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Grandes entrevistas

 

Olga Savary

Entrevista de Marina Caruso, publicada na revista Marie Claire, nº ? de 16/06/2011.

Primeira mulher do país a publicar um livro de poesias eróticas, Olga Savary, 77 anos, pensa muito em sexo. Musa do poeta Drummond e de artistas como Siron Franco, ela é uma espécie de Monalisa de Copacabana. Atrás do sorriso enigmático, guarda retratos e poemas de admiradores famosos e histórias picantes, profundas e divertidas

 

Olga Savary é o retrato de um Brasil que pouco valoriza sua cultura. Primeira mulher do país a publicar um livro de poesias eróticas e a se dedicar à escrita de haicais (a sintética poesia japonesa), a escritora paraense tem em seu currículo 20 livros, mais de 40 prêmios de literatura — entre eles, dois Jabutis — e traduções de Pablo Neruda, Julio Cortazar e Mário Vargas Llosa. Mas vive com um salário mínimo por mês, espólio risível dos anos em que trabalhou na Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro. “No Brasil, poeta morre de fome. Mas sou apaixonada por este malandro chamado Literatura e não viveria sem ele”, diz. Para falar desta e de outras paixões, Olga recebeu Marie Claire em seu apartamento, no Rio de Janeiro. E, antes disso, por telefone, questionou a competência desta jornalista. “Tem certeza de que quer me entrevistar?”, perguntou. “Não suporto jornalista que escreve ‘pra’ em vez de ‘para’.” Dois encontros depois, bem mais à vontade, Olga falou sobre a amizade amorosa construída com Drummond, a dor de ter perdido um filho para as drogas e a descoberta tardia de sua sexualidade. Para Ferreira Gullar, fã e amigo de Olga, é justamente o fato de “viver às voltas com as contradições mais profundas da existência” que faz dela uma grande poeta, capaz de falar do sexo com uma “cautela de veludo”.

Marie Claire  Adélia Prado disse que, quando leu Clarice Lispector pela primeira vez, pensou: “Essa mulher é tão boa que parece um homem”. Você, que tem uma literatura tão feminina, concorda com ela?


Olga Savary  Clarice é o maior escritor do Brasil. E digo escritor, no masculino, porque ela é o maior entre homens e mulheres. Mas dizer que a literatura de qualidade é coisa de homem não tem cabimento.

MC  Na sua opinião há uma literatura feminina e outra masculina?


OS  Há homens que, de tão delicados, escrevem como mulheres. E mulheres que, por sua vez, escrevem como homens. O Jorge Amado, em 1974, para me elogiar, disse que eu escrevia como homem, mas eu o corrigi: “Não escrevo como homem, mas como uma mulher forte, sem melindres”. Ele falou com a melhor das intenções, mas achei bom reforçar que a mulher pode, sim, ser vigorosa.

MC  Quando você começou a escrever Magma, o primeiro livro de poesia erótica feito por uma brasileira, qual foi sua inspiração?


OS  Lancei o Magma em 1982, mas os poemas já estavam na minha cabeça, fermentando, havia anos. Só concluí o livro quando fui passar um fim de semana com a Hilda [Hilst, escritora] na fazenda dela, em Campinas, e fiquei um mês. Eu gostava tanto da poesia dela que decidi organizar sua antologia. Mas Hilda não trabalhava aos domingos e, durante a semana, mergulhava na sua escrita. Então, eu, que me desespero se não escrever, me dediquei mais ao livro do que fazia em casa, com crianças e marido [Olga era casada com o cartunista Sérgio Jaguaribe, o Jaguar, pai de seus filhos, Flávia e Pedro]. Os poemas estavam todos no plano das ideias. Só faltava escrever. O caminho é esse: cabeça, braço, mão, caneta e papel. Jorge Amado também escrevia à mão. Hoje, todo mundo usa computador para tudo. Eu só digito quando as editoras exigem.

MC  Como era sua relação com a Hilda, outra grande escritora erótica?


OS  Muito boa. Ela não gostava de mulher. Gostou de mim porque não sou competitiva e deixei-a à vontade para trabalhar enquanto admirava a paisagem. Dizia a Hilda que até disco voador havia ali. Ela gravava voz de gente morta, sabia? Uma vez, me mostrou a gravação. Não acredito nessas coisas, mas ouvi as vozes. Tinha a da mãe de uma escritora, a de um amigo. Acontecia cada coisa mirabolante ali... Um dia, o marido da Hilda [o escultor Dante Casarini] propôs que fôssemos os três a um puteiro. Eu nunca tinha ido, mas morria de vontade de conhecer. Pura besteira: não tem a menor graça. É só uma casa, com música, gente que dança e mulheres vistosas que, de repente, desaparecem com os clientes.

