Volta para a capa
Grandes entrevistas (fictícias)

 

MACHADO DE ASSIS I

 

"Entrevista" conduzida por Daniel Piza, em 01/12/2005 e publicada nos sites: www.abril.com.br/noticia/diversao/no_307186.shtmla       

         www.danielpiza.com.br/interna.asp?texto=1935

Apresentação:

       Parece tão frágil. Pequeno, magro, tímido, Machado de Assis me recebe em sua casa no Cosme Velho, no charmoso bairro das Laranjeiras, gaguejando um “Bem-vindo à minha modesta morada”. Estamos em 1906. Já faz dois anos que sua amada Carolina morreu e, segundo me contam seus amigos, desde então Machado passa a maior parte do tempo recluso. Só sai para o trabalho no ministério, do qual vai para a livraria Garnier e, depois de meia hora de bate-papo, volta para casa. Aqui atravessa as horas lendo e escrevendo, sobretudo de manhã, já que sua vista piorou, e também cuidando de seu jardim e suas borboletas, às quais certa vez comparou seu estilo, ágil e inquieto, com o qual desenha seu humor melancólico. A casa é realmente modesta, mas bem apanhada, com móveis Biedermeier, a mesinha de xadrez, a estante com livros e pilhas de papéis. Consigo enxergar alguns nomes nas lombadas quando passo: Schopenhauer, Voltaire, Shakespeare, Poe, Sterne... Começo a entrevistá-lo, e aos poucos ele vai se soltando, deixando de parecer frágil e mostrando a espirituosidade e simpatia que referem alguns relatos de sua vida anterior à morte de Carolina.

_______________________

- O sr. não teve filhos por não querer legar a eles nossa miséria, como diz no final das Memórias Póstumas de Brás Cubas?

Quem o diz é Brás Cubas. Eu bem que gostaria de ver esta casa movimentada. Desde que minha doce Carola se foi, nada mais aqui tem graça, nem mesmo as borboletas. Mas quero crer que o sr. não veio fazer-me perguntas de cunho íntimo.

- Peço desculpas. É que parece haver tanta desesperança em suas histórias. O sr. não acha que a esperança é importante?

A esperança é importante, mas pode tornar-se um demônio, uma planta daninha que come o lugar de outras plantas melhores. A esperança é própria das espécies fracas, como o homem e o gafanhoto.

- Vejo ali um belo espelho emoldurado em madeira e me lembrei do conto O Espelho, em que a imagem do alferes, de farda, se confunde com a imagem real. Por que há tantos espelhos em sua obra?

Porque a vaidade é um tema que me fascina. Ela tem mil formas, inclusive a mais comum, a da modéstia. E os espelhos são obras humanas; imperfeitos, como todas as obras humanas.

- O sr. foi um poeta romântico e escreveu alguns livros românticos, em que o coração é guiado por paixões contraditórias. Por que o sr. abandonou o romantismo?

Será que o abandonei algum dia? Continuo achando, como escrevi em Ressurreição, que a um coração desenganado não há imediatamente compensações possíveis nem eficazes consolações. E que a descrição da vida não vale a sensação da vida. Desculpe-me por estas auto-citações de velho. Mas eu mesmo sou exemplo de como é insubstituível a sensação de amar e ser amado.

- Mas o sr. é tido como o escritor que rompeu com o romantismo ao escrever Brás
Cubas.

É verdade, meu jovem, mas nenhuma verdade é inteira. O romantismo foi meu leite de infância, meu doce licor de juventude. Nunca apreciei o rosbife naturalista, isto sim. O realismo a que aderi em meus anos de teatro foi de outra substância, não como simples oposição ao romantismo. Entre um e outro foi que tentei trabalhar, pois no homem há lugar para todas as contradições. Os extremos se tocam. Eu, eu gosto de catar o mínimo e o escondido, não o máximo e o desabrido.

- Daí seu gosto pela ironia?

Precisamente. Contraí esse gosto dos gregos decadentes, de Luciano, de Swift e Voltaire, dos céticos e desabusados. Aqui no Brasil não prezam a ironia. Preferem a chalaça, a gozação, que tem platéia cativa. Em nosso país, a vulgaridade é um título, a mediocridade um brasão. E assim continua no regime republicano.

- Muitos, porém, o acham extremamente melancólico.

É que eles prefeririam que eu lhes dissesse que está tudo bem. Os otimistas costumam ser uns bobos! Eu tenho minhas rabugens de pessimismo, mas também tenho meus momentos de expansão alegre, ao menos na presença dos amigos próximos. De resto, prefiro ser reservado. O estilo não é o homem.

- O sr. diria então que concentrou suas farpas mais agudas para sua ficção?

Sou um budista desencantado, consciente de que os atos humanos têm causas secretas. O que tentei mostrar é que o ser humano vive numa escravidão moral, da qual pouco pode fazer para libertar-se, e tanto pior fica quanto mais busca dissimular sua dor. Não é só o inferno que está calçado de boas intenções. O céu emprega os mesmos paralelepípedos.

- O sr. foi crítico literário, defendeu a independência da literatura brasileira, fundou a Academia Brasileira de Letras para proteger os escritores da desagregação política. Vê bom futuro para a literatura nacional?

Nossa independência não se fará em uma ou duas gerações. Mas o sr. pode observar os livros que têm sido escritos nos últimos dez ou quinze anos, como Os Sertões, de Euclides da Cunha, Minha Formação, de Joaquim Nabuco, ou Canaã, de Graça Aranha, para encher-se de ânimo. Lá na Academia temos, além desses, nomes como José Veríssimo e Olavo Bilac. Exemplos não faltarão para o futuro.

