Paulo Roberto Pires
Entrevista conduzida por Rogério Pereira, publicada no jornal Rascunho, de Curitiba, em outubo de 2011.
Paulo Roberto Pires é um leitor onívoro. E um escritor sem pressa. Entre seus dois livros de ficção — Do amor ausente e o recém-lançado Se um de nós dois morrer — passaram-se onze anos. “Não vou enobrecer de forma alguma esse intervalo. No começo, não escrevia porque não conseguia. Depois, e na maior parte destes anos, deixei de tentar”, diz nesta entrevista concedida por e-mail. Neste período, nunca deixou de devorar livros de todos os gêneros, acompanhar o mercado editorial e buscar novos autores. Sua receita é simples: dosar em equilíbrio clássicos e contemporâneos numa leitura contínua. Jornalista e editor, Pires segue de perto o mundo literário, sempre com um olhar crítico a este universo que tem, “pelo menos em germe, uma dose de ridículo”. Também nunca foge de um bom desentendimento, de uma discussão intelectual. E critica o compadrio que grassa pelo Brasil: “A impermeabilidade à divergência é o pior traço de nossa vida intelectual hoje”, afirma. A seguir, Paulo Roberto Pires fala também de sua formação como leitor, da importância da literatura em sua vida desde a infância, do momento literário brasileiro, entre outros assuntos.
• No artigo O detetive de si mesmo, publicado recentemente no blog da revista Serrote, o senhor defende que “Não há santo nem Jonathan Franzen que me façam acreditar, com sinceridade, no lugar, hoje, de enormes narrativas que atravessam décadas e mobilizam uma lista telefônica de personagens. (…) continuo achando que concisão é, sim, importante virtude literária”. Por que a concisão lhe parece uma grande virtude literária?
Acho que a sensibilidade contemporânea favorece a concisão. É claro que não a condiciona ou determina, mas favorece. E digo isso não por uma lógica simplista de que, num mundo acelerado, o consumo de informações engolfa o cidadão, sempre “sem tempo” para o relativo repouso exigido pela leitura. Ao contrário: para o leitor distraído e pouco exigente, o que toma tempo é o texto curto. Bem melhor, mais fácil, é um romanção convencional, bem redundante e comprido. A concisão, é óbvio, requer muito trabalho do escritor, mas essa exigência é também a exigência de um mínimo de originalidade diante de uma tradição pesada da literatura, de longos relatos, de Balzac a Thomas Mann. Toda vez que defendo essa tese, tenho que lidar com mal-entendidos, embora ressalte que os calhamaços fazem menos sentido para mim hoje, nos dias que correm. Mas, é claro, aí também não é determinante. Se Proust me maravilha? Sim. Mas não é, nem de longe, o santo de minha devoção. Dois exemplos contemporâneos me fazem morder a língua: o Bolaño de Os detetives selvagens (e não de 2666, que é resultado de uma junção de livros) e a Pornopopéia de Reinaldo Moraes, pois são dois prodígios de imaginação, vitalidade e técnica. Mas o “grande romance” me parece bem melhor e adequado num Stieg Larsson, que é ótimo entretenimento sem qualquer ambição literária, do que no Franzen, certinho e pretensioso que só ele.
• Ao escrever Do amor ausente (2000) e Se um de nós dois morrer (2011), ambos livros breves, o senhor tinha como premissa básica a concisão?
Acho que minhas eleições pessoais, em ficção e não-ficção, acabaram determinando a forma final dos livros. Mas não precisei me preocupar com a brevidade: ela se impôs. Ela sempre se impõe. Para mim, aliás, cortar gorduras do texto, jogar fora, não é nenhum sofrimento. Mas às vezes exagero e tenho que nutrir um pouco mais a narrativa. Aí sim, na engorda, é que vem o sacrifício.
• O senhor levou onze anos para publicar outra ficção desde sua estréia em 2000, com Do amor ausente. A que se deve este “longo” período nestes tempos em que a ânsia por publicar parece ser um dos grandes males que assolam os novos escritores?
Não vou enobrecer de forma alguma esse intervalo. No começo, não escrevia porque não conseguia. Depois e na maior parte destes anos, deixei de tentar. Quando fui chamado a falar para a Letra Freudiana, um grupo de analistas lacanianos carioca, sobre as dificuldades com a escrita (isso num seminário de criadores, imagine), aí veio a destravada — produto desta conversa e da leitura do Enrique Vila-Matas, que transformei até num anti-personagem. Aí foram quase três anos de trabalho disperso, entrecortado pelos livros dos outros, ou seja, por meu trabalho como editor e como jornalista.
