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Grandes entrevistas

Milton Hatoum

Entrevista realizada por Maged T.M.A. El Gebaly, publicada na Revista Crioula, nº 7, maio de 2010

http://www.revistas.usp.br/crioula/article/viewFile/55258/58887

Milton Hatoum nasceu no dia 19 de agosto 1952, em Manaus, no seio de uma família libanesa e consagrou-se como escritor com as publicações de Relato de um certo oriente (1989) e Dois irmãos (2000). Nesses romances, conseguiu traçar sua própria voz com a construção literária assentada em suas memórias familiares. Este estilo se consolida em seu terceiro romance, Cinzas do Norte (2005), no qual expôs uma visão íntima de toda aquela geração brasileira que viveu sob a ditadura nos anos setenta. Na novela Órfãos do Eldorado (2008), Milton explora um novo rumo estético – em que se vale de uma linguagem com reverberações oníricas – ao compor uma trama sentimental, de uma época de fausto e decadência na Amazônia brasileira. Órfãos do Eldorado já foi traduzido para o inglês, francês, alemão, sueco, croata e será publicado em 17 países. Seu livro A Cidade Ilhada (2009) reúne uma série de contos que representam fotograficamente Manaus em transição entre cidades ilhadas, personagens isolados comunicados com narradores e situações narrativas que dialogam com a vasta bagagem literária de Milton Hatoum.

Nessa entrevista, o pesquisador Maged El Gebaly – cujo projeto de doutoramento consiste em traduzir Relato de um certo oriente para o árabe e fazer um estudo hermenêutico desse processo de tradução – abordou temas relacionados à literatura e ao exercício de tradução, além de colher as impressões do autor sobre outros temas como as questões políticas relacionadas ao Oriente Médio e a relação do escritor com o Líbano.

RC: O título de seu romance Relato de um certo oriente é uma crítica ao orientalismo ou ao discurso orientalista estudado por Edward Said?

MILTON HATOUM: O Orientalismo, livro de Edward Said, foi uma das leituras mais importantes sobre essa questão da construção imaginária do discurso sobre o outro oriental, sobretudo sobre o mundo islâmico. O Orientalismo é um dos ensaios seminais sobre as relações entre o Oriente e o Ocidente, sendo que o Oriente, como Said mostrou, é uma construção, é uma invenção do Ocidente. É um tipo de representação que o discurso orientalista teceu ao longo da história, sobretudo a partir do século XVIII. Pode ser que haja, inconscientemente, uma influência do Edward Said no título. A verdade é que foi difícil encontrar este título. Para mim foi um achado. Eu já havia praticamente terminado o romance e tinha outros títulos em mente, como “Retratos da memória”. Eu lembro que esse era um dos títulos possíveis, mas gostei desse título Relato de um certo oriente, porque nele há várias perguntas. De que Oriente nós estamos falando? De um determinado Oriente? Mas qual deles? É isso que o livro insinua. É o mistério em torno desse Oriente que está um pouco nebuloso, e ainda não se sabe qual é o Oriente do romance.

RC: Por que a dupla indefinição do título (não é de certo, mas de um certo Oriente)?

MILTON HATOUM: Isso dá mais ambiguidade ao título. O leitor não sabe exatamente do que se trata esse Oriente. A literatura trabalha com a ambiguidade, isso a enriquece. Tudo o que é muito determinado ou explicado prejudica o romance. O romance questiona, indaga, insinua, suscita perguntas; mas ele não pode explicar. O romance explicativo é chatíssimo.

RC: Qual a inspiração para a morte da personagem Soraya Delia, neta de Emilie, num acidente no Relato?

MILTON HATOUM: Isso aconteceu em minha família. Quando eu era criança, brincava muito com uma prima que era surda-muda, como está no livro. E, um dia, ela saiu correndo para a rua e foi atropelada por um ônibus. Morreu instantaneamente. Foi uma das cenas mais chocantes de minha infância, uma cena que nunca esqueci. Eu me lembro do desespero e da tristeza da mãe dela (minha tia) e dos parentes chorando quando souberam que ela fora atropelada. Eu era muito pequeno, devia ter uns seis anos, mas esse fato ficou muito marcado em minha memória. É um episódio autobiográfico, no sentido de que aconteceu algo parecido à cena do romance. A memória inventa suas versões a partir de um fato do passado.

