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Grandes entrevistas

 

Jorge Luís Borges

Última entrevista do autor conduzida por Roberto D'Ávila na TV, e publicada no jornal O Nacional (R.Janeiro), de 04/02/1987.

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- Fale-me de sua infância, de suas memórias

Minhas primeiras memórias são da biblioteca de meu pai. Não me recordo de uma época em que não soubesse ler e escrever. Meu pai era professor de psicologia e me disse que a memória começa aos quatro anos de idade. Assim, aprendi a ler e escrever entre os três a quatro anos. A biblioteca de meu pai era essencialmente de livros ingleses. De modo que quase tudo que li na vida foi em inglês e depois em outros idiomas, já que, em 1915, fomos para Genebra e tive que estudar francês e também bastante latim. Depois disto, eu me ensinei alemão para ler Schopenhauer. Mas antes passei pela poesia e expressionistas alemães: Johannes Becher, Wilhelm Klemm, Kafka e outros. Quando perdi a vista como leitor em 1955, para não "abound in loud self pity", para não abundar em sonora auto-comiseração, como diz Kipling, empreendi o estudo do inglês arcaico. Depois estive duas vezes na Islandia e estudei um pouco de escadinavo antigo. O islandês é a lingua mãe do sueco, do dinamarquês e, parcialmente, do inglês também. Agora pensei em estudar japonês ou chinês, que são idiomas tão estigmatizados. Curiosamente, algumas palavras portuguesas permanceram no Japão. Os portugueses permaneceram no Japão. Os portugueses levaram o pão - o alimento e a palavra - de modo que "pão" se diz pania. Há um prato que é tempura, que vem de "temperado". E, não sei se você sabe, mas a palavra "mandarim" é de origem portuguesa, porque os mandarins mandavam. Como os mandarins davam ordens, os portugueses os chamaram "mandarins" - Aí batizaram a mandarina ou "tangerina" que é portuguesa. Tomaram também outras palavras do inglês: garfo, colher e faca se chamam Forucu, spunu e naifu, como spoon, knife e fork.

- Das leituras da infância, o que mais lhe impressionou?

Os livros que continuaram a me impressionar depois: As mil e um noites. Livros de diferentes épocas da vida de Kipling, que comecei a ler em criança e continuo a ler agora. Sempre gostei muito dos atlas e das enciclopédias. Curiosamente, continuo a comprar livros. Não posso lê-los. Aqui tenho, por exemplo, uma excelente enciclopédia italiana, a Garzanti, tenho duas edições da Brockhaus, alemã, e uma edição da Britânica. Gosto muito. Acho que é a melhor leitura para um homem ocioso e curioso como eu. Infelizmente perdi a vista. Se eu a recuperasse, não sairia desta casa. Ficaria lendo os muito livros que estão aqui, tão perto e tão longe de mim. Mas perdi a vista. Diversos países me convidam para dar conferências. Vou agora à Califórnia, à Nova York e depois à Roma. Depois volto à Roma no fim do ano para falar de meus livros. Continuo a escrever. Que mais posso fazer? É que não gosto do que escrevo. Nesta casa não encontrará um só livro meu. Porque quem sou para ficar ao lado de Euclides da Cunha, Camões ou com Montaigne? Não sou ninguém! Continuo a adquir livros porque gosto de estar rodeado por eles. Como quando era menino, já que minhas primeiras lembranças são de livros e acho que minhas últimas o serão também. Quanto à minha memória, a única coisa que consigo lembrar são citações, mas dos fatos de minha vida, me esqueci. As datas, não me lembro de nenhuma. Tenho lembranças de meus pais a quem adorava, dos meus amigos. Agora se completa 85 anos, meus amigos estão embaixo da terra.

- E as lembranças dos amores?

Agora estão menos vivas. Lembro-me de uma frase muito triste de Emerson: "Life itself becomes a quotation". "A própria vida se converte numa citação". Tenho a memória cheia de versos em tantos idiomas... E continuo escrevendo. Bem, escrevendo é uma metáfora; ditando. Como passo boa parte do tempo sozinho, vou povoando esta solidão com projetos literários. Não vão durar muito porque, aos 85 anos, não se tem muito por vir. Entretanto minha mãe morreu aos 99 anos com o terror de chegar aos 100. Eu tentava convencê-la de que os 100 são uma superstição. Mas, mesmo assim, o número 100 a apavorava. Quando fiz 80, achei horrível. Espero não chegar aos 90. Eu preferiria morrer esta noite. Agora não, porque quero conversar um pouco com você. Quando vocês se forem, eu morro. Eu gostaria. Assisti a várias agonias no curso de minha excessivamente longa vida. Sempre aquele que morre fica muito impaciente por morrer. Tem muito medo de não morrer. Minha mãe acreditava em Deus, eu não. Todas as noites lhe pedia que a levasse durante o sono. Uns meses antes de fazer 100 anos morreu, que era o que queria. Ela acordava de manhã e chorava ao ver que não tinha morrido durante a noite e se preparava para outro dia. Claro, que não podia se útil; estava aleijada. Mas, ao fim de alguns meses, morreu.