• Uma das leituras possíveis de Se um de nós dois morrer é uma boa dose de ironia a respeito da vida literária. Nele, o narrador chama a atenção para os escritores que não escrevem mas estão ligados aos meios literários. O senhor acredita que, muitas vezes, para alcançar o “sucesso” literário é mais importante ter boas relações de amizade do que produzir uma obra de qualidade?
A auto-ironia é um dos traços fundamentais de Se um de nós dois morrer. Vamos combinar que a vida literária, da qual eu, você e o Rascunho fazemos parte, tem, pelo menos em germe, uma dose de ridículo. Muitas vezes a vaidade nos prega peças, por mais atentos que estejamos. Toda vida literária é paroquial e, como nossa paróquia é menor do que, por exemplo, a francesa, a comédia fica mais explícita e às vezes mais grotesca. Acho que o sujeito tem que decidir se escreve porque acredita no que escreve — e na gratuidade e inutilidade fundamentais da literatura — ou se quer transformar-se rapidamente numa subcelebridade literária. O segundo caminho é, certamente, mais fácil.
• Em uma carta, Théo (personagem de Se um de nós morrer) diz que “escrever (…) pode ser nada mais do que um sofrimento”. Para o senhor o que significa escrever ficção? Por que se dedicar à literatura?
Acho que escrever ficção é uma forma, mais difícil do que a não-ficção, de desmontar os clichês que rondam as vidas de todos nós. Você pode imaginar que se eu estivesse em busca de brilhareco teria publicado qualquer coisa ao longo desses anos todos — o que não garante, é claro, que o que publico agora seja relevante. Então, sob pena de ser esse mais um clichê, acho que escrever é a defesa possível para não ser engolido pela obviedade.
• De que maneira nasceram Do amor ausente e Se um de nós dois morrer? Como é o seu processo de criação?
Como tenho pouca regularidade, tenho pouca clareza sobre um “processo”. Do amor ausente foi rápido e doloroso, escrito em quatro meses, movido por uma crise pessoal e por uma vigilância para me afastar ao máximo da linguagem jornalística — o que fez bem e mal ao livro. Se um de nós dois morrer foi produto de outras vivências com a literatura e acho que aí se desenhou uma forma de trabalho: ainda que sem fazer “pesquisa”, eu tenho uma fase pesada de acumulação de leituras. Quando está ruim de segurar tanta referência, de toda ordem, começo a botar no papel, desordenadamente e quase sempre a conta-gotas — e, para minha própria surpresa, muitas vezes à mão, em caderninhos. Em O que é a filosofia?, o Deleuze e o Guattari dizem que a criação de conceitos obedece a três etapas: a imanência, a insistência e a consistência. Eu diria que escrever para mim é imergir-se em referências de toda a ordem (criar um campo de imanência), insistir que dali vá sair alguma coisa com vida própria e, finalmente, trabalhar para alicerçar situações e personagens.
• Recentemente, o senhor mediou um polêmico encontro entre os críticos Beatriz Rezende e Alcir Pécora, na série Desentendimento, promovido pela revista Serrote. Nele, Beatriz defendeu a qualidade da literatura brasileira, enquanto Pécora considerou tudo “muito irrelevante, coisa de tia”. De que lado da trincheira o senhor está? Qual a sua opinião sobre a literatura brasileira atual, principalmente a dos autores surgidos nos últimos anos?
Me identifico mais com a Beatriz Rezende, sobretudo quando ela insiste, e muito, na necessidade de que prestemos atenção no que está em volta, no cara que escreve hoje a seu lado. Mas acho o Alcir interessante em sua “má vontade”, organizada e consciente, com a produção contemporânea. Acho que precisamos igualmente do crítico militante e do implicante. O militante foi e é necessário para que se tenha uma vida literária concreta e palpável; o implicante também, para que não achemos que o trabalho está terminado. Não sou otimista nem pessimista em bloco. Aliás, bloco para mim só no carnaval.
• Em agosto, o senhor e o escritor Nelson de Oliveira protagonizaram uma acalorada polêmica no jornal Folha de S. Paulo em torno da antologia Geração Zero Zero. Outra polêmica foi protagonizada por Ferreira Gullar e Augusto de Campos. No entanto, estas discussões são bastante raras na grande imprensa. Por que o meio literário é tão afeito ao compadrio e tão arredio a um salutar desentendimento?
