descoberto". E não sabemos nada sobre a mente! Nada! levtuchenko esteve comigo. Não tínhamos absolutamente nada para dizer um ao outro. E sabe por quê? Havia vinte ou trinta fotógrafos e jornalistas lá, prontos para fotogra• far e deturpar tudo. E os jovens estão vivendo em um limbo que não tem futuro. Os acidentes automobilísticos - para expressar a noção que têm da brevidade dos direitos de posse. O mundo está muito cansado; voltamos ao charleston, às roupas dos anos 20. E à espeleologia - que é uma verdadeira mania aqui - escavando até a mais primitiva das cavernas".

- Escreveu um de seus romances em três semanas; uma de suas peças numa única noite. O que isso nos revela do ato da composição?

Se a força funciona, tudo corre bem. Se não, você está perdido .

- Não existe um jeito de acionar essa força, girar a manivela?

Na pintura, exIste. Concentrando-se em todos os detalhes mecâ- nicos, tem-se um início. Já com a escrita, "recebe-se uma ordem...”

- Françoise Sagan - e outros - descrevem como a escrita começa a fluir com o uso da caneta. Pensei que essa fosse uma experiência bastante comum aos escritores, de uma maneira geral.

Se as idéias vêm, tem-se que correr para anotá-las, por medo de esquecê-las. Elas vêm uma vez; só uma vez. Por outro lado, se me vejo obrigado a fazer uma coisa simples - como escrever um prefácio ou um pequeno artigo para algum jornal -, o trabalho que se tem para dar uma aparência de naturalidade a essas poucas linhas é um verdadeiro martírio. Não tenho facilidade para isso, nenhuma. É... num ponto, o que você diz é verdade. Escrevi um romance, depois fiquei em silêncio. E os editores da Stock, vendo isso, disseram: "Você tem um medo incrível de não escrever uma obra prima. Escreva alguma coisa, qualquer coisa. Simplesmente comece". Então comecei - e escrevi as primeiras linhas de Les enfants terribles. Mas isso só funciona para começos - na ficção. Nunca consegui escrever sem estar profundamente movido por alguma coisa. A única exceção é a minha peça La machine à écrire. Eu havia escrito a peça Les parents terribles e ficou muito boa, e pedia algo que desse continuidade. La machine à écrire existe em várias versões, o que é bastante significativo, e deu um trabalho enorme. Não ficou nada bom. É claro, é uma das minhas obras mais conhecidas. Se você faz cinqüenta desenhos e um ou dois lhe agradam menos, é quase certo que esses vão ser os mais apreciados. Sem dúvida porque se assemelham a alguma coisa. As pessoas adoram reconhecer, e não se aventurar. Reconhecer é tão mais confortável e autolisonjeiro. Tenho a impressão de que quase toda a obra pode ser lida como uma autobiografia espiritual indireta.

- O ferimento na mão do poeta em seu filme O sangue do poeta - o ferimento na mão do homem, através do qual a poesia fala -, será que não reproduz o "ferimento" da sua experiência poética por volta de 1912-1914? "O cavalo de Orfeu" - sem o qual ele continua sendo terrestre - é certamente aquele "outro" poético e invisível de que o senhor fala.

En effet! A obra de todo criador é sua autobiografia, mesmo que ele não saiba ou não queira, mesmo que a sua oba seja "abstrata". É por isso que não se pode refazer uma obra.

- Não se pode reescrever? Isso está totalmente fora de questão?

Pode-se, mas muito superficialmente. Só a sintaxe e a ortografia. E mesmo assim... Meu longo poema - Réquiem - acabou de sair pela Gallimard. Deixo repetições, maladresses, palavras malcolocadas quase intocadas, e não existe qualquer pontuação. Seria artificial impor pontuação a um rio negro de tinta. Cento e setenta páginas - é - e nenhuma pontuação. Nada. Eu estava nos acertos finais para levar uma de minhas peças ao palco, em Nice; disse à atriz principal: "Quando a cortina começar a descer, caia como se tivesse perdido todo o sangue". Na noite seguinte, depois da premiére, desabei. E descobriu-se depois que eu, sem saber, estava tendo uma hemorragia interna já há alguns dias e que já não tinha quase sangue nenhum! Viva! - meu eu consciente na maré mais vazante que se possa imaginar, o ser em mim exulta. Começo a escrever - com dificuldade, apoiando o papel sobre a minha testa, na cama, com caneta bic, como uma mosca andando pelo teto. Levei três anos para decifrar o texto; e, por fim, não mudei nada. Tem-se que atirar no alvo, enfim, como Stendhal. Que importa a forma como é dito? Disse antes que não gosto de Pascal porque não gosto de seu ceticismo, mas gosto de seu estilo! Ele repete a mesma palavra cinco vezes numa mesma oração. E o que me diz Salammbô? Nada. Flaubert é simplesmente um mau escritor. Montaigne é o melhor escritor da língua francesa. Simplesmente pela linguagem, quase argot. Quase gíria. Direto. Quase sempre é assim.

(Exatamente neste ponto da gravação, e, pelo que me lembro, só aqui, a voz de Cocteau perde o timbre vibrante - "se esvai". Sua voz, excepcionalmente jovem, torna-se, aqui, apagada. Fica claro que ele reconhece as imputações que a decisão de nada corrigir acarreta para a arte da escrita; lembro que se La machine à écrire foi um desastre evidentemente por ser um esforço intencional, ° excelente Parents terribles, então, foi dicté durante um estado de semi-sonambulismo; neste ponto, vem a tentação de voltar a fita muitas vezes e refletir. Esse dicté junto com "não retocar nada, nem mesmo a ortografia" assusta; Picasso visto em primeira mão também atiça esse medo; pois é certo que é seu traço que escreve, em todas suas últimas obras, o traço vivo, que ele simplesmente observa; um dilema para a geração de Montparnasse; dá para sentir que Cocteau olhou para dentro desse abismo muitas vezes, e que é aí que está a sua coragem.)

