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Grandes entrevistas

 

Livia Garcia-Roza

Entrevista publicada no site http://www.record.com.br (s.d)

Na literatura de Lívia Garcia-Roza a fronteira entre a realidade e a fantasia é muito tênue. Em muitos de seus livros a narração vem na voz de uma criança-adolescente. As crianças vêem com olhos de conto de fadas: é a casa que chora, o homem com cara de cachorro e o mundo se torna mais divertido. Através deste olhar, Lívia transita pelo universo de filhos de pais separados, a menina-mocinha que ainda tem no quarto bichos de pelúcia, ao mesmo tempo em que sonha com o beijo de um menino. Com absoluto domínio da linguagem, a autora fala como pensa uma criança. “Às vezes a mamãe é tão chata, tão chata...” O leitor vai se deliciar seja adolescente ou adulto, com os personagens destas histórias tão próximas do nosso cotidiano. Lívia Garcia-Roza é psicanalista e estreou na literatura em 1995 com o livro Quarto de menina. A palavra que veio do sul é seu sexto livro. 
  

Como acontece a sua criação?

Não há nada que a determine. As histórias se impõem a mim. Às vezes vem de uma palavra, de algo que senti. Este livro, por exemplo, não tinha nada. De repente ele surgiu. E ele fala da solidão da vida, da mãe com sua filha.

Isto de certa maneira tem sido assunto de outros seus livros, a questão de pais separados, a situação da mulher separada, o universo feminino.

Nós mulheres costumamos endereçar muitas das problemáticas dos filhos para o pai. Dizemos “vai perguntar para os eu pai, telefone para ele”, quando na verdade certas coisas dizem respeito à relação mãe e filho. Acho que a figura do pai é importantíssima, mas o que eu sinto é que existem coisas específicas da relação de uma mãe com sua filha —  e que a mãe tem de dar conta disso — nas quais as mães ficam muito aflitas. Então meus livros são como se eu estivesse tendo que mexer com isso.

E neste livro a questão central é justamente a relação da mãe com a filha. Da personagem Helena com a Leninha. Mas vamos falar dos outros personagens, da Marisa, por exemplo, que é uma homossexual. Nota-se neste livro a sua necessidade de atingir questões relevantes vividas pela sociedade atual.

Sim, esta é uma questão que vemos ser tratada de uma maneira muito mais aberta hoje em dia. Outra que quis apontar é a da comunicação virtual. Ambas são problemáticas do mundo contemporâneo que eu tenho interesse em abordar através da literatura.  Por exemplo, eu não sabia que eu ia fazer este personagem da Marisa e de repente ela surgiu e ficou. A literatura vem justamente preencher questões que nos atravessam.

E como a astrologia entrou no livro?

Sempre achei a astrologia interessante, é um assunto atual. E é uma linguagem, fala-se de Plutão atingindo seu mapa. Então  fiquei pensando como uma criança receberia aquilo. E veio a idéia de a mãe Helena ser astróloga, o que desperta muita curiosidade na filha. Percorrendo o livro você vai notar que este ponto faz parte da relação das duas.

Como é a sua historia com criança? Você sempre teve crianças ao seu redor? Sempre as observou com curiosidade?

Sim, eu tive uma infância rica com primos e tudo, mas não acho que seja isto que me leve a escrever sob a voz infantil. Eu acho que a gente escreve sobre uma coisa que a gente não entende e a minha tentativa é de entender a minha adolescência, a das minhas filhas e agora a das minhas netas. È uma fase da vida muito difícil. Escrever sobre a adolescência me ajuda a decifrá-la.

Em seus outros livros, Quarto de menina, Cartão-postal fala-se da separação. Realmente, esta é uma situação quase que padrão dentro da realidade infantil atual. O que você diria a respeito disso?

Bem, este é um tema que me absorve por ser uma realidade que tem se apresentado muito para as crianças e que é ainda difícil de se conviver. Mas também penso, até que ponto escrever sobre isso, sobre separação, é também estar em plena tarefa literária, onde você precisa se separar de suas coisas para poder escrever. Escrever não é contar lembranças, situações pessoais. Então, escrever implica em você se separar de você.

Você pensa num público-alvo quando escreve?

Não, isto nunca se esboçou para mim.

Você trabalha como psicanalista há muito tempo. Qual a relação do seu trabalho como psicanalista e sua escrita?

Eu sempre fiquei atenta a não misturar as duas práticas. Tanto na psicanálise quanto na literatura, trabalha-se com a palavra. Só que na literatura a gente produz esta palavra. Eu sempre tive preocupação em não tomar partido de casos de consultório, não misturar.  Mas quanto a minha percepção, sim, deve perpassar a visão que eu adquiri através dos meus estudos de psicanálise.

O fato de você utilizar a voz infanto-juvenil não seria uma forma de você passar por este conhecimento que a psicanálise tem sobre o ser humano, mas de uma maneira inocente, sem elaboração?

È pode ser. Isto pode ser uma malandragem minha, um truque. Procede. Talvez eu corresse um risco maior dando uma voz narrativa adulta a este saber que eu possuo pelos meus estudos. A criança é capaz de sutilezas, de captação de relações entre as pessoas, que nós adultos não somos mais capazes, porque certas portas já se fecharam para nós. E a criança não, ainda tem um olhar lúdico, tão interessante. Acho que a narrativa conduzida sobre o ponto de vista infantil fica muito mais rica, mais saborosa. Eu acho que um livro pode funcionar muito mais do que várias sessões de análise. Você tem elaborações em si daquele texto, ele te desloca de uma maneira forte, você se identifica com o personagem. Enfim, produz milhares de sensações no leitor. Eu acho isto muito lindo na literatura.

Como a literatura surgiu na sua vida?

Desde o início da minha vida eu tenho relação com a palavra. Quando pequena percebi que a palavra de minha mãe era uma e de meu pai era outra, não os comandos, mas a utilização. A da mamãe era informativa e a do meu pai era diferente, ele tinha total liberdade com a palavra, meu pai era engraçado. E na época havia a mania de escrever diário, principalmente as meninas. E eu escrevia diário. Mas desde pequena eu gostei de ler, sempre li muito e de tudo. Bem, mas eu não tinha em mim que iria escrever ficção, a psicanálise ocupou muito a minha vida. Foi de repente. Um dia, na década de 80, eu comecei a escrever uma historinha. Quando vi, tinha feito um capítulo. E aí foi, escrevi direto Quarto de menina. Acho que a literatura foi um encontro que eu tinha de ter. Quando eu era jovem, o mundo me seduzia de diversas maneiras e para escrever se precisa de uma certa quietude, interiorização para poder produzir. Eu me esgotava na realidade porque tudo me interessava. A literatura chegou num momento em que tudo isso foi muito vivenciado. Tive então necessidade de ficar quieta. Isto só me foi possibilitado depois que vivi intensamente, ou seja, para chegar à realidade ficcional, tive que esgotar a realidade. Acho que não seria uma escritora jovem, porque faltaria tudo.

 

 

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