MC  Esse erotismo a influenciou?


OS  Não. A gente só foi ver como era e voltou rápido para casa. O erotismo é anterior e posterior a isso. Sou um ser erótico. Gosto disso. Uma vez me perguntaram se eu escrevia poesia erótica por ser ninfomaníaca. Claro que não! Quando o poeta fala em erotismo, fala porque não teve na dose que precisava. É mais falta do que excesso.

MC  O Fernando Pessoa dizia que “o poeta é um fingidor...”


OS  “... finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente.” Isso é lindo. É avesso do avesso. Pessoa era a pura verdade em poesia.

MC  Li que seu pai era russo. O que o trouxe para o Brasil?


OS  Ele era engenheiro e veio trazer a luz elétrica para várias cidades do Norte e do Nordeste. Era um romântico, lindo e sonhador. E também era de Escorpião, como o [Carlos] Drummond [de Andrade]...

MC  Drummond era seu amigo?


OS  Amicíssimo. Nunca me atraiu como homem, mas sempre mexeu comigo. Como poeta, era de tirar o fôlego. Tinha vontade de pegá-lo no colo, como uma mãe, mas ele não gostava nada dessa história. Eram outras as suas intenções [risos]. Uma vez, na fila do banco, eu disse para ele que adorava a amizade amorosa que havíamos construído. Ele ficou furioso: “Amizade amorosa coisa nenhuma, isso é amor!”. Fiquei muda, passada. Drummond era discretíssimo, tímido, mas naquele momento se tornou um alucinado, gritava em plena fila de banco.

MC  Como vocês se conheceram?


OS  Aos 19 anos, fui com minha cara de pau, e meu livrinho embaixo do braço, ao antigo Ministério da Educação e Cultura, no Rio, onde ele trabalhava. Havia 100 poemas e ele teve paciência de ler todos! Cheguei sem jeito, mas a empatia foi imediata. Drummond tinha 53 anos e, mais tarde, confessou ter ficado balançado. Ficamos amigos e começamos a trocar poemas. Ele me chamava de Olenka, diminutivo de Olga, em russo, e fez um lindo poema para mim, que nunca foi publicado.

Miragem

Chegou, impressentida e silenciosa,
Com uma saudade eslava nos cabelos
E um ritmo de crepúsculo ou de rosa.

Os olhos eram suaves e eis que ao vê-los,
Outra paisagem, fluída, na distância,
Sugeria doçuras e desvelos.

No coração, agora já sem ânsia,
paira a serenidade comovida
que lembra os puros cânticos da infância.

Logo depois se foi, mas refletida
nesse espelho interior, onde as imagens
se libertam do tempo, além da vida,

Olenka permanece, entre miragens.

Carlos Drummond de Andrade, 1955 
 

MC  Quanto tempo depois você começou a namorar o Jaguar, um dos fundadores do Pasquim?


OS  Nessa época, nós já namorávamos e o Jaguar, que adorava Drummond como poeta, passou a odiá-lo. Um não suportava ouvir falar do outro [risos].

MC  Você chegou a trabalhar com o Jaguar no Pasquim? 


OS  Os louros ficaram com os homens da redação, mas eu fui uma das fundadoras do Pasquim. Criei a famosa coluna Dicas, com notas sobre o universo da cultura, comentários e sugestões. Fui a primeira jornalista a dar preço para restaurantes.

MC  Você teve muitos namorados?


OS  Na minha época, tinha todo aquele ritual: namoro, noivado e casamento. Ou seja, só fui namorar mesmo depois que me separei, aos 46 anos. Fiquei dois anos e meio com um jogador de futebol de 22, louco por mim. Ele me pediu em casamento e ficou indignado porque não aceitei. Mas eu estava a mil por hora. Tinha acabado de me separar, depois de casar virgem, e não casaria de novo nem por decreto! Queria só aproveitar aquele prazer imenso. Foi esse jogador que me deu um dos orgasmos mais intensos da minha vida, aos 46 anos...

MC  Antigamente não se falava em prazer feminino, falava?