Se a polêmica é mero fait divers, briguinha, é melhor manter a sonolência geral da nação. Mas também acho bem lamentável que se busque na filosofia e sei lá mais onde justificativas teóricas para evitar o enfrentamento, como faz muita gente boa que respeito e admiro mas que se quer num lugar destacado e altivo, distante de atritos. A impermeabilidade à divergência é o pior traço de nossa vida intelectual hoje. O fato é que o sujeito hoje que se coloca frontalmente em divergência em relação a uma posição, seja ela na política ou na literatura, é estigmatizado pelo criticado como um inimigo pessoal ou, o que é pior, inimigo de uma causa “maior”. É burrice rematada demonizar quem diverge de nós. É a opção pela mediocridade.
• Há algum tempo, o senhor acompanha de muito perto o mercado editorial, seja como jornalista, seja como editor. Nos últimos anos, assistimos a uma transformação do mercado: surgimento de diversos eventos voltados à literatura; maior profissionalismo do mercado; facilidades de publicação, etc. O senhor acredita que o Brasil vive hoje um momento mais propício ao livro e à leitura?
O Brasil vive, sem dúvida, um momento mais propício ao comércio de livros. Talvez mais propício à leitura, mas aí depende de muita coisa e não apenas de uma pujança do mercado. Como em todas as áreas no Brasil, o meio editorial é há algum tempo um player importante no mercado internacional e isso porque observa, aqui dentro, os melhores padrões lá de fora — e, diga-se, os piores padrões também. Quem comemora a boa fase tem razão, mas acho que é mais prudente observar com interesse. Se é melhor do que há dez anos? Muito. Para todo mundo, do leitor ao escritor e o editor.
• Pesquisa recente da Fipe mostra que em 2010, as editoras brasileiras publicaram 23% mais livros do que em 2009. No entanto, as vendas cresceram apenas 13%. Ou seja, há um imenso encalhe de cerca de 55 milhões de exemplares. Uma leitura destes números mostra que o mercado está superaquecido. Outra é que faltam leitores. Como equilibrar esta equação? Ou, melhor, como fortalecer o crescimento do número de leitores?
Essa última é a pergunta de um milhão de dólares. Superprodução de livros há em todo o mundo, há uma irracionalidade mesmo na escala das editoras em relação ao consumo do livro. Mas a discrepância gritante em relação ao número de leitores é coisa nossa. Pergunte a qualquer escritor que hoje, com a proliferação de feiras e debates, corre o país falando sobre seus livros: há público, sempre, mas muito pouco leitor. Ou seja, criou-se um público para o mundo literário, mas a mesma pessoa que acompanha uma hora de discussão raramente compra o livro — e muito menos lê, claro. Sinceramente, tirando os lugares-comuns politicamente corretos sobre um quimérico “estímulo à leitura” ou a obviedade de apontar a política de educação ainda vergonhosa do país, não sei o que se pode fazer, concretamente, para que o Brasil emergente prefira um romance a uma TV de plasma.
Paulo Roberto Pires: "A impermeabilidade à divergência é o pior traço de nossa vida intelectual hoje."
• Como foi o seu contato com a leitura e a literatura? O que foi fundamental na sua formação como leitor?
A culpa é de minha mãe, professora do ensino fundamental, que desde sempre me fez conviver com livros. É aquela história clássica: o sujeito que, sendo inábil para a maior parte das atividades da vida prática como, por exemplo, o esporte, acaba encontrando na leitura uma forma de sobreviver. Mas aí, nas primeiras leituras, vêm as descobertas fundamentais e a idéia de que a vida, sem isso, é inviável. E a tentativa de fazer com que sua sobrevivência material e sua vida prática possam sustentar essa posição.
• Que conselho o senhor daria a um leitor em início de carreira? O que lhe parece fundamental neste começo?
Curiosidade. E mais curiosidade. E obsessão, claro. Discordo de quem diz que não se deve ler crítica antes de livros. Bobagem, não há regras para formação de um bom leitor. Às vezes é melhor, sim, ter lido algo sobre um autor antes de encará-lo. As experiências fundamentais resistem à interpretação dos outros, sempre. Outro princípio saudável é fazer com que a leitura de um livro leve à leitura de outros — que lhes são correlatos, contemporâneos, no mesmo gênero e que tenham entre si qualquer outro link providenciado pela nossa criatividade em associar coisas.