RC: Como foi a experiência de traduzir Representações de um intelectual, de Said? Com que problemas se deparou?

MILTON HATOUM: Indiquei para o meu editor da Companhia da Letras a publicação de Orientalismo. A editora comprou os direitos do livro e o publicou, em 1992, data da primeira edição, cuja tradução tinha algumas falhas. Há uns dois ou três anos, essa tradução foi refeita e a obra saiu em edição de bolso. A editora publicou outros livros de Edward Said: Cultura e imperialismo, Fora de lugar, Paralelos e paradoxos (com Daniel Barenboim). Eu me propus a traduzir Representações do intelectual. Foi uma tradução que me deu trabalho, porque esse livro, na verdade, são conferências de Said para um programa da BBC de enorme prestígio, as “Reith Lectures”. Essas conferências foram escritas para serem transmitidas. O autor fez algumas alterações para a versão escrita. Então, a dificuldade é que as frases de Said são muito longas e um pouco sinuosas, e isso deu um pouco de trabalho, mas não é tão difícil quanto traduzir ficção. Na ficção, há uma liberdade de estilo, de vocabulário, às vezes uma sintaxe incomum, que dificulta a tradução. Mas eu gostei de ter traduzido esse livro, porque ele fala, basicamente do papel do intelectual no mundo contemporâneo. Ele contextualiza a posição do intelectual no século XX, e as várias formas de representação dos intelectuais, ou seja, como eles se representam a si mesmos e como desempenham a sua função. Edward Said não acreditava na neutralidade política e faz uma abordagem das várias posições ideológicas do intelectual: de direita, conservador, progressista e até mesmo dos intelectuais cooptados, que são muitos. Ele fala também do intelectual engajado, do intelectual sartreano, fala do Julien Benda, e cita vários exemplos de intelectuais nos Estados Unidos, na Europa, no mundo árabe, ou de árabes americanos que venderam sua alma ao diabo por um preço módico, ou muito baixo. Fala também da mídia, da manipulação da imprensa no que diz respeito à política americana, à política expansionista unilateral dos Estados Unidos. E, claro, aborda também a questão palestina.

RC: Tendo em vista seus outros trabalhos como tradutor (Gustave Flaubert e George Sand) e o fato de que a tradução é uma imagem presente no Relato de um certo oriente, qual seria – em sua opinião – o papel do tradutor literário?

MILTON HATOUM: O melhor tradutor literário é um bom escritor. Mesmo que ele não seja um escritor de ficção ou um poeta. Um bom tradutor literário tem que ter primeiro o domínio de sua própria língua, como se ele fosse capaz de escrever a ficção ou o poema que está traduzindo. É importante também contextualizar a obra. Não ler apenas o livro que se vai traduzir, mas os outros livros do autor a ser traduzido. Quando traduzi George Sand e Flaubert, já conhecia razoavelmente a obra desses escritores. Do Flaubert há, inclusive, uma história que data da minha juventude, quando aprendi francês em Manaus, nos anos 1960. Eu era muito jovem e minha avó libanesa falava um pouco de francês, de modo que a língua francesa não era desconhecida para mim. Na minha casa se falava árabe e português, mas quando minha avó nos visitava, ela gostava de praticar a língua francesa. Ela estudara num liceu francófonoem Beirute. Aprendi francês com a esposa do cônsul francês em Manaus, quando eu tinha 12 ou 13 anos. Essa professora me apresentou pela primeira vez os contos do Flaubert, ela lia um trecho de Um coração Simples e depois o traduzia. Era uma maneira também de ampliar o vocabulário. A linguagem de Flaubert tem um lado preciosista, um vocabulário muito preciso e às vezes um pouco raro, sobretudo nos contos e romances ambientados na Palestina e no Norte da África. É um vocabulário incomum. Minha professora usava o texto em francês para discutir e abordar questões gramaticais, como o uso dos tempos verbais (passé simple e passé composé) na linguagem escrita e oral. Eu adorei o conto Um coração Simples. Eu gostei tanto que até uma personagem de Dois irmãos, Domingas, foi inspirada de certa forma pela personagem Félicité (de Um coração Simples.) Félicité é um nome irônico porque era uma empregada doméstica explorada, desgraçada, infeliz e pobre.