OS  Não. As mulheres não tinham vez, voz ou libido. Felizmente acordamos.

MC  Quanto tempo faz que você teve seu último relacionamento?


OS  Há 20 anos não quero saber de namoro. Como dizia Agatha Christie, nem se eu encontrasse um arqueólogo [risos]. É tão bom viver só que eu escreveria um elogio à solidão. Eu me distraio e me divirto sozinha nesta casa. “Sou refém de sexo, mas não de homem; me viro muito bem sozinha”

MC  Você não sente falta de sexo?

OS  Meu corpo não aguenta mais. No meu último namoro, já doíam o joelho, a lombar [risos]. O bom é que não sou refém de homem. Sou refém do sexo, mas não de homem. Me arranjo muito bem sozinha. Sei como me dar orgasmos deslumbrantes [risos].

MC  Quando você descobriu que queria ser escritora?


OS  Meu sonho era ser bailarina, mas meus pais diziam que eu ia morrer pobre. E eu consegui ser coisa pior [risos]. Escritor, sim, morre de fome. Vivo praticamente com um salário mínimo por mês, um benefício do tempo em que trabalhei na Secretaria de Cultura. De tão apaixonada pela literatura, achei que poderia viver só da relação com os livros. Hoje sei que não é assim, mas é tarde. Por isso trabalho tanto. Faço traduções, resenhas, antologias. Não paro e vivo bem. Não tenho luxos e não preciso deles. Nunca saí do país com o meu dinheiro, mas meu talento já me levou a representar o Brasil na Holanda, em Portugal...

MC  O que você poderia ter feito para viver mais confortavelmente?


OS  Me arrependo de não ter pedido ajuda aos amigos que estavam no poder. Tive muitos e fui deixando-os morrer, por puro orgulho. Não existem mulheres que se apaixonam por bandido? [reflexiva] Eu me apaixonei por um malandro chamado Literatura [risos]. E, no Brasil, quem leva dinheiro na cueca se dá bem, quem é honesto não. A literatura, essa paixão que me suga, esse vampiro chamado poesia, consome toda minha energia. Leio e escrevo tanto que não tenho tempo de ir a oculista, ginecologista, dentista...

MC  O tempo interior dos intelectuais parece ser diferente do de seres humanos normais...


OS  E é. O bom poeta é um pensador, um filósofo. Reflete e questiona tudo.

MC  Isso não traz infelicidade?


OS  Tenho a vida sacrificada, mas não sofro. Meu pai morreu quando eu tinha 28 anos e minha mãe alguns anos depois. Perdi tudo muito cedo, sou filha única, e aprendi a me entreter lendo e rindo sozinha.

MC  Do que eles morreram?


OS  Meu pai caiu e fraturou o fêmur. Um ano e meio depois, morreu. Ele era um ótimo homem, não era como a minha mãe. Ela me detestava. Dizia que eu não era sua filha, mas de um casco de tartaruga. Está aí um bom título para sua matéria: 'A escritora que era filha do casco de tartaruga'. Minha mãe me detestava, me deixou em carne viva  de tanto me bater”

MC  Por que ela a tratava assim?


OS  Quando eu nasci, minha mãe tinha 20 anos, gostava de festas, viagens e de tudo que as mocinhas dessa idade gostam. Inclusive de badalar. Por isso se separou do meu pai, numa época em que o divórcio não existia. Ela queria viver a vida e eu a atrapalhava. Era uma grande mulher, tocava violão e cantava, mas uma péssima mãe. Vivia me dando surras. Uma vez, chegou a me deixar em carne viva por 15 dias, de tanto me bater. Naquela época eu sofria horrores. Hoje, morro de rir porque sou a única pessoa do mundo que nasceu do casco de uma tartaruga. Que maravilha! Que grande biografia eu tenho! Do casco de tartaruga aos Jabutis [prêmios de literatura que Olga ganhou duas vezes, em 1971 e 1994]. Viu só como é bom rir de si mesma?

MC  Ao criar seus filhos você pensou que queria ser o mais diferente dela que pudesse? Tentou reescrever essa história de outra forma?