- Como é a cegueira?

Uma das primeiras cores que se perde é o negro. Perde-se a escuridão e o vermelho também. Assim, agora vivo no centro de uma idefinida neblina luminosa. Mas não estou nunca na escuridão. Neste momento esta neblina é não sei se azulada, acinzentada ou rosada, mas luminosa. Tive que me acostumar com isto. Fecho os olhos e estou rodeado de luz, mas sem formas. Vejo luzes. Por exemplo, naquela direção, onde está a janela, há uma luz, vejo minha mão. Vejo movimento mas não coisas. Não vejo rostos e letras, menos ainda. É incômodo mas, sendo gradual, não é trágico. A cegueira brusca deve ser terrível. Mas se pouco a pouco as coisas se distanciam, esmaecem... No meu caso, comecei a perder a vista desde o momento em que comecei a enxergar. Tem sido um processo de toda minha vida. Mas a partir de 55 anos, não pude mais ler. Passei a ditar. Se tivesse dinheiro, teria uma secretária, mas é muito caro. Não posso pagar.

- Nunca ficou desesperado por causa da cegueira?

Não. Como foi um processo lento, não houve um momento patético. Mas se uma pessoa perde a vista de repente, pode, incusive, pensar em suicídio.

- O Sr. já pensou em suicídio?

Quando era jovem, sim. Mas quando a pessoa é jovem, quer ser o Príncipe de Hamlet, Byron, Edgar Alan Poe, ou Baudelaire. Mas agora procuro a serenidade e a encontro. As pessoas são muito boas para mim. Claro. Sou um velhinho inofensivo. Quem vai me molestar? Não pertenço a nenhum partido político. Sou um velho anarquista spengleriano. Principalmente neste país, as pessoas se interessam muito por política. Eu não. Mas tenho minha consciência tranquila. Falei e escrevi contra Perón. Minha mãe, minha irmã e um sobrinho meu estiveram presos Ameaçaram-me de morte, mas eu sabia que, se alguém lhe ameaça de morte, você não corre nenhum perigo. Depois vieram todos esses governos. Falei contra o terrorismo, muitas vezes, contra a ditadura militar. Depois escrevi contra uma possível guerra com o Chile. Contra a invasão das Malvinas, escrevi dois poemas e uma milonga, que foi proibida pelo governo, naturalmente.

- Pode recitar?

Não me lembro. Tenho um poema que se intitula "Juan Lopez y John Ward". São dois rapazes, um argentino e outro, inglês, que poderiam ter sido amigos, mas que se matam na guerra. Tenho uma milonga que se chama "Milonga del muerto" sobre um soldado que morreu na guerra. As pessoas se riem um pouco dessa guerra, mas toda guerra é terrível, até mesmo uma pequena como essa. Morreram 2.000 argentinos e 500 britânicos. Conversei com sodados que me disseram que se tivessem um rifle na mão teriam matado seus oficiais. Os sargentos quando viram, fugiram e deixaram os soldados. É que não eram soldados; eram recrutas. Era gente trazida das províncias semitropicais do norte e os mandaram às cercanias do Polo Sul combater soldados verdadeiros. Eram todos rapazinhos de 18 ou 20 anos, ainda que houvesse uma superioridade numérica grande.

- A religião lhe interessa muito?