- Esses amigos e colegas acadêmicos o chamam de mestre. É bom saber que se tem a reputação de um sábio?

Agora, meu rapaz, sou obrigado a concordar com Brás Cubas: “Em verdade vos digo que toda a sabedoria humana não vale um par de botas.” Eu trocaria minha reputação pela vida de Carolina, que era o meu par de botas, senão minha roupa inteira. E aqui sigo aquecendo os pés como posso, suportando esses remédios amargos que atenuam meus pecados do corpo. Os da alma não têm cura. Ela é tão sutil e complicada que traz confusão à vista nas suas operações exteriores.

 

                                                   * * *  

MACHADO DE ASSIS II

“Entrevistado” por Rubem Braga em outubro de 1958

São trechos de um programa de televisão em que Machado de Assis é entrevistado 50 anos depois de sua morte. Suas respostas são frases que ele mesmo escreveu em crônicas, contas ou romances.

_______________

- O senhor gostava muito de jogar xadrez com o maestro Artur Napoleão, não é verdade?

O xadrez, um jogo delicioso, por Deus! Imaginem da anarquia, onde a rainha come o peão, o peão come o bispo, o bispo come o cavalo, o cavalo come a rainha, e todos comem a todos. Graciosa anarquia ...

- Por falar em comer, é verdade que o senhor era vegetariano?

Eu era carnívoro por educação e vegetariano por princípio. Criaram-me a carne, mais carne, ainda carne, sempre carne. Quando cheguei à idade da razão e organizei o meu código de princípios, incluí nele o vegetarianismo; mas era tarde para a execução. Fiquei carnívoro.

- Que tal acha o nome da Capital de Minas?

Eu, se fosse Minas, mudava-lhe a denominação. Belo Horizonte parece antes uma exclamação que um nome.

- E a respeito da ingratidão?

Não te irrites se te pagarem mal um benefício; antes cair das nuvens que de um terceiro andar.

- E a imprensa de escândalo?

O maior pecado, depois do pecado, é a publicação do pecado.

- E esses camaradas que estão sempre na oposição?

O homem, uma vez criado, desobedeceu logo ao Criador, que aliás lhe dera um paraíso para viver; mas não há paraíso que valha o gosto da oposição.

- E o trabalho?

O trabalho é honesto, mas há outras ocupações pouco menos honestas e muito mais lucrativas.

- E a herança?

Há dessas lutas terríveis na alma de um homem. Não, ninguém sabe o que se passa no interior de um sobrinho, tendo de chorar a morte de um tio e receber-lhe a herança. Oh, contraste maldito! Aparentemente tudo se recomporia, desistindo o sobrinho do dinheiro herdado; ah! mas então seria chorar duas coisas: o tio e o dinheiro.

- E a loteria?

Loteria é mulher, pode acabar cedendo um dia.

- O senhor já ouviu falar da cantora Leny Eversong?

Quando eu era moço e andava pela Europa, ouvi dizer de certa cantora que era um elefante que engolira um rouxinol.

- E sobre as dívidas?

Que é pagar uma dívida? É suprimir, sem necessidade urgente, a prova do crédito que um homem merece. Aumentá-la é fazer crescer a prova.

- Pode me dar uma boa definição do amor?

A melhor definição do amor não vale um beijo de moça namorada.

- E as brigas de galos?

A briga de galos é o Jockey Club dos pobres.

- O amor dura muito?

Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos.

- E a honestidade?

Se achares três mil-réis, leva-os à polícia; se achares três contos, leva-os a um banco.

- E o Brasil?

O país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato e burlesco."

- E o sono?

Dormir é um modo interino de morrer.

- E os filhos?

Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.

- Muito obrigado, o senhor é muito franco em suas respostas.

A franqueza é a primeira virtude de um defunto.


- De qualquer modo, desculpe por have-lo incomodado. Mas é que neste programa sempre entrevistamos alguém que já morreu ...

Há tanta coisa gaiata por esse mundo que não vale a pena ir ao outro arrancar de lá os que dormem ... "

     

                                                    ***

MACHADO DE ASSIS III

Breve "entrevista" preparada para o livro Para gostar de ler, vol. 9 – contos. Coleção infanto-juvenil, editada pela Editora Ática, em 1994. 

- O que você gosta de fazer no dia-a-dia?

 

É meu velho costume levantar-me cedo e ir ver as belas rosas, frescas murtas, e as borboletas que de toda parte correm a amar no meu jardim. Tenho particular amor às borboletas. Acho nelas algo das minhas idéias, que vão com igual presteza, senão com a mesma graça.

 

- Você escreveu muito na sua vida: contos, poesias, crônicas, romances. O que você pensa dos livros?  

 

A vida dos livros é vária como a dos homens. Uns morrem de vinte, outros de cinqüenta, outros de cem anos, ou de noventa e nove. Muitos há que, passado o século, caem nas bibliotecas, onde a curiosidade os vai ver, e donde podem sair em parte para a história, em parte para os florilégios. Ora, esse prolongamento da vida, curto ou longo, é um pequeno retalho de glória. A imortalidade é que é de poucos.

 

- E quando você escreve, qual é o objetivo?

 

O meu fim não é contar os atos ou comentá-los; onde houver uma lição útil é meu gosto e dever tirá-la e divulga-la como um presente aos leitores.

 

- Certa vez você comparou as idéias com as nozes. Como é isso?

 

As idéias, para mim, são como as nozes, e até hoje não descobri melhor processo para saber o que está dentro de umas e outras, - senão quebrá-las

________


- Link1
- Link2
- Link3