OS  Sempre fui muito dura com meus filhos, mas nunca agressiva. Dei um único tapa no Pedro [morto, aos 41 anos, em 1999] e me arrependo disso até hoje. Mas ele era drogado. Dava um trabalho absurdo e, um dia, acabei perdendo a cabeça. Com a Flávia [Savary], que é uma excelente escritora de livros infantis, sou muito crítica. Quando ela me mostrou um dos seus primeiros poemas falei: “Olha, filha, poesia tem métrica, forma e você não pode fazer aleatoriamente, sem ritmo...”. Ela ficou furiosa. Depois, entendeu que era para o seu bem. Ficou em silêncio trabalhando e, cinco anos mais tarde, me apareceu com um livro belíssimo, que me deixou de queixo caído. É bom levar tombos. Amadurece.

MC Quando o Pedro começou a se envolver com drogas?


OS  Até os 17 anos, ele parecia um menino normal. Era lindo, magro e vivia pegando ondas. Mas não gostava de estudar e foi expulso de várias escolas — afinal, o pai se vangloriava de ter sido expulso de todos os colégios e filho imita pai. Só que o Jaguar tinha um talento nato e o Pedro não. Conclusão: nunca trabalhou e começou a pirar na maconha. Depois, tornou-se religioso. Frequentava todas as igrejas e religiões do Rio. E, embora vivesse do dinheiro do pai, com quem eu só falava o necessário, morava comigo. Mas, aos 40 anos, Pedro fugiu de casa e foi para o Rio Grande do Norte. Jaguar mandou buscá-lo, mas não teve jeito. Ele fugiu de novo para Natal. Morreu lá e eu só fiquei sabendo uma semana depois...

MC  Do que ele morreu?


OS  Ele morava numa pensão de uns amigos e vivia pegando onda. Um dia, dormiu e acordou morto. Falo assim, “acordou morto”, para atenuar essa dor. O Jaguar, que foi avisado da morte dele, mandou dinheiro para o enterro, mas não compareceu e não me avisou. Só falou com a Flávia, que foi quem me contou. É duro dizer, mas graças a Deus ele morreu, pois devia sofrer muito. Era louro dos olhos azuis, parecia com meu pai. Lindo...

MC  Você não foi buscá-lo em Natal? OS  Não. Sempre fui uma mulher conformada. Se eu pudesse escolher, teria morrido no lugar dele, porque filho morrer antes de mãe é uma crueldade. No auge do problema com as drogas, pensei que, se pudesse, compraria algo para matá-lo e, em seguida, me mataria. Não aguentava mais aquilo.

MC  Hoje, olhando tudo isso, do que você mais sente falta? Existe algo que gostaria de fazer antes de morrer, para ir tranquila?


OS  Adoraria entrar para a Academia Brasileira de Letras. Primeiro, porque eu tenho obras para isso, e muita gente não tem. São 20 livros e mais de 40 prêmios. Mas, mais do que isso, gostaria de entrar para a Academia porque... sou uma dama solitária e adoraria ter aquela turma toda de amigos, seria a minha família literária. Um sonho. E, depois, tem uma coisa: aqueles chazinhos são deliciosos [risos]. Já pensou que delícia você se reunir com sua família e discutir literatura? Ali há pessoas que eu admiro muitíssimo. São pessoas maravilhosas.


X.X.X

 

Entrevista conduzida por Claudia Pastore publicada no site www.palavrarte.com

(24/05/2012)

Com sua temática erótica e intimista, Olga Savary foi a primeira mulher no Brasil a lançar um livro inteiro de poesia erótica; Magma, (1982). Não só poeta, como prefere ser chamada, mas também ficcionista, ensaísta, tradutora e jornalista, ela nasceu em Belém – PA, residindo atualmente no Rio de Janeiro. Estreou em 1970, com Espelho Provisório (poesia), recebeu vários prêmios literários, nacionais e internacionais. Recentemente publicou, Repertório Selvagem – obra reunida com 12 livros de poesia, (1998), O Olhar Dourado do Abismo – contos – (2001), Berço Esplêndido – poesia – (2001) e Poesia do Grão Pará – antologia poética – (2001). Em sua poética, é marcante a presença de uma mulher que vive intensamente o momento presente, o ato e suas sensações físicas, ao nomear o amado “homem” ou “macho”, em tom narrativo, sem comedimento algum em expor seus desejos, suas paixões. Savary apresenta claramente o amor e suas contradições; a dualidade amor / aniquilação batailleana. Nesta entrevista, ela fala sobre poesia, vida e morte.