Sim. Falei com monges do Xinto e da fé de Buda. Falei com um monge que havia alcançado o Nirvana duas vezes. Perguntei se podia me contar como era e ele respondeu: "Não, porque toda palavra pressupõe uma experiência compartilhada. Se você falar da cor amarela a um cego desde o nascimento será inútil". O Nirvana também. Ele me disse que depois de alcançá-lo a dor e os prazeres físicos, a solidão, a amizade, o arrependimento. Continuava pensando, mas tudo isto de uma maneira diferente, porque tinha passado pelo Nirvana. Mas ele não podia explicar essa maneira porque, como eu não conhecia o Nirvana, as palavras dele não teriam sentido para mim. Contou que podia convesar com outro monge que vivia no outro extremo da ilha. Tinham se visto algumas vezes. O rapaz tinha uns 30 anos. Parece que é muito difícil entrar para um convento budista. A disciplina é duríssima e há castigos corporais. Mas uma vez, monge, quase não há disciplina, a pessoa pode praticar o celibato, pode se casar, ter mulher e filhos. Quando se é monge, pode-se ir embora quando se quer, não há restriçoes. Mas é miuito difícil chegar a ser monge, porque a disciplina é muito dura. No ensino, os primeiros anos também exigem muitíssimo. Na universidade, não. O importante são os diálogos com os professores. Quase não há provas. Mas para entrar, há uma disciplina muito severa. E para escrever, uma pessoa culta tem que saber de cor 6 ou 7 mil signos, ideogramas. Seria o mesmo que você escrevesse "1, 2, 3, 4 e 5" e lesse em francês, inglês e alemão. Isto acontece com todas as palavras. Cada uma tem seu signo. E quando não, se usam metáforas. Por exemplo "jaula de luz" por "lâmpada". Como não há um signo para "lâmpada", se recorre a uma metáfora - "jaula de luz". Há quatro sistemas de escrita.

- Quais foram as grandes sensações de sua vida?

São as grandes sensações da vida de todo homem. O amor, a amizade, a leitura, e gosto muito de escrever também, embora não goste do que escrevo. Nesta casa não há livros meus nem sobre mim. A partir dos 30 anos, não li uma linha que se escreveu sobre mim. Sei que há biblotecas inteiras, mas não li nada. Acho que deve-se viver para o futuro. Quando publico um livro, não sei se tem êxito ou não, se está vendendo. o que disse a crítica. Meus amigos sabem que não devem falar do que escrevo.

- Por que?

Porque é incômodo falar da própria pessoa. Prefro falar de outros autores. Deve acontecer o mesmo com outros escritores. Há uma frase muito bonita de Kipling que fala sobre o fracasso e o sucesso. É

claro. o fracasso e o sucesso são impostores. Ninguém fracassa tanto como imagina. Ninguém tem tanto sucesso como imagina. Além disto, o que importa o sucesso e o fracasso? No fim das contas, todos seremos esquecidos, o que aliás é melhor. Não creio em imortalidade pessoal. Meu pai dizia: " Quero morrer eternamente - corpo e alma". Segundo a Bíblia, depois dos 70, tudo é aflição. Mas eu diria que antes também. Não é preciso fazer 70 anos para conhecer a aflição. Segundo a tradição, os 33 são a idade perfeita, porque é quando morre Cristo e nasce Adão. Adão nasceu aos 33 anos, com dentição etc. Na Idade Média, houve uma discussão muito séria sobre se Adão tinha ou não umbigo. Há um livro, de um escritor inglês, chamado Omphalos (ou navel, que é umbigo). Adão não pode ter umbigo porque não nasceu de mãe, porque foi criado do pó por Deus. Mas, ao mesmo tempo, se lhe falta o umbigo, é imperfeito. Então Adão tem que ter umbigo, embora não tenha tido cordão umbilical. Isto se discutiu com toda seriedade durante muito tempo. Havia teólogos encarniçados em ambos os lados. Sir Thomas Brown, um escritor do século XVIII, diz "The man without a navel lives in me". "O homem sem sem umbigo vive em mim"; ou seja: "Adão vive em mim; sou também o primeiro homem". Que estranho que se tenha discutido isto, não? Se lhe faltava umbigo, era se lhe faltasse a dentição. Era imperfeito.

- Estávamos discutindo a visão do inferno e do paraíso de Dante.

É um visão literária. Mas não acho que ele acreditasse pessoalmente nela. Se não, que estranho que o céu fosse habitado por italianos que falavam em tercetos de decassílabos. Ele não podia crer nisso. Uma população de grandes poetas que falavam em tercetos, não pode ser! Além disto, o próprio Dante em sua "Epistola de Cangrande della Scala" diz que pode-se ler seu livro de quatro maneiras diferentes: literal., alegórica etc. Mas segundo o filho de Dante,o escritor se propôs a escrever a vida dos pecadores - o inferno, a dos penitentes - o purgatório, e a dos justos - o céu. Quer dizer que nem sequer na Idade Média se fazia a leitura literal. E Dante dizia que seu livro permite quatro leituras, como a Biblia. Nem mesmo ele o lia literalmente. Claro. Se não, seria um imbecil.