RC: Como define hoje “tradução literária”?

MILTON HATOUM: A tradução literária não é uma versão fiel do original. Existem várias teorias. Não sou um tradutor profissional, mas eu li alguns bons ensaios sobre tradução, de Antoine Berman, Valery Larbaud e Walter Benjamin. A tradução tem que transmitir a essência do original, mas ela tem que ser um texto legível na língua traduzida. A tradução ideal é aquela que o leitor percebe que não é uma tradução, que ele não está lendo uma tradução, e sim um original, um texto escrito na sua língua. Então, há graus de fidelidade. Se você tiver uma palavra intraduzível, você deve colocar uma nota de rodapé. Se aparecer uma árvore amazônica, uma árvore que não existe em outro lugar, você deve colocar o nome dessa árvore em língua tupi ou em língua indígena num glossário ou numa nota de rodapé para explicar “essa árvore existe, é nativa da Amazônia, ela é uma palmeira ou uma árvore que dá frutos, etc.” Sem tentar explicar muito, porque também uma tradução com um glossário de dez páginas deve ser chato. Há uma sensibilidade na tradução que é você expressar essa essência do texto original, sem ser exatamente fiel a ele. Uma boa tradução deve ser ao mesmo tempo literal e livre. Berman afirma que a tradução deve passar pela experiência e pela reflexão, pois a tradução, como ele diz, é sujeito e objeto de um saber próprio. Por isso é difícil. É como se fosse um espelho, em cuja superfície se reflete ou se manifesta o que o texto original oculta. A pior tradução é aquela que os franceses chamam de mot à mot, palavra por palavra. Uma boa tradução deve ser ao mesmo tempo inventiva e próxima do significado do texto original, porque você não pode distorcer aquilo que está no original, mas ela tem que fluir. Então o difícil da tradução é esse fluir.

RC: Uma tradução pode transcender a obra original ou, ao contrário, perde algo dela?

MILTON HATOUM: Uma tradução pode, sim, transcender a obra original. Há traduções maravilhosas. Quando um livro não é muito bom, uma tradução faz milagre. Por exemplo, há traduções de romances apenas razoáveis ou sem muita força que às vezes a tradução melhora. Isso acontece muito com livros mais fracos, com narrativas medianas. Agora, quando o livro tem força, quando o romance é uma obra trabalhada, aí o trabalho do tradutor também tem que ser enorme. Então sempre se perde alguma coisa. Porque o original é aquilo que, no limite, é intraduzível. Quando eu leio uma tradução árabe ou russa, sei que eu estou perdendo algumas nuances, mesmo se a tradução for muito boa. O ideal para mim seria ler tudo no original, mas como isso é impossível, como eu não posso ler nem Dostoiévski, nem Elias Khoury no original, eu tenho que confiar nas traduções. Dei exemplos de dois grandes autores que foram muito bem traduzidos para o português. Então a tradução pode transcender o original e sugerir coisas que não existem explicitamente no original. Ela pode dar, às vezes, até mais consistência ao origina.

RC: Quais são os leitores de Milton Hatoum?