- Claudia Pastore: 
Como sabemos, você foi a primeira mulher a escrever um livro todo sobre temática erótica no Brasil, com a publicação de "Magma", em 1982. Você acha que a relação homem x mulher mudou muito de lá para cá?

- Olga Savary:
Eu percebo que, de muitos anos para cá, não sei quanto tempo, desde que começou a liberação da mulher, que as relações estão muito complicadas porque, no fim não há muito diálogo. Posso estar sendo um pouco radical, mas acho que às vezes não há diálogo. O que há são dois monólogos e isso eu jogo muito em cima dos meus contos: são mulheres que estão falando sozinhas e os homens também. Um pouco antes de 82, um pouco depois, nessa época, a coisa se exacerbou.

- Cláudia Pastore: 
Você acha que até hoje é assim?

- Olga Savary:
A gente tenta que não seja assim, porque acho muito ruim, tanto para a mulher, quanto para o homem, ficar nessa situação de dois monólogos que tentam dialogar. Um grande desencontro. É claro que há exceções, mas, a grosso modo, é muito difícil uma relação homem x mulher. Os homens têm medo da liberação das mulheres; as mulheres não têm mais a mesma paciência, pois já sofreram o diabo durante milênios, (tem aquela coisa que se brinca, como é? tolerância zero). Eu sou muito paciente, sou uma gueixa se souberem me tratar bem, mas já encerrei minha carreira, já tem uns nove anos, não quero mais saber de perda de tempo com isso.

- Cláudia Pastore: 
De acordo com Bataille, o erotismo é um fenômeno, um sentir unicamente humano, não animal. Porém, em seus poemas, o erótico possui muito de "animalidade" - você fala de fera, animal, King Kong... Como você explica isso?

- Olga Savary:
Explico através da minha enorme ironia, (sou muito irônica). Acho que às vezes fica muito claro no texto e às vezes não. Agora, acho o seguinte: tenho muito orgulho em dizer que eu sou um belo animal. Belo não no sentido de beleza, mas um verdadeiro animal, (é verdade, nós somos animais antes de tudo), antes de a gente ser um ser pensante, um ser erótico. E dizem que os animais não têm erotismo... Eu gosto muito de ver filmes sobre animais, porque acho que eu aprendo muito sobre mim mesma, sobre o ser humano. Acho que a gente está no mundo, também, para se aprimorar, aprender, apreender.  Eu não descarto essa possibilidade de ser um animal, eu acho ótimo, eu gosto. O que eu acho que o animal, talvez, não tenha, que eu observo muito, é o senso de humor..., mas também têm, eles têm uma certa malícia que é bem humana. Certa vez eu estava montada num cavalo, (eu sou uma desgraça para cavalo) e ele percebeu que eu não sabia montar e deve ter pensado: "espera aí que eu vou fazer uma com essa daí...", então ele não andou comigo, não obedeceu, e eu não gosto de chicotear, nem animal, nem gente, nem ninguém. E muita mulher chicoteia até homens. Não estou nessa. Então o cavalo, quando resolveu, deve ter pensado: "olha, essa daí não sabe nada, eu vou é voltar para a cocheira." Ele voltou para a cocheira, e eu montada, e ele ia fazer eu dar uma testada na entrada da cocheira, eu ia cair, podendo até morrer! Isso ele fez de malícia, de picardia, pensando: "eu vou fazer essa aí cair de cima de mim e vou destroçar ela." O que foi que eu fiz? Tinha uma trave de madeira e, quando ele entrou, eu segurei e fiquei pendurada no ar - e era alto á bessa! Aí ele olhou para trás: "mas que mulher danada..." Então eu penso que cavalo também tem um senso de humor terrível! Agora eu não descarto a palavra animal, brinco com a estória do King Kong porque foi uma brincadeira que eu fiz com um grande amado: eu o chamava de King Kong, até porque é a coisa de um amor impossível. Eu fiz um conto sobre essa relação e ele leu, viu escrito King Kong e disse: "isso não combina com você!", porque achava que eu era muito doce, ingênua... Daí eu não disse nada, fiquei muda e pensei: "mas eu não estou falando de mim, eu estou falando de você" - só que eu não disse nada, rindo por dentro, na minha ironia. Ele não era uma fera doce, pelo contrário. No amor, para mim, tem que existir alegria. Não tenho a menor vocação para o sofrimento.

- Cláudia Pastore: 
"Não se pode viver sem desejar". É um verso de Marly de Oliveira. O que dizer sobre isso?