- O Sr. é um homem que leu milhares de livros

Não. Li muito poucos. Sempre reli os mesmos livros. Não conheço a literatura contemporânea. Desde que perdi a vista como leitor em 1955, não li nada de novo.

- Mas quando era menino, na biblioteca de seu pai, lia muito.

Não lia muito. Folheava os livros. Não creio que tenha lido quase nenhum livro do princípio até o fim, salvo livros de fiolosofia. Romances li muito poucos. Para mim, o romancista é Conrad.

- O Sr. leu pouco, mas sua vida é literatura. A realidade para o Sr. não importa muito. O que importa são as sensações, o que o Sr. pensa.

Se eu tivesse interesse na realidade européia, leria jornais. Nunca li um jornal na vida. Pra que lê-los? É tudo bobagem. Só falam de viagens de presidentes, congressos de escritores, partidas de futebol. Bem, para ler essas bobagens... Vida social. Li pouco. Por isto gostaria de recuperar a visão para poder folhear um ivro, escolher o que vou ler ou omitir. Quase não li romances na vida, fora Joseph Conrad, que para mim é o Romancista. Fracassei com grandes romances, com Zachary, com Flaubert.

- Mesmo com Cem anos de solidão o Sr. não foi até o fim?

Com cem anos, não. Completei no máximo 50 anos. Mas é um excelente livro. Gostaria de conhecer o autor.

- Não o conhece?

Não tive oportunidade. E possivelmente nunca terei. Ele vive na Colômbia, não? Estive duas vezes na Colômbia. Todo mundo foi muito amável comigo, sobretudo porque sou um ancião inofensivo. Inimigos pessoais não tenho. Às vezes me ameaçam de morte, mas por telefone, o que não tem nenhuma importância. Se uma pessoa quer matar a outra, não avisa porque seria um imbecil. Bem, os assassinos são imbecis.

- O Sr. está com uma bengala bonita.

Li em Brusca, um escritor argentino, que a palavra gaucho é de origem brasileira. O tipo e o nome apareceram primeiro no Rio Grande. Depois no Uruguai, onde diziam gaúcho, chegando tardiamente à Província de Buenos Aires. Vi gauchos em Santana do Livramento. Em Buenos Aires não há mais e no Uruguai, muito poucos, devido à forte colonização de agricultores espanhóis e italianos. Isto talvez você saiba: a palavra "pampa" não se usa nunca aqui no interior. Usam-na os literatos. "Gaucho" também não. Aqui as pessoas dizem "um camponês", "um peão", e "o campo".

- A palavra "pampa" se usa muito no Rio Grande do Sul.

Não sabia! Aqui só a usam os literatos. E gaucho é pejorativa. Um gaucho é um bruto, um animal. "Fulano é um gaúcho"...

- O Sr. gosta muito desse jogo de saber da proveniência das palavras.

A etimologia é muito bonita. Vos contar-lhe uma que talvez não conheça. Sabe qual é a origem da palavra "náusea"? É muito bonita. É "naves", "barco". Quando você está a bordo, sente náusea. Como mareo, de mar. Que bonito, não? A palavra azar como se diz em português? Sim. O azar. Bem, quer dizer "dado" em árabe, esse cubo com pontinhos que você lança.

- Por causa do jogo de dados?

Claro. Porque é um jogo de azar. Que bonito, não? Deixe eu ver outras palavras...

- Andaluzia

Bem, esta é igual aos vândalos. Uma palavra dada pelos árabes. Não me lembro de outras neste momento. Eu sabia muitas etimologias. Ah! Há uma rua em Londres que se chama "Picadilly". Depois da Restauração, os jesuítas ensinaram aos jovens ingleses que o coito era um pecadinho. Então, "Picadilly" era a rua das prostitutas.

- Fantástico!

Era a rua dos pecadillos ou "pecadinhos", porque para eles a carne não era tão terrível como queriam os puritanos. De modo que "Picadilly" é pecadillo em castelhano.

- As palavras de nomes das plantas...

Diga-me, o sabiá é um pássaro comum?

- Sim, é um pássaro comum no Brasil.

Há um poeta italiano, Montale, que diz que o sabiá não faz ninho, mas acho que é falso. Como não vai ter ninho? Lembro-me que em 1914 ouvi: (cantando) "Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá. As aves que aqui gorgeiam, não gorgeiam como lá". Parece-me que o sabiá é um pássato raro. É um pássaro comum, não?

- Esses versos são de Gonçalves Dias.

Não sei. Escutei em 1914. Passando pelo Rio de Janeiro, indo à Europa, alguém os cantou e ficaram na minha cabeça, não sei porquê. No Brasil se fala guarani também ou não?