MILTON HATOUM: Eu não sei exatamente quem são meus leitores, mas isso também varia de um romance para outro. O meu primeiro romance, Relato de um certo oriente, não alcançou um número muito grande de leitores. É mais difícil de ser lido; o leitor tem que descobrir a voz do personagem e quem está falando. Então, um leitor médio não tem paciência para ir atrás dessas coisas. Por isso, esses leitores do Relato de um certo oriente são mais ligados ao mundo acadêmico e também às escolas. Com o Dois irmãos aconteceu uma coisa interessante: foi um romance que recebeu muitas críticas positivas e, ao mesmo tempo, alcançou um público leitor que transcende o âmbito universitário e acadêmico. Então, hoje, é um livro que deve ter pelo menos uns 150 mil leitores. Para o padrão brasileiro e para um romance que, supostamente, não é comercial, é um número significativo. Não pensei em escrever nada comercial, nem sei exatamente o que é isso. Mas é difícil saber quem são os leitores. Eu encontro todo tipo de leitor, mas poucos são ingênuos. Às vezes, você nem precisa ter muitos leitores, se os seus leitores forem fiéis e se gostarem de literatura...

RC: Em que diferiria a leitura dos seus tradutores das dos outros leitores?

MILTON HATOUM: Os tradutores são leitores muito especiais. Primeiro porque são leitores que já lêem o livro pensando na tradução. Eles têm que ler duas, três, ou várias vezes o livro. Já é uma leitura interessada, uma leitura em filigranas. Esse leitor-tradutor-escritor já tenta perceber desde a primeira leitura as nuances, as sutilezas, e as dificuldades que ele vai ter. Eu tive sorte com muitos tradutores, porque entram em contato comigo. Isso aconteceu com os tradutores do francês, que não é o mesmo dos quatro romances. Michel Riaudel traduziu, para o francês, Cinzas do Norte e Órfãos do Eldorado. Ele é um grande tradutor, assim como Karin von Schweder-Schreiner, que traduziu todos os romances para o alemão. Karin já conhece o meu trabalho, então ela me faz perguntas muito específicas. Nas traduções italiana (de Amina Di Muno) e inglesa (de John Gledson) também aconteceu isso. Com a tradutora do espanhol (da Espanha) eu não tive nenhum contato. Para ser sincero, não apreciei essa tradução. A tradutora não tinha vivência da sociedade brasileira e da língua portuguesa falada e escrita no Brasil. Adriana Kanzepolsky, a tradutora argentina, que mora em São Paulo e é professora da USP, manteve contato comigo. É uma tradução muito mais fluente, muito mais verdadeira que a tradução espanhola (da Espanha). As traduções do Relato e do Dois irmãos publicadas pela editora argentina Beatriz Viterbo são muito consistentes.

RC: Como seus tradutores conheceram sua obra e como é o processo da tradução das suas obras?

MILTON HATOUM: Meus tradutores conheceram minha obra porque lêem a literatura brasileira contemporânea. São sempre tradutores de literatura brasileira e portuguesa, alguns só de literatura brasileira. Eles se interessam pelo que é publicado no Brasil. Eu conhecia alguns desses tradutores, que não são muitos. Conhecia os ensaios de John Gledson, que traduziu todos os meus livros para o inglês, menos o Relato de um certo oriente, que foi traduzido por Ellen Watson, professora do Smith College (EUA). Não há tantos tradutores de literaturas de língua portuguesa. Talvez haja bem menos do que tradutores do árabe, porque o árabe hoje é uma língua que conta com uma tradição do seu ensino na Europa e nos Estados Unidos. Então há vários tradutores do árabe na Europa e nos Estados Unidos, mais do que do português. Quando eu vejo

ivros árabes traduzidos para o inglês, francês, italiano, alemão, percebo que foram traduzidos por diferentes tradutores. Há escolas e cursos de árabe nas universidades da Europa e dos Estados Unidos. E aqui nós já temos também bons tradutores do árabe. Mantenho uma correspondência direta com a maioria de meus tradutores. Respondo a muitas perguntas, tento esclarecer dúvidas, muitas delas sobre expressões da Amazônia, que não são conhecidas em outras regiões do Brasil.

RC: Em que medida o senhor interfere nas traduções?