- Olga Savary:
É verdade, acho que quando você está vivo, você deseja sempre. Eu, felizmente, cada vez desejo menos. Por exemplo; eu desejo coisas violentamente difíceis e complicadas, como trabalho, eu quero fazer cada vez mais e da melhor maneira possível. Não quero ser melhor do que ninguém, só quero sempre amanhã ser melhor do que eu fui hoje.  Não sei se ela está dizendo desejar no sentido de desejo erótico. Penso que é o desejar desejar, seja o que for. O fato de se desejar, por exemplo, se aprimorar, (e essa é a minha grande preocupação), eu quero é ter mais compaixão pelo meu semelhante amanhã... Não estou querendo ser tolereante demais, porém é uma questão de evolução. Para mim, a coisa mais importante na vida é a bondade, mais do que a inteligência, porque uma pessoa inteligente, que seja perversa, para mim é zero. Duas coisas são fundamentais no ser humano: caráter e bondade. Por exemplo, isso eu encontrei em Bruno Savary. Tive o privilégio de ser filha de um homem que foi a melhor pessoa que eu vi na minha vida. Ele me ensinou muita coisa boa, moldou-me para o bem. Outra pessoa que foi um pouco meu guru foi Benedito Nunes, meu professor de Filosofia e Francisco Paulo Mendes, meu melhor professor de Português. Bashô, que eu não conheci, porque viveu há trezentos e tantos anos atrás, o monge japonês, o pai do haikai. Esses são os meus amados máximos!
Dostoievski, porque é meu escritor primeiro, primeiro, primeiro. É o meu amado primeiro, descoberto nos meus dez anos de idade. E eu acho que Dostoievski me encantava pela compaixão. De uma inteligência fulgurante e escreveu os melhores romances de todos os tempos. Ele ia tão fundo que é uma coisa impressionante, algo que temos aqui com Clarice Lispector. Que também entrou fundo na alma humana. Coisa de russo, pois ambos eram tão próximos do sentir brasileiro. Nós temos grandes escritores brasileiros, mas ainda tem que acontecer o grande "boom" do Brasil. Nós temos escritores extraordinários, que ainda não foram descobertos. Não na medida que eles merecem. Saramago merece, porém acho que ele mesmo declarou que o primeiro Prêmio Nobel para língua portuguesa devia ter ido para o poeta Carlos Drummond de Andrade. Concordo.

- Cláudia Pastore: 
Será que a poeta, possui, implicitamente, em sua produção erótica um "grito literário", ou seja, ela tenta - nem que inconscientemente - reafirmar sua posição social enquanto ser que sente, que quer o prazer, que este lhe caiba naturalmente? Você vê diferenças entre a voz poética feminina e a voz poética masculina na temática erótica?

- Olga Savary:
Eu acredito que a mulher tenha mais coragem de se julgar. Por exemplo: Drummond quando estava vivo, tinha poesias eróticas que ele me disse terem sido escritas em 1940 e que ele só foi ter coragem de jogar em livro, publicar, quando ele estava perto de morrer, porque ele disse que envolviam outras pessoas, ia machucar pessoas, porque evidentemente ele não tinha escrito aqueles poemas eróticos para a pessoa com quem ele convivia. Isso até tem que ser dito de uma maneira muito delicada...
A mulher, a poeta, grita literariamente porque ela ficou amordaçada muitos anos. Não deram voz e vez à mulher, então era preciso às vezes o grito, talvez uma poesia mais violenta, (violenta no sentido reivindicatório). Mulher tem essa necessidade tão grande de colocar para fora isso, que durante anos ela não pode colocar, porque teve de permanecer calada. Há poesia feminina forte, até viril, assim como poesia masculina delicada. depende de tônus poético e não de sexo.

- Cláudia Pastore: 
Você acha que ela se expressa de uma maneira um pouco pesada?

- Olga Savary:
Pesada não, um pouco exacerbada, de uma maneira às vezes um pouco violenta. Considero que meu texto, às vezes, é muito violento. Ele não é ingênuo.

- Cláudia Pastore: 
Ele não tem a preocupação de ser sutil.

