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Grandes entrevistas

Mo Yan

Primeira entrevista, após receber o Prêmio Nobel de Literatura, publicada en El País, de 3/3/2013 e republicada (traduzida) no site http://www.revistabula.com

 

Em entrevista, pela primeira vez, após receber o Prêmio Nobel de Literatura, o autor chinês Mo Yan, controvertido em virtude de suas proximidades com o regime. Ele faz autocrítica, mas antes de tudo critica seus críticos.

Mo Yan trajava um terno à la Mao em cuja lapela grudava um distintivo vermelho. Parecia um emblema do Partido Comunista, mas tratava-se apenas de seu nome. Em Estocolmo, ele proferiu uma conferência, a conferência Nobel que todos os laureados com o Nobel da Literatura, o mais importante prêmio literário do mundo, são obrigados a proferir.

Isso foi em 7 de dezembro de 2012 e o chinês — que com voz maviosa, quase cantante, proferia o seu discurso — era visto como uma decepção. Ele havia escrito livros maravilhosos, isso sim. “A Revolução do Alho” (“Die Kno­blauchrevolution”), “Tédio” (“Ü­berdruss”), voluminosos romances de família, narrados em colorida exuberância, os quais bem poderiam ser livros de história que tratam do desenvolvimento da China nas últimas décadas, da pobreza de épocas passadas, das durezas da Revolução Cultural e da arrancada do crescimento econômico. Apesar de toda a crítica ao Partido Comunista e a seus quadros, que fica claro em seus livros, o autor é visto como um homem leal ao regime.

Mo Yan, com 58 anos, é membro do Partido Comunista (PC) desde 1979. Fez carreira no exército e é hoje vice-presidente da Associação dos Escritores do Partido Comunista.

Seus leitores há muito se admiram sobre essa discrepância: a inequívoca crítica em sua obra contra o Estado chinês e a adaptabilidade de suas aparições públicas. De acordo, divididas foram também as reações por oportunidade do anúncio do Prêmio Nobel. Dissidentes chineses, como o escritor Liao Yiwu, reagiram “perplexos” e escritores alemães, como Martin Walser, acentuavam que Mo, “sem qualquer dúvida, estaria acima de qualquer afetação”.

Mo Yan pessoalmente contribui pouco a fim de se esclarecer. Nega solicitações para entrevistas de todo o mundo. Na conferência de imprensa em Estocolmo, pouco antes da entrega do Prêmio, Mo Yan provocou mais um escândalo: O autor disse que a censura na China é “um mal necessário”, ao que comentaristas de todo mundo reagiram indignados.

Mo Yan nasceu em 1955, em Gaomi, no leste da China. Mo Yan é pseudônimo, seu verdadeiro nome é Guan Moye. Seus pais eram agricultores. Entre 1959 a 1961, Mo Yan passou pelo período da “Grande Fome”, resultado de uma política agrícola fracassada em virtude da qual milhões de chineses morreram de fome. Com a idade de 12 anos, Mo teve de abandonar a escola, pois sua família era vista como politicamente não confiável. Em seguida foi guardador de rebanhos e trabalhador na produção agrícola de algodão.

O narrador de seu novo romance, “Rãs”, tem fortes traços autobiográficos. Também ele, o narrador, vem de uma família de agricultores de Gaomi; também ele entra nas fileiras do exército e vacila entre adaptação e remorsos. O narrador tem uma tia que é médica ginecologista, outro detalhe autobiográfico. É ela a figura principal do romance, que implementa brutalmente a “política de um filho só”. No enredo nunca fica claro porque ela, apesar de todas as humilhações, permanece tão leal ao Partido. Quem vive em estruturas autoritárias arrisca-se muito quando procura se defender. Eis aí a mensagem dos livros de Mo Yan e esta tem muito a ver com a atual realidade chinesa.

No entanto, um laureado com o Nobel goza de certa proteção. Um laureado com o Nobel pode manifestar-se, arriscar algo. Afinal, chega até ser um dever seu.