- Por refazer, há pouco, creio que o senhor não quis dizer exatamente "reescrever".

(resignadamente): Só se quer o que se já fez. Um outro O sangue do poeta... um outro Orfeu... Nem mesmo é possível. Outro dia Picasso comentou que essa saliência na linha do meu nariz é igual à do meu avô, mas que eu não tinha isso aos quarenta anos. Meu nariz era reto. As pessoas mudam, não permanecem iguais ao que eram.

- Raymond Radiguet?

Ah, ele era muito jovem. Havia uma enorme liberação criativa em Paris. Foi bloqueada - guilhotinada - pela lei aristotélica do cubismo. Radiguet tinha quinze anos quando apareceu pela primeira vez. O pai era cartunista e Raymond costumava levar seus desenhos para os jornais. Se o pai não produzia nada, então Radiguet fazia ele mesmo os desenhos. Um dia, na rue d'Anjou, a empregada anunciou que havia "um jovem de bengala" que desejava falar comigo. Raymond subiu ao meu encontro - tinha quinze anos e começou a me falar tudo sobre arte. Éramos toda a sua história, veja bem, e ele costumava deitar às margens do Sena, fora de Paris, e ler para nós. Ele havia concluído que todos nós estávamos errados.

- Como assim?

Dizia que uma vanguarda começa em pé e termina sentando muito rápido. Ele se referia à cadeira da academia.

- E o que propunha?

Que devíamos imitar os grandes clássicos. Não conseguiríamos; e no fato de não conseguir estaria nossa originalidade. Assim, mais tarde, ele se pôs a imitar La princesse de eleves e escreveu Le bal du comte d'Orgel, e eu procurei imitar La chartreuse de Parme e escrevi Thomas l'imposteur.

- Quantos anos ele tinha quando escreveu Le diable au corps? Ainda se vê esse romance em tantas vitrines, nas livrarias de Paris.

Ah, ele era muito jovem. Morreu no fim da adolescência. Isso foi... em 1921... é ... com uns dezessete anos. Era extraordinário, começou exatamente do começo, sem erros.

Como é possível?

Ah, responda você! Ele dormia no chão ou sobre uma mesa qualquer, na casa de um dos muitos pintores que conhecia. E nas férias de verão que passamos juntos na baía de Arcachon, escreveu Le diable au corps; Bal du comte d'Orgel ele nem sequer escreveu: sentou e ditou para Georges Auric, que batia tudo à máquina, conforme ia saindo. Eu ficava olhando, ele simplesmente falou tudo, do início ao fim. Rápido e sem qualquer esforço. E tem um estilo impecável. Ele era um mandarim chinês com a ingenuidade de uma criança.

- Foram dias sem dúvida alguma memoráveis. Modigliani. O senhor mesmo. Apollinaire.

Vou lhe contar uma coisa; aí, quem sabe, você me deixa descansar. Por acaso você conhece a obra de Domergue, o pintor? Umas moças esguias; arte de calendário, mais ou menos. Ele tinha uma domestique naquela época - uma empregada que fazia as camas, enchia os baldes de carvão. Naquela época, todos nós nos reuníamos no Café Rotonde. E um homenzinho com uma testa enorme, arredondada e cavanhaque preto às vezes costumava entrar lá para tomar um gole e nos ouvir conversar. E para "olhar os pintores". Uma vez perguntamos ao homenzinho (ele nunca dizia nada, só escutava) o que ele fazia. Disse que tinha a séria intenção de derrubar o governo da Rússia. Todos nós rimos, porque, é claro, tínhamos essa mesma intenção. Era assim aquela época! Era Lenin.

- Sua posição é hoje a da personalidade literária mais celebrada da França, coroada pela Académie Française, pela Academia Real da Bélgica, doutor honoris causa de Oxford e por aí afora. Imagino que essas coisas, porém, sejam "falhas"...

É necessário sempre se opor. À própria vanguarda - se é ela que se encontra entronizada.

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Cocteau durante um jantar em Paris, em um pequeno restaurante no 16eme arrondissement.

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Críticos? Um crítico, na estréia de uma de minhas peças, numa noite de sábado, em Munique, criticou seriamente a iluminação. Agradeci pela observação, mas não houve tempo de mudar nada para a matinê de domingo. E ele me parabenizou pela sensível melhora. Disse: "Viu como minha sugestão ajudou?". Não, sempre vai existir um conflito entre os criadores e os técnicos do métier.

- Fiquei chocado com a banalidade de Alberto Moravia em uma entrevista com uma atriz de cinema, há pouco tempo, na imprensa francesa.

Eu o vi na televisão e ele foi muito medíocre. Mas aí é que está a dificuldade. Esse é o tipo de coisa que o público engole. E tudo que querem são nomes. A apreciação da arte é uma ereção moral; do contrário, é mero diletantismo. Acredito que a sexualidade é a base de toda amizade. Essa doença, expressar-se. O que é isso?
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NOTA:

(1) Charles Lamb (1775-1834). Ensaísta e escritor inglês. Em colaboração com a irmã, Mary Lamb, escreveu Tales from Shakespeare (1807), com o objetivo de tornar o poeta mais acessível. (N. T.)

WILLIAM FIFIELD
(tradução de Luiza Helena Martins Correia)

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