MILTON HATOUM: Interfiro na tradução na medida em que encontro equívocos, uma distração aqui e ali, palavras de duplo sentido, coisas que o tradutor não percebeu. Posso dar dois exemplos.No Dois irmãos há uma cena em que Domingas, a empregada, segue um dos irmãos (Yakub) e a namorada dele (Lívia) até o quintal da casa. Eles vão se despedir porque Yakub vai viajar para São Paulo. Domingas se aproxima, fica meio amoitada, meio escondida vendo os dois ali, namorando, e ela fica com sede daquela água . A tradução dizia que Domingas queria tomar um copo de água. Então eu observei que a sede daquela água era a sede de desejo, uma sede erótica, sexual. Outro exemplo: no Cinzas do Norte, quando aparece uma nuvem de mosquitos, a tradutora cometeu um equívoco: ela confundiu os mosquitos (inseto) com os índios da tribo mosquitos, o que seria um absurdo no contexto do romance. Então, às vezes, o tradutor cochila, desfalece enquanto está traduzindo. Ou fica um pouco distraído e de repente pula um parágrafo. Isso é comum. Eu já vi isso em várias traduções. Quando você está traduzindo, por distração você não segue a sequência e salta umas frases ou um parágrafo.

RC: Relato de um certo oriente já foi traduzido para que línguas?

MILTON HATOUM: O Relato de um certo oriente foi publicado em 1989. O primeiro país que se interessou em traduzir foi a França. Ele foi traduzido primeiro para o francês, depois para o inglês, italiano, alemão, espanhol. Saíram nesses países da Europa e também na Suíça, em Portugal e nos Estados Unidos. E vai ser publicado em catalão. Há um contrato com uma editora grega que já publicou Dois irmãos, mas não sei em que pé está. Às vezes uma editora compra os direitos de um livro, mas não o publica. Ainda não foi traduzido para o árabe. Há duas edições do Relato em língua inglesa: uma tradução de Ellen Watson para o inglês dos Estados Unidos. Depois John Gledson revisou essa tradução com a própria Ellen, e essa nova tradução saiu na Inglaterra, em capa dura e edição de bolso. A primeira versão americana tem como título The tree of the seventh heaven, “a árvore do sétimo céu”, que é uma frase do livro. Achei estranho esse título. A edição inglesa (Bloomsberry) saiu com o título Tale of a certain orient, que é mais próximo do título original.

RC: Como foi o processo de tradução e qual foi a recepção de Dois irmãos pelo leitor de língua árabe

MILTON HATOUM: Na tradução árabe de Dois irmãos, conversei muito com a tradutora e professora da USP Safa Jubran. Safa é bilíngue, domina muito bem os dois idiomas e traduz nos dois sentidos: do português para o árabe e do árabe para o português. Sei que algumas resenhas e artigos elogiaram a tradução de Safa. Um cineasta disse a ela que parecia um romance escrito por um autor libanês. Essa observação não deixa de ser interessante. Já havia saído no Líbano um artigo sobre o Relato de um Certo Oriente, que um crítico libanês leu em francês e fez uma comparação com o livro de Jorge Amado A Descoberta da América pelo Turcos, sobre os árabes que vieram ao Brasil na época do descobrimento.

RC: Quais são os problemas que podem encontrar os tradutores na construção dos romances de Milton Hatoum, especialmente no Relato de um certo oriente?

MILTON HATOUM: A minha tradutora alemã Karin von Schweder-Schreiner me disse uma coisa interessante : “por trás dessas frases límpidas, aparentemente simples que você constrói, há uma dificuldade imensa. Eu encontro uma dificuldade para traduzir o livro porque, às vezes, para um tradutor alemão, a falta de precisão do português do Brasil pode confundir um pouco e dificultar a tradução ”. A língua portuguesa do Brasil é muito menos retórica. Por exemplo, quando não se usa no começo da frase o pronome pessoal (“ela via, ele disse") o tradutor pode confundir o sujeito da frase. No caso do Relato, deu-me trabalho montar um quebra-cabeça sobre as vozes narrativas, mas nas edições inglesa e francesa está indicada a voz do narrador na abertura de cada capítulo. Essa é uma dificuldade que os tradutores enfrentam. O fato de o português do Brasil ser muito maleável e flexível dificulta o trabalho de tradução, porque nem tudo é muito determinado, os pronomes, o sujeito mesmo, quem fala... O português do Brasil é muito menos retórico do que o de Portugal, que é uma variante que tem muito mais precisão, muito mais exatidão. Você lê um texto em português de Portugal e é quase como se você pudesse traduzir para o português do Brasil, porque seria uma linguagem muito menos arcaizante, muito menos retórica do ponto de vista da sintaxe, da gramática. Então isso pode dificultar um pouco a tradução.