Sr. Mo, seu pseudônimo literalmente significa “Não Fale”. Aparentemente o sr. leva isso muito a sério. Por que o sr. receia o contato com o público, especialmente com jornalistas?

Porque sinto enormes dificuldades em dar depoimentos políticos. Sou um escritor que escreve com pressa, mas sou um pensador que pensa de forma profunda. Sempre quando falo em público pergunto-me, logo a seguir, se tenho me expressado bem mesmo sabendo que minhas opiniões políticas são precisas, bem claras. Podem ser lidas em meus livros.

Seu novo livro, com o título “Rãs”, descreve as consequências da política de “um filho só” da China. Qual é a sua opinião sobre esse tema, que todavia afeta pessoalmente mais de 1 bilhão de pessoas?

Como pai penso que qualquer indivíduo deveria ter tantos filhos quantos quiser. No entanto, como oficial, eu tinha de me submeter as prescrições que eram válidas a todos os servidores do Estado: um filho e nada mais. Não é fácil resolver o problema populacional da China. No entanto, estou totalmente convencido de uma coisa: ninguém deverá ser impedido à força de querer um filho.

Mas é exatamente isso que se repete inúmeras vezes em seu romance. O que existia no início desse livro: seu posicionamento pessoal ante a política de “um filho só” ou uma cena isolada, um personagem, uma figura ou um diálogo?

O que existia era a biografia épica de uma de minhas tias com uma vida mais do que realizada, que por algumas décadas trabalhou como médica para senhoras e presenciou coisas incríveis. Eu sentia uma pressão interior em pôr em papel essas vivências.

Em seu romance, essa médica para senhoras é uma figura monstruosa, que se sente perseguida por seus atos. Como a sua tia reagiu ante ao livro?

Ela não o leu. Recomendei estritamente a ela que não o lesse. “Você vai se irritar comigo quando o leres.” Obviamente, nem tudo em “Rãs” se refere à história de minha tia. No mais, ela mesmo tem quatro filhos. Além disso, o enredo também inclui experiências de outros médicos, experiências que eu pessoalmente presenciei.

Também em seus outros livros aparecem coisas exorbitantes. Em seu romance “A Revolução do Alho”, uma mulher grávida enforca-se quando as dores do parto já se manifestavam. Mas “Rãs” é provavelmente o seu livro mais emocional, mais pesado. O sr. trabalhou dez anos nesse texto. Por quê?

Andei com esse enredo na cabeça por muitos anos e é correto que me senti oprimido, com um peso enorme, enquanto o redigia. Penso que “Rãs” é um livro autocrítico.

Não entendi. O sr. poderia explicar melhor isso? Afinal, o sr. não tem nenhuma culpa pela violência empregada nos abortos que o sr. relata.

A China, nesses últimos anos, passou por processos de transformação tão grandes que isso faz com que quase todos nós nos sintamos como vítimas. Ninguém, no entanto, se pergunta a si próprio se não se comportou como autor do crime, se não transgrediu ou violou algo ou alguém. Essa questão, essa possibilidade de pensamento, é abordada em “Rãs”. Eu, por exemplo, talvez tenha tido apenas 11 anos — mas no tempo da Revolução Cultural eu era soldado do Exército Vermelho e participei da crítica pública de meus professores. Eu sentia inveja da eficiência dos outros, de seus talentos e da sorte que tinham. E em consideração ao meu futuro eu coagi a minha mulher a um aborto. Eu sou culpado.

Suas obras descrevem um retrato amargo da China moderna. No entanto, em seus romances, nem os seus personagens, nem a sociedade e nem o próprio país parecem desenvolver-se.

No que diz respeito a esse particular, sou quase antichinês. Dramas e histórias chinesas costumam ter um final positivo. A maioria de meus livros tem um fim trágico. Mesmo assim eles falam de esperança, dignidade e força de vontade.