- Olga Savary:
Ele é sutil porque não cai no pornográfico e não cai no explícito. Nesse ponto ele é sutil mas, por outro lado, ele é muito violento. Violento no bom sentido, que não tem medo de dizer, e diz tudo. Tem certos textos meus que alguns homens não gostam. Mas tem outros que dizem: "muito obrigado por você homenagear o homem."
Uma coisa curiosa: em junho de 1989, eu estava na Casa Mário de Andrade, Museu de Literatura, Oficina da Palavra, na Barra Funda, e foi uma emoção inteira, porque eu não conheci Mário de Andrade, quando ele morreu eu não tinha dez anos. A Casa Mário de Andrade prestou uma homenagem a mim, com declamações de poemas, depoimentos gravados, "sumi-ê", pintados por uma artista carioca e palestras, durante quinze dias. A Profa. Marleine Paula participou também. Nessa ocasião, participei do Programa de Jô Soares. Um homem, ao lado de sua mulher, agradeceu-me por homenagear a figura do homem em meu texto. Apesar de ser violenta às vezes, eu também homenageio o homem. Quero dizer, eu mordo e assopro. Violenta no sentido de nomear pele, dizendo couro, por exemplo. Todo erotismo toca a coisa mística, como a serpente que morde a própria cauda - a uroboro. Misticismo e erotismo são, no fim, faces da mesma moeda, coisas que se tocam e que formam um círculo. E também aquilo sempre digo em depoimentos, entrevistas, etc, que erotismo é o sublime, o divino no ser humano, porque faz um triângulo: mulher - homem - Deus.

- Cláudia Pastore: 
Como se processa, em sua poética, esta forte relação com a natureza, com a Terra, com o Brasil, juntamente com a temática erótica? Como a natureza interage com o elemento erótico?

- Olga Savary:
Isso começou desde cedo. Eu sou de uma região exuberantíssima pela qual eu sou loucamente apaixonada - a Região Amazônica - eu sou de Belém do Pará, onde nasci em 1933, em maio. Sou uma geminiana muito inquieta, muito apaixonada... Dizem que o geminiano é muito mental. A natureza, para mim, é uma fonte inesgotável e, se nós não olharmos em torno, vamos olhar para onde? Então eu acho que o fato de eu ter nascido neste local, nessa região tão exuberante onde a natureza parece que invade tudo - o clima quente, o sangue quente... No mais, eu herdei essa coisa índia, indígena, tupi de Belém do Pará. E é fantástico porque isso é a origem da minha alegria. Acho que tenho essa observação da natureza por ser desta região. Eu sou uma mulher tropical, sou uma mulher de sangue quente, uma amazônida.

- Cláudia Pastore: 
Você diferencia isso, vamos supor, de uma mulher européia?

- Olga Savary:
Com certeza, eu tenho muito mais paixão para mostrar num texto, do que, por exemplo, uma mulher européia, digamos, uma finlandesa, uma norueguesa...

- Cláudia Pastore: 
Notamos claramente, a partir de outras entrevistas, que você diferencia o Oriente do Ocidente, suas raízes, seus valores, expressos, em sua poesia; ora pelo tupi, pelo indígena, ora pelos haicais, pelo amarelo. Portanto, como você vê a relação do homem com Deus entre esses dois mundos?

- Olga Savary:
Eu sempre tive muita paixão pelo Oriente, porque o irmão mais velho da minha mãe era um apaixonado pela cultura japonesa, e foi na biblioteca dele, com nove para dez anos de idade, que eu comecei a tomar informação sobre o "haikai" e comecei a escrever "haikais", que é forma mais curta de poesia que existe. Eu sempre me senti muito atraída pelo Oriente, por causa, provavelmente, do tio Lourival de Almeida, que era jornalista e que eu aprendi na biblioteca dele. A respeito do tupi, quando eu estive no meio dos índios em 1977, eu ouvi a linguagem dos tapirapés e dos carajás, eles falavam a língua deles e você tinha a impressão que eles falavam o japonês. Então Oriente sempre foi para mim algo muito presente na minha vida. Tudo o que eu falo na minha poesia, em tupi, é por que minha bisavó era índia.

- Cláudia Pastore: 
Se, para você, erotismo é vida; então, o que é a morte?