RC: Que tipo de escrita existe em Relato de um certo orientee o que significa “narrador transcultural” na configuração discursiva do Relato?

MILTON HATOUM: O Relato de um certo oriente é como os franceses chamam “um relato de memória”, de tom evocativo. Há uma frase de um personagem no Relato que diz “a vida começa verdadeiramente com a memória”. Ao mesmo tempo, é uma longa carta que a narradora estava escrevendo para o irmão em Barcelona. Seria então um romance epistolar? Não sei. Esse lado transcultural, como muitas vezes foi analisado, reside no fato de o romance se situar em Manaus e ter personagens imigrantes, árabes, judeus marroquinos e às vezes índios.

RC: Por que escreve?

MILTON HATOUM: Para mim a literatura dá sentido à minha vida. São poucas coisas que dão sentido à nossa vida e das poucas coisas a literatura é das mais importantes. Escrevo com desejo, com paixão. Eu escrevo à mão de manhã cedo. Eu sei a que horas eu começo a escrever, mas nunca sei a que horas vou parar. Eu levo muito a sério a literatura, mas eu mesmo não me levo a sério. Não tenho a pretensão de ser um escritor representativo ou das academias. Não tenho nenhuma pretensão ao pedestal, nem à respeitabilidade. O escritor que se leva muito a sério se torna um pouco patético. Não tenho essa pretensão. Os prêmios também não me entusiasmam muito. O que mais me entusiasma é ter bons leitores. Acho que isso é o mais importante. A literatura é apenas um dos modos de você ver o mundo, de você transformar esse mundo através da linguagem. E a literatura cria um mundo paralelo, um microcosmo paralelo. E talvez muito mais coeso, muito mais organizado, e, às vezes, dotado de uma verdade interior mais forte do que a nossa realidade. Então, ela não é uma imitação do mundo, nem um retrato nem um processo mimético do que a gente viveu, mas é a transcendência de tudo isso pela linguagem. A literatura fala basicamente da passagem do tempo, filtra uma experiência do autor, que é transferida para o narrador. Nem tudo que a gente viveu cabe na literatura, então você tem que filtrar essa experiência e dar sentido a ela. Dar sentido com coerência interna, com uma estrutura bem armada. Isso é que é difícil, porque você julga um livro não pelo que o autor é ou pelo que ele fez ou faz ou diz, e sim pela linguagem. Agora, é claro que alguma coisa de mim, da minha vida, está presente nos meus romances e nos contos.

RC: Como passou da narrativa longa (romances e novelas) para a narrativa breve presente em Cidade Ilhada? Como foi a passagem do conto Reflexões de uma viagem sem fim para o romance Relato de um certo oriente? E, finalmente, como foi transformar A natureza ri da cultura no seu último livro a Cidade ilhada?

MILTON HATOUM: Comecei de verdade como contista, só que não publiquei meus contos. Os contos que eu escrevi na década de 1970 foram todos abandonados e depois foram esquecidos; eu joguei tudo fora. Então, o primeiro que eu quis terminar foi Reflexões de uma viagem sem fim, concluído quando o romance foi editado. Reflexões sobre uma viagem sem fim foi a primeira versão do Relato de um certo oriente. Não publiquei esse conto quando comecei a escrevê-lo em 1980. Depois eu voltei para o conto, reescrevi e republiquei dando outro título A natureza ri da cultura, que faz parte do livro A cidade ilhada. É um conto que já foi publicado no exterior com otítulo Reflexões sobre uma viagem sem fim, mas este conto não é o mesmo que está no livro. Quer dizer, é basicamente o mesmo, mas mudei várias passagens e abreviei muita coisa.

RC: Como dialoga com a tradição literária para criar sua escrita?