Seus romances podem ser lidos como filmes nos quais o sr. evita o contato visual com a psique de seus personagens. Por que, por exemplo, a médica de senhoras aferra-se acirradamente aos princípios do Partido mesmo ela sabendo das ambiguidades da credibilidade dele?

Isso faz parte da experiência espiritual de minha geração. Muitos reconheceram a Revolução Cultural como erro do Partido, mas eles reconheceram também que o Partido corrigiu esse erro.

E o sr., o que pensa acerca disso? Também o sr. teve de interromper sua educação durante a Revolução Cultural — e, mesmo assim, continua a ser membro do Partido?

O Partido tem 80 milhões de membros, um desses 80 milhões sou eu. Filiei-me ao Partido em 1978, quando prestava meu serviço militar na Armada de Libertação do Povo, e só posteriormente compreendi que a Revolução Cultural era obra de apenas alguns poucos líderes do Partido. A Revolução Cultural não tinha nada a ver diretamente com o Partido.

Em seus livros, o sr. critica radicalmente funcionários do Partido Comunista e seus trabalhos, mas em seus depoimentos políticos, também com as suas declarações aqui, o sr. está sendo bastante benigno em relação àqueles funcionários. Como é que o sr. explica essa discrepância?

Não há discrepâncias em relação à minha postura política quando critico arduamente funcionários do Partido. Nunca cansei de repetir que me sinto como escritor das pessoas e não como escritor do Partido. Detesto funcionários pú­blicos corruptos.

O escritor chinês Liao Yiwu, que no outono passado foi agraciado com o Prêmio da Paz do Comércio Livreiro da Alemanha, em entrevista concedida ao “Der Spiegel”, critica o sr. como sendo um poeta do Estado e que o sr. não estaria mantendo distância com o Partido.

Confesso que li essas declarações bem como o seu discurso por oportunidade do Prêmio da Paz do Comércio Livreiro. Nesse discurso, ele proclama a divisão do Estado chinês. Não posso, absolutamente, apoiar tal ideia, pois não consigo acreditar que os moradores de Sichuan [lugar de procedência de Liao – Red] queiram separar sua província do Estado chinês. Tam­bém estou convencido de que nem os pais de Liao Yiwu querem isso. Não posso nem mesmo imaginar que ele próprio, lá do fundo de seu coração, concorda com aquilo que ele disse. Eu sei que Liao tem inveja do prêmio que recebi. Eu entendo isso. Mesmo assim sua crítica à minha pessoa é injusta.

A qual crítica em particular o sr. se refere?

Ele, por exemplo, me acusa de ter louvado Bo Xilai…

Aquele ex-chefe do Partido de Chongqing que está na prisão aparentemente por corrupção…

… em uma de minhas poesias. O contrário é verdade, fui sarcástico, escrevi uma poesia satírica. Permita-me escrevê-la mais uma vez. (Mo Yan pega um bloco e começa a escrever):

Canções vermelhas entoam,
surras contra os negros magoam
O país todo olha para Chongqing.

Enquanto a aranha branca realmente tece uma teia
o cavalo preto com diarreia não é um jovem revoltoso.

Como poeta não se é nem da direita nem da esquerda.

No outono de 2011, um amigo meu de Chongqing pediu-me uma caligrafia assim como nós, entre os poetas, frequentemente as trocamos. Enviei-lhe essa poesia e ele respondeu: “Não sei se devo rir ou chorar”. Muitos nesse país, na época, louvavam o chefe do partido Bo por sua luta contra os negros, isto é, a Máfia, e pelo fato de ele permitir cantar “canções vermelhas”. Muitos autores foram solicitados a fazer o mesmo. Com “aranha branca”, eu me referi à juventude chinesa que, durante todo o dia, está na rede, isto é, na internet e realmente desmascara criminosos, os funcionários corruptos. O cavalo preto com diarreia refere-se àqueles que só louvam intelectuais. Em seguida segue uma solicitação minha a meus amigos escritores, de não se ligarem aos da direita nem aos da esquerda, mas escrever em nome do indivíduo [do homem em si — nota do tradutor).