- Não se fala mais.

De guarani sei algumas palavras. Por exemplo, uruguai. Guai é "rio" e uru é "pássaro colorido". Portanto, Uruguai é " rio dos pássaros coloridos". E "cataratas do Iguaçu é "água grande. Mas "gaúcho" não se sabe de onde vem. Acho que de guacho, filho de pai desconhecido, mas não tenho certeza.

- É um assunto bonito falar de da etimologia das palavas.

Você conhece a palavra "canibal", que é o que come carne humana. Essa palavra tem origem nos indios caribes de Cuba, Porto Rico etc. "Caribe" deu "canibal" e deu também a Shakespeare o nome de "Caliban", aquele personagem de A tempestade. De modo que Caribe teve dois terríveis filhos: Canibal e Caliban. Mas eram uma tribo de índios caribes antropófogos. Que estranho, não?

- Queria mudar um pouquinho a assunto. Queria que o Sr. falasse do amor.

Ocupou tanto lugar na minha vida, que ocupa pouco em minha obra. Estive casado por três anos e compreedemos que o único modo de continuarmos amigos era a separação. Mas agora também não somos amigos porque não a vejo nunca. Não sei se morreu ou não.

- Quer dizer que o Sr. acha que o casamento mata mais que o amor.

Três anos de casamento foram um pouco onerosos. Você está casado?

- Agora não

Acho mais prudente não se casar.

- É um conselho?

Havia na Revista Puch, inglesa: "Advice to those about the mary"- Conselho do Sr. Punch aos que estão por se casar: "Don't" - Não se casem! Essa brevidade dos ingleses... Porque don't é do not, naturalmente. Você conhece a origem de "good-bye", "adeus" em inglês? É como em castelhano: adios. Em inglês, "God be wiht you" - "que Deus esteja contigo". E deu good-bye. Já não se reconhece o nome.

- Em francês também: Adieu.

Adieu, também claro. Em todos os idomas. Em japonês, sayonara, que não sei o que quer dizer.

- Disseram-me que na Itália as pessoas, ao se despedirem, diziam, mas parece que ninguém mais diz... Ciau.

Não ciau quando se encontram também. Isso quer dizer "escravo" no dialeto no Vêneto creio "Sou seu escravo", estou às suas ordens". Mas quando duas pessoas se encontram. Aqui é quando se despedem somente. Mas dizem que na Itália durante um tempo diziam: "Si no ti veo piu, felice morte". Mas são tão supersticiosos que já não dizem mais. Parece-me um pouco terrível. Mesmo assim, é um bonito desejo: "Se não te vir mais, feliz morte". Parece-me que é uma bricadeira que já caiu em desuso.

- Os italianos são um povo genial, não acha? Fizeram a Renascença...

Claro. Os judeus e os italianos são muito inteligentes. Eu tenho algum sangue judeu, mas de cistãos novos. O sobenome de minha mãe, Acevedo, é de judeu português, acho. Os outros sobrenomes judeus que ficaram na minha família foram Rubio e Piñedo, que são portugueses, embora cristãos novos.

- Fale-me de seu sentimento por Buenos Aires.

Mudou tanto a cidade... Já não a conheço... Nasci aqui no centro de Buenos Aires: Rua Tucumán, entre Esmeralda Suipacha, quatro ou cinco quadras daqui. Toda a Buenos Aires era de casas baixas com teraços, pátios, campainhas manuais. Não havia as elétricas. Só havia algumas casas altas perto da praça do Congresso. A cidade toda tinha casas com pátios, poços. Sempre havia uma tartaruga no fundo para comer os bichos: uma espécie de filtro vivo. Buenos Aires mudou completamente. Minha mãe se lembrava desta rua sem calçamento. Hoje está asfaltada. Bem, creio que vou ter de deixá-los. Vão ficar muito tempo?

- Mas o Sr. é um homem universal, tem todos os sangues

Não tenho tantos. Meu bisavô era lisboeta. Era Borges de Moncorvo, uma cidadezinha de Trás os Montes. Depois tenho uma maioria de sangue espanhol, uma avó inglesa, algum sangue judaico-português e, muito distante, algum sangue normando dos Bittencout, uma família de perto do Rouen. Devo ter ainda algum sangue escandinavo e isto é tudo. Mas eu trato deser cosmopolita, de ser digino deste planeta.

- A sua genialidade vem de que lado?

Não tenho genialidade de nenhuma espécie. Sou apenas um pequeno escritor sul-americano, um mínimo argentino.

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