MILTON HATOUM: Minha tradição faz parte da literatura. Eu comecei lendo livros brasileiros: Vidas Secas, de Graciliano Ramos; Jorge Amado; Os Sertões, de Euclides da Cunha; O Continente, do Érico Veríssimo; depois eu comecei a ler os contos do Flaubert, os contos do Machado de Assis, e aí a literatura é muito vasta, tem muita coisa da França, da América Latina, da Europa, do Mundo Árabe, que era muito carente por falta de traduções. É difícil dizer quem me influenciou. Todos eles influenciam de alguma maneira. É claro que você, às vezes, é influenciado por um autor pelo qual você nem percebe que está sendo influenciado. E, às vezes, por um autor que você nunca leu, para usar uma boutade (ironia) de Jorge Luis Borges, você pode ser influenciado por um livro que nunca leu. Machado de Assis antecipou o que Borges faria meio século depois, mas consta que o escritor argentino nunca leu o brasileiro. É difícil ser original hoje. Borges é muito irônico, com a pretensa originalidade que alguns autores buscam. Depois de algumas centenas de anos de romance moderno, é difícil ser totalmente original. Eu não acredito na originalidade absoluta. Um dos atributos do ser humano é copiar. No começo, você copia e aprende copiando. Depois você tenta encontrar sua própria voz, e é isso que dá sentido à originalidade de um texto.

RC: Como a ditadura militar dos anos 1970 é abordada em seus romances Dois irmãos e Cinzas do Norte?

MILTON HATOUM: A ditadura e o quadro histórico são apenas panos de fundo desses dois romances, porque nenhum dos dois é um romance histórico, nem um romance político. Mas esse pano de fundo existe e é importante até para contextualizar a narrativa. Faz parte também da minha vida, da minha geração, que vivenciou essa época, que cresceu durante o regime militar, sobretudo no Cinzas do Norte, onde há as relações do pai de Mundo com os militares, relações muito fiéis e comprometedoras. Então, alem do conflito com o pai, o personagem Mundo esbarra na relação do pai com os militares. É uma dupla tirania, a do pai e a do país, isso é importante nesse romance. Mundo se depara com um ambiente adverso em Manaus, onde o pai, a província e o regime militar o oprimem. Ele é um “estranho” em sua própria terra. Mas anos depois, quando mora em Berlim e Londres, ele se torna um autoexilado, um expatriado com pouca interlocução, e cerceado pela imagem sufocante do pai. É um estrangeiro, sem eira nem beira, pois não desfruta da herança de Jano. De certo modo, ele faz o percurso que alguns da minha geração fizeram: de Manaus (ou qualquer outra cidade periférica), para o Rio ou São Paulo e depois para a Europa. No Dois irmãos, a ditadura militar está presente, há a morte de um poeta, um professor de francês assassinado pela repressão. Um dos irmãos acredita na política desenvolvimentista, no progresso a todo custo, acredita nessa enganação que foi o regime militar, o milagre econômico. Então, são coisas importantes para os livros, mesmo porque o romance precisa trabalhar com o sentido da história. O romance não pode ser uma coisa totalmente solta no tempo.

RC: Como cidadão, qual sua opinião sobre a política e a democracia nos países árabes hoje?