O sr. diz que os seus críticos interpretaram essa poesia conscientemente de forma errada, a fim de colocar o sr. como amigo de Bo Xilai?

Meus adversários são, na maioria, escritores, isto é, indivíduos que também fazem poesias. Eles sabem perfeitamente que essa minha poesia é uma sátira. Mas desde que recebi o Prêmio Nobel todos olham com uma lupa sobre meus erros e invertem o sentido de minhas poesias.

Uma das principais críticas de dissidentes chineses é a de que o sr. tem contribuído para um livro no qual é glorificado o ominoso discurso de Mao Tsé-tung em Yan’an, um discurso de 1942, com o qual Mao marcava os limites dentro dos quais deveria se escrever no futuro.

Esse discurso hoje é um documento histórico que contém alguns elementos razoáveis, mas também alguns erros. Quando eu e a minha geração começamos a escrever, ampliamos e ultrapassamos gradativamente os estreitos limites que nos tinham sido impostos. Quem tem consciência e ler os meus textos daquela época não poderá afirmar que eu não tenha feito uso da crítica.

Mas por quê, afinal, o sr. contribuiu nesse livro?

Falando francamente, isso foi ideia de um editor, amigo meu de longo tempo. Ele já tinha convencido mais de cem autores e, durante uma conferência, ele andou pela sala, com um livro e uma caneta à mão, e pediu também a mim que copiasse um parágrafo do discurso de Mao. Eu perguntei: “O que devo escrever?” Ele respondeu: “Aqui, escolhi esta passagem”. Fui vaidoso demais ao fazer isso. Quis impressionar com a minha caligrafia.

Em seu romance “Tédio” (“Überdruss”) um de seus protagonistas deixa cair um emblema de Mao Tsé-tung numa latrina e em sua obra autobiográfica “Change” o sr. relata como usava estatuetas de Mao para afugentar os ratos de seu dormitório. Por que o sr. ousa tal quebra de tabu em seus livros, mas teme abordá-los em público?

O sr. acha que sou cauteloso em lugares públicos? Nesse caso, eu não deveria ter concordado com esta entrevista. Sou um escritor e não um ator. Quando redigi essas cenas jamais pensei em quebrar um tabu. Caso tenha conseguido mostrar com isso que Mao foi apenas um homem, então estou satisfeito. Quando eu era jovem, pensei que ele era Deus.

Hoje o sr. é vice-presidente da Associação Chinesa de Escritores. É possível ser isso na China sem estar próximo do Partido?

Este é um título honorífico que nunca incomodou ninguém antes de eu receber o Prêmio Nobel. Mas tem gente por aí que acha que um detentor do Prêmio Nobel fundamentalmente tem de ser oposicionista. É isso mesmo? Essa gente não se interessa sobre aquilo que afinal escrevo. Não deveria o Nobel da Literatura ser para a Literatura, sobre aquilo que alguém escreve?

Mas na China pessoas estão sendo perseguidas e encarceradas por aquilo que escrevem. O sr. não sente obrigação de usar sua distinção, seu renome, para empenhar-se a favor desses autores?

Já disse publicamente que espero que Liu Xiaobo possa recuperar a sua liberdade o quanto antes possível. Mesmo assim, imediatamente fui atacado e coagido a repetir e repetir sempre de novo as mesmas coisas sobre o mesmo assunto.

Em 2010, Liu recebeu o Prêmio Nobel da Paz. Empenhar-se sempre de novo a seu favor causaria maior impressão do que uma única menção.

Esses rituais repetitivos lembram-me da Revolução Cultural. Eu falo quando quero. E quando não quero nem mesmo uma faca em minha garganta iria conseguir que eu fale.