- Olga Savary:
Eu reparei que eu nunca falava muito em morte, no início da minha produção, não que eu negasse, mas eu sou muito ligada à vida. Eu tenho muitos poemas com o título "vida", eu sou uma apaixonada pela vida, embora eu ache que a vida é muito madrasta, muito terrível, mas também dá muito prazer - a gente tem que saber tirar...
Agora, curiosamente eu falo muito em morte nos poemas eróticos porque os franceses usavam aquela expressão para o orgasmo; "pequena morte" - eu tenho até um livro que eu vou lançar com três novelas com esse título: "Pequenas Mortes". Então eu acho que erotismo é vida e morte, é um pouco morrer quando você tem um ... Embora eu seja católica, eu não sigo religião nenhuma porque eu vejo claramente o que está por trás de tudo, ou seja, poder / dinheiro, poder / dominação. Enfim, eu acho que morte, para mim, seria como um grande orgasmo. Eu não tenho medo, acho que é inevitável.

- Cláudia Pastore: 
Você acha que o exercício da tradução repercutiu em seu fazer poético?

- Olga Savary:
Eu sempre fui movida a desafios, sempre achei que desafio, para mim, é fundamental. Eu quero me superar e quero estar sempre aceitando os desafios que eu mesma me imponho. Então eu acho que traduzir, para mim, é fundamental no sentido de exercer uma humildade e também porque eu venço desafios que me são apresentados. Eu traduzi muito do espanhol, mais de 40 livros, desses principais hispano-americanos; Cortázar, Borges, Lorca. Só de Pablo Neruda eu traduzi 10 livros, (poesia, teatro, memórias). Enfim, as indicações estão todas no meu currículo. Até um livro de memórias do Che Guevara eu traduzi. Enfim, a tradução para mim, não me influenciou poeticamente mas me deu muito, digamos, traquejo com relação ao texto do outro escritor.

- Cláudia Pastore: 
Com relação à criação, como se dá o fazer poético e o fazer em prosa, ou seja, existe diferença entre escrever um conto e escrever um poema?

- Olga Savary:
Eu sempre disse que nunca escreveria um romance mas eu escrevi uma novela que está para sair. Eu acho que a prosa está mais ligada com o dia-a-dia, você está mais perto do chão, e o fazer poético é como se você estivesse num disco voador, e vendo tudo numa amplitude maior, por causa da imagem. O texto poético, eu acho, que ele transcende mais. O conto seria eu andando na rua e poema seria se eu estivesse num disco voador.

- Cláudia Pastore: 
Sabemos que você nutre grande admiração pelo filósofo Benedito Nunes, que foi seu professor. Você possui outros mentores intelectuais que gostaria de nos falar?

- Olga Savary:
Benedito Nunes foi meu professor de Filosofia no Colégio Moderno, no Pará e ele foi muito importante para mim, pois ele foi considerado um dos nossos maiores críticos literários e é uma pessoa muito incentivadora. O primeiro prêmio literário que eu ganhei na vida foi dado pelo Benedito Nunes e pelo meu professor de Português, Francisco Paulo Mendes, que também foi uma pessoa muito importante na minha vida.O poeta Rui Barata, do curso Clássico, de antigamente. Então, esses foram os meus grandes mentores. Depois o Drummond, que ficou meu amigo e que nós descobrimos, mais tarde, que éramos primos.

- Cláudia Pastore: 
Com relação a futuros projetos ou em andamento, o que tem a nos dizer?

- Olga Savary:
Eu tenho muita coisa em andamento; muitos livros de poesia para serem publicados, outro livro de contos, o terceiro, a novela, que eu já falei, que ironicamente é chamada "Paraíso", embora de paraíso, no final não tenha nada e quatro livros de ensaio e crítica - esses são os livros pessoais. Agora, eu estou organizando várias antologias; uma sobre a Terra do Brasil, a outra; "Mar do Brasil", a outra de Haicais Brasileiros, a outra é "Contos da Pará" e muitos outros projetos e reeditar o "Carne Viva", que é aquela 1a. Antologia de Contos Eróticos. E um livro sobre Drummond, seria um ensaio poético, um projeto de um livro (poesia) em Portugal e também o "Eugeniana", que é uma homenagem ao poeta português Eugênio de Andrade, que em 2003 vai fazer 80 anos.

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Claudia Pastore é doutoranda da Universidade de São Paulo e prepara tese sobre O EROTISMO NA PRODUÇÃO POÉTICA DE PAULA TAVARES E OLGA SAVARY no departamento de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da Faculdade de Letras.
Além de pesquisadora é professora universitária e também escritora, tendo lançado e organizado a antologia poética QUEM SENTE SOMOS NÓS, pela Scortecci, editora de São Paulo.

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