MILTON HATOUM: Do ponto de vista geopolítico, Egito e Arábia Saudita são os países mais fortes do Mundo Árabe. O caso do Egito, sendo o maior país árabe (ou dividindo essa grandeza territorial com a Argélia), é mais complexo porque os interesses de Israel e dos Estados Unidos são muito grandes ali. Acompanhei a vergonhosa restrição do regime no Egito à passagem de mantimentos básicos (alimentos e remédios) para a população palestina em Gaza. Trata-se de uma ditadura que serve aos interesses da política americana. O povo egípcio quer um regime democrático, mas será que as forças armadas querem? O ex-presidente Sadat, e o atual vieram das forças armadas. É muito imprevisível se as forças armadas do Egito vão aceitar o filho dele como sucessor, ou se haverá um golpe de Estado no interior das forças armadas. Os palestinos elegeram um governo democraticamente, mas a “comunidade internacional” não aceita o Hamas. Acho que um governo democrático na Palestina incomoda a autocracia do Egito. Para os Estados Unidos e Israel é conveniente que haja no Egito um regime autoritário, pró-israelense e pró-americano. É vergonhosa e totalmente hipócrita essa aliança estratégica da política externa do governo americano com as ditaduras no Mundo Árabe. O governo de George W. Bush quis instaurar a democracia ao Iraque e, no entanto, os aliados árabes dos Estados Unidos são governos autoritários, com a exceção do Líbano, cuja democracia é frágil. Bom, essa história de levar democracia a um país rico em petróleo é pura balela. Como disse Robert Fisk: “Se o Iraque fosse o maior produtor de batatas, o governo de G.W. Bush não teria invadido e ocupado o país.”A Europa é dividida quanto à política no Oriente Médio: a França não tem a mesma posição que a Inglaterra, mas ambas foram potências coloniais e são também responsáveis por essas atrocidades. A Espanha não tem a mesma posição que os Estados Unidos e me parece que é o país europeu mais comprometido com a paz na região.A gente vê hoje isso como algo que lembra muito o regime militar no Brasil e na América do Sul. Cedo ou tarde a democracia vai chegar ao Mundo Árabe, mas não será uma democracia imposta, os povos árabes vão conquistá-la. A tendência é esses países se democratizarem, mas será uma democracia a custo de muita luta. Conheço a militância da feminista egípcia Nawal al Saadawi2 que lidera corajosamente um movimento de liberação das mulheres contra este regime. E me encontrei em dois eventos literários (em Nova Iorque e Berlim) com o também escritor egípcio Alaa Al Aswani3 . Alaa é corajoso, como tinha sido Naguib Mahfouz, que criticou os radicais islâmicos e pagou caro por isso.

RC: E quais são os seus contatos com o Líbano?

MILTON HATOUM: Tenho parentes no Líbano, país que visitei com meu pai em 1992 e que ele não visitava havia mais de 30 anos. Então foi uma viagem muito emocionante porque eu conheci o país dele; conheci muitos parentes, primos, tios. Há dezenas de familiares em Beirute. Infelizmente não falo árabe, mas na temporada que passei no Líbano viajei por vários lugares do país e conheci muitas coisas. Já não era o Líbano de que meu pai falava, mas é um país muito bonito, com uma grande diversidade cultural e uma história que se assemelha a um palimpsesto. Os libaneses têm várias origens étnicas, e nisso se parecem com os brasileiros. São povos híbridos e, no caso do Líbano, a religião ocupa um papel importante na política e na distribuição do poder. Em minha opinião, um Estado deve ser laico. Naquele ano (1992) foi triste ver Beirute em ruínas. A cidade já foi reconstruída, mas o que eu vi foi uma paisagem depois de uma guerra. É uma coisa terrível. Conheci Sabra e Chatila, andei pelos acampamentos palestinos; fui ao Sul do Líbano, até onde pude. Conheci a aldeia do meu avô paterno. Fui à Trípoli, ao Norte, enfim, eu conheci muita coisa do país. Foi uma viagem de conhecimento e também afetiva. Uma espécie de descoberta do meu passado mais ancestral. O Líbano é um pequeno recorte do Mediterrâneo com muita área verde, montanhas, e sem região desértica. O clima é maravilhoso, pois combina a temperatura à beira-mar (Mediterrâneo) com um clima mais temperado das montanhas. O Mundo Árabe se parece com o Brasil. Existe uma informalidade nas sociedades árabes que lembra um pouco o Brasil, e o modo de ser brasileiro. É uma coisa meio informal, ou às vezes um pouco caótica. Talvez a gente deva isso a um passado muito distante, ibérico.

RC: Para concluir: quais os projetos que tem em mente?

MILTON HATOUM: Estou organizando e selecionando algumas crônicas para um livro que pretendo publicar. E há três anos escrevo um romance. Escrevo outras coisas, relatos que podem ser contos, crônicas ou ficções. O gênero não importa, é a linguagem que interessa na literatura.

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