Entre os seus críticos, encontra-se também na Alemanha o bastante conhecido artista plástico Ai Weiwei.

O que ele andou falando sobre mim?

Também ele acusa o sr. de ser um poeta do Estado. Ele disse que o sr. “decolou” e estaria fora da realidade desse país e que, como intelectual, não apto para representar a China.

A maioria dos artistas na China não são eles artistas do Estado? Muitos detêm cargos de professores, outros escrevem para jornais do Estado. E qual o intelectual que pode afirmar de si que representa a China? Eu não posso afirmar isso! E Ai Weiwei, pode? Eu penso que a China só pode ser representada lá fora por aqueles que chafurdam com as mãos na lama e fazem o asfaltamento de nossas estradas.

O sr. não só é membro do Partido. O sr. repete, sempre de novo, que segue acreditando na utopia do comunismo. Seus livros não comprovam, peça por peça, que o comunismo não funciona? Não seria razoável despedir-se dessa utopia?

O que Marx escreveu no “Manifesto Comunista” é de grande beleza. No entanto, parece-me bastante difícil, transformar esse sonho em realidade. Por outro lado, vejo por exemplo, os países da Europa, especialmente os do Norte da Europa, Estados sociais de abastança, e pergunto-me: esses Estados, essas sociedades, são elas imagináveis sem Marx? De alguma forma, o Marxismo salvou o capitalismo, pois quem realmente tirou proveito dos benefícios dessa ideologia são essas sociedades do Ocidente. Nós, chineses, russos e demais europeus do Leste, interpretamos Marx de forma errada.

Um de seus grandes admiradores é o escritor alemão Martin Walser. Ele diz que seus livros são “orgias em exatidão, brutalidade e beleza”.

Também eu tenho grande respeito por Martin Walzer. Li todos os seus livros que foram traduzidos para o chinês. Ele é um autor que reflete muito e que nos explicou, de forma bem compreensível, a mentalidade dos alemães após a 2ª Guerra Mundial. Sinto-me honrado em saber que ele aprecia meus trabalhos. Sou de opinião de que ele é um dos autores alemães especialmente predestinados para receber o Prêmio Nobel. Günter Grass, cujos livros também aprecio, já foi laureado com o Nobel. Li também os textos de Herta Müller que foram traduzidos para o chinês e acho alguns deles excelentes.

Diferentemente do sr., Günter Grass de forma alguma tem problemas em brigar publicamente com seu governo.

Acho isso muito bom e admiro-o bem como a outros autores que têm o poder da palavra para lançar-se publicamente em tais discussões. Eu não tenho esse poder da palavra. Francamente: eu tenho medo de falar em público.

Para o sr., os procedimentos em Estocolmo devem ter sido uma tortura.

Assim foi. Durante todo o tempo carreguei um pau de madeira em minhas mãos.

x.x.x

Mo Ian

Entrevista extrída publicada no site http://www.diariodocentrodomundo.com.br  em 17/10/2012

A revista digital americana Humanities entrevistou o escritor chinês Mo Yan alguns meses antes que ele se tornasse Nobel de Literatura de 2012. É uma conversa reveladora sobre um escritor que, embora de fama internacional, é inteiramente desconhecido dos brasileiros. Nem um único livro de Mo — na China o nome da família vem primeiro — foi editado no Brasil. Pedimos autorização para publicar a excelente entrevista abaixo, traduzida por Camila Nogueira.

Mo Yan é um pseudônimo. Qual é o significado em chinês e o que representa para você? O uso de um pseudônimo o ajudou a narrar sua própria vida, assim como a vida de seu país?

Mo Yan – Em chinês, Mo Yan significa ‘não falo’. Eu nasci em 1955. Na China, nessa época, a vida das pessoas não era normal. Então meu pai e minha mãe me disseram para não falar lá fora. Se você falasse lá fora, e dissesse o que pensa, iria se prejudicar. Então escolhi Mo Yan como meu pseudônimo. É irônico que eu o tenha escolhido porque agora falo por todo lugar.

Sua carreira de escritor começou logo depois do fim da Revolução Cultural Chinesa terminou. O que esse novo período significou para os escritores chineses e para você?

Mo Yan – Sem essa nova era na China, eu não teria minha escrita. A modificação que ocorreu nos anos 80 me deu a oportunidade de escrever muitos livros. Antes de 1980, os escritores chineses eram intensamente influenciados pelos escritores soviéticos. Durante os anos 80, passaram a ser  influenciados pela literatura europeia e americana. Por experiência própria, afirmo que as reformas foram acontecimentos maravilhosos para a China.

Você foi descrito, algumas vezes, como um “realista mágico” e comparado com autores como Franz Kafka. Ao mesmo tempo, é considerado um realista social, que nos Estados Unidos pode sugerir uma influência de William Faulkner ou de John Steinbeck. Ou seria preferível discutir seus laços com os clássicos chineses?

Mo Yan – Acho que meu estilo é parecido com o do escritor americano William Faulkner. Aprendi muito com os livros dele. Mas meu estilo combina diversas influências. Eu vivi no interior até os vinte e poucos anos. A literatura do povo e os contadores de histórias me influenciaram enormemente. As histórias que minha avó, meu avô, os velhos, meu pai e minha mãe me contaram mais tarde se tornaram recursos de pesquisa. Jornada para o Ocidente e Sonhando com a Câmara Vermelha  foram clássicos chineses que também me serviram como influência.

[Em um discurso no dia anterior ao da entrevista, Mo Yan afirmou: “Em 1984, em uma noite invernal na qual nevava muito, peguei um livro de Faulkner – O Som e a Fúria. Eu li uma versão chinesa traduzida por um tradutor famoso …  as história que ele escreveu eram sobre sua cidade natal e sobre a zona rural. Ele encontrou um condado que você não pode nem mesmo encontrar em um mapa. Embora tal condado seja muito pequeno, é representantivo. Isso fez com que eu percebesse que, se um escritor que estabelecer a si mesmo, deve estabelecer sua própria república. Ele criou seu próprio condado, assim como eu criei uma vila no nordeste da China, com base em minha própria cidade natal, e estabelecendo nela meu domínio. Após Faulkner, ocorreu-me que minha experiência própria, minha própria vida naquela pequena vila, isto tudo  poderia se tornar história e literatura. Minha família, as pessoas que conheço, os moradores da vila – todos eles podem se tornar meus personagens”.]

Seus romances colocam-se em oposição à história. Por quê?

Mo Yan – Meus primeiros romances descreviam a vida na China nos anos 30. Embora eu estivesse escrevendo livros históricos, tinha um olhar de escritor moderno, ideias e pensamentos sobre o passado vindos de alguém de hoje em dia. A história em meus romances é recheada com meu próprio caráter, meu próprio temperamento. Eu sempre tive alguma divergência com, digamos, os fatos históricos. Meus leitores devem obter literatura, não história – história árida – de meus livros.

Hoje em dia parece que a história da humanidade é escrita mais através da literatura e do drama do que pela narração histórica. Você acha que, em alguns séculos, será um recurso para historiadores

Mo Yan – No futuro, suponho que as pessoas que estudarão história irão ler os livros de história de verdade. Mas, se você quiser saber sobre uma época muito distante e sobre o que as pessoas sentiam, suas vidas cotidianas, então deverá pesquisar esse tipo de coisa na literatura. Se as pessoas ainda lerem livros em algumas centenas de anos, elas poderão descobrir tudo sobre a vida cotidiana das pessoas. Os livros históricos têm foco nos eventos e nos tempos, mas a literatura tem um foco maior na vida e sentimento das pessoas.

Você escreveu um romance  em quarenta e dois dias com um pincel em vez de um computador. Teria sido diferente se tivesse escrito em um computador?

Mo Yan – Um computador teria me atrasado, porque quando uso um sou incapaz de me controlar. Sempre pesquiso  para encontrar mais informações. Quando uso um computador, a entrada é pelo pinim [pinim é um sistema que romaniza as letras chinesas]. É diferente do uso de caracteres porque limita seu vocabulário. Então pensei que, se só usasse meu pincel e minha própria letra, algo bom sairia de mim. Outra razão é que ouvi que a caligrafia das pessoas, especialmente dos famosos, pode valer um bom dinheiro no futuro. Então vou deixar para minha filha. Talvez ela consiga um dinheirinho.

Quando alguém pensa em humor, não há nada mais difícil do que passá-lo para páginas. E é particularmente difícil quando você está falando ou escrevendo sobre eventos desagradáveis. E, ainda assim, o humor pode falar para a alma de modo mais revelador do que declarações do fato. Você considera o humor como sua maior força?

Mo Yan – Se você quer descrever um sentimento, como dor e sofrimento, você pode usar palavras dolorosas ou pode usar palavras humorísticas. Acho que a maior parte dos leitores prefere ler frases bem humoradas sobre uma vida dolorosa. Não importa o quão difícil fosse nossa vida, as pessoas no meu vilarejo usavam um grande senso de humor para lidar com a aspereza da vida. Eu aprendi tudo isso dessas pessoas.

Você disse que a salvação de um escritor já estabelecido é a procura pelo sofrimento. O sofrimento é diferente na China de hoje em dia, quando comparada aos tempos antigos?

Mo Yan – Acho que, desde os humanos estejam vivendo, há dor. Eu sofri bastante quando era pequeno porque não tínhamos comida o suficiente, nem roupas o suficiente – foi uma época bem difícil. Eu falo para a minha filha: “Veja o que eu tinha na minha infância; agora você tem tudo. Então por que se sente triste? Por que sofre?” Ela me respondeu:“Você acha que só porque pessoas têm o suficiente para comer e tem roupas elas não tem o direito de ser felizes? Nós temos tantas tarefas, temos que passar em tantas provas difíceis, e não conseguimos encontrar o namorado certo. Acho que esses sofrimentos são ainda piores do que passar fome”. Então acho que, enquanto houver humanos, a dor e o sofrimento de seu coração e sua mente estarão lá. A literatura serve para mostrar para as pessoas que o sofrimento sempre estará lá.

Qual é o estado atual da literatura chinesa, e em que direção você acha que ela está indo?

Mo Yan – As pessoas acham que os anos 80 foram a era de ouro da literatura chinesa. Até mesmo um romance curto ganhava atenção de todo o país. Durante os anos 90, era tudo sobre finanças e negócios. Após a internet entrar na China, todos os jovens começaram a passar a maior parte de seu tempo online. O número de pessoas que liam a literatura em si passou a diminuir: há mais estilos alternativos de escrita do que nunca. Acho que é seguro falar que, agora, muitos jovens estão escrevendo e que há muitos, muitos estilos diferentes. A situação agora é mais como nos Estados Unidos e na Europa. Uma coisa notável é que muitos jovens passaram a publicar seus romances online. A China tem 300 milhões de pessoas publicando em seus próprios blogs. Os artigos são muito legais, muito bons.

Deixe-me terminar notando que a maior parte dos americanos lêem os livros chineses traduzidos. Você trabalhou com um tradutor literário chamado Howard Goldblatt, que traduz muito graciosamente. Mas existem coisas que, na translação entre duas linguagens muito difíceis, mandarim e inglês, se perdem?

Mo Yan – Na literatura, tenho certeza de que, quando alguma linguagem é traduzida para outra, algumas coisas vão ser perdidas na tradução. Tenho sorte por meus livros serem traduzidos por aquele cavalheiro, que é um especialista famoso e influente na literatura chinesa. Ele é meu amigo há muitos anos, então conhece muito bem meu estilo.

 

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