• E que conselho o senhor daria a um escritor em início de carreira, levando em consideração a sua experiência como autor e editor?
Seja implacável na autocrítica, leia os clássicos sem esquecer os contemporâneos, leia os contemporâneos sem esquecer os clássicos, leia boa crítica e tire da cabeça a idéia nociva e anti-intelectualista de que teoria não tem nada a ver com criatividade. A literatura não começa — e muito menos termina — em você.
• Que tipo de transformação/impacto a literatura pode causar no indivíduo? Qual a importância da leitura de ficção na vida cotidiana das pessoas?
A ficção alivia a barra, mesmo quando faz a barra pesar mais. Ou seja: a boa ficção literária não é um anestésico para aquelas coisinhas que ninguém te conta quando você nasce; ao contrário, ela pode até intensificar os problemas. Mas você sempre sai dela modificado. E modificar-se, na vida, é experiência longe de ser comum ou fácil. A literatura é, em suma, um belo e radical reaprendizado do mundo. Mas nos melhores casos não consola: só te dá uma percepção mais aguda.
• Um lugar-comum reclama que os escritores já tiveram participação mais efetiva nas discussões nacionais, já estiveram mais em evidência no centro do palco. Que impacto a discussão intelectual tem hoje sobre a vida política do país, levando em consideração a surdez que marca a maioria dos políticos?
Já teve grande importância quando o escritor era um missionário, um intelectual engajado nos destinos da nação. Em momentos de exceção, aliás, essa é uma responsabilidade fundamental. Na normalidade democrática, no entanto, o escritor deve se mobilizar pontualmente, sob pena de virar o engajadão profissional que, muitas vezes, nem precisa escrever nada que preste: basta falar a coisa correta na hora certa.
• O que senhor espera alcançar com a sua obra ficcional?
Eu diria que, ao finalizar Se um de nós dois morrer, eu espero conseguir fazer um outro livro, sem prazo. É um horizonte bem razoável e é, realmente, só o que me move.
• O senhor já passou por grandes veículos de mídia do país (O Globo, Época, entre outros). Agora, é editor da revista Serrote. Como senhor avalia o jornalismo cultural na grande imprensa?
Se nos ativermos aos meios convencionais, suplementos de jornal e revistas, está pior do que, digamos, há 20 anos. No conjunto, a paisagem é melhor pela diversidade dos meios de informação. Se a dieta da mídia convencional é quase sempre conservadora, engessada em agendas, há proteínas suficientes soltas por aí para nutrir essa informação com crítica e comparação. Não tenho saudade do passado dos outros, como diz o Ivan Lessa, e por isso acho o presente interessantíssimo.
• Que tipo de benefício e malefício a internet pode causar ao jornalismo cultural e, em especial, à literatura, tanto na crítica como na produção de obras?
Para a literatura a internet foi fundamental. Ampliou as possibilidades de trocas, estimulou a produção de textos, desorganizou as relações estáveis entre crítico e criticado. É claro que há um preço: a terra de ninguém dos palpiteiros, a violência covarde dos comentadores de blogs (que nada tem a ver com a energia das polêmicas), a leviandade tuiteira, o desabafismo das mídias sociais. Mas, com um bom fígado, passa-se por isso muito bem.
• O personagem Théo de Se um de nós morrer coleciona fatos a respeito de retumbantes fracassos de autores consagrados. José Castello diz que literatura é fracassar. Que tipo de fracasso literário mais lhe causa pavor?
O fracasso que me assombra é um determinado tipo de êxito. É o do escritor que, tendo ganhado um premiozinho e alcançado um reconhecimento mediano, passe a acreditar piamente em suas qualidades. Esse é um fracasso tenebroso, pois muito constante. Lembro os versos da Emily Dickinson, traduzidos pelo Augusto de Campos: “O sucesso é mais doce/ A quem nunca sucede./ A compreensão do néctar/ Requer severa sede/ Ninguém da Hoste ignara/ Que hoje desfila em Glória/ Pode entender a clara/ Derrota da Vitória”.
• Que autor lhe parece imprescindível em sua vida de leitor? Como é a sua rotina de leitor?
Sou leitor onívoro, leio até bula de remédio e preciso me controlar para não me perder demais na mistura inacreditável de gêneros e autores. Hoje leio muita não-ficção e menos literatura, mas é quando leio literatura que me situo no mundo. Sou novidadeiro que merece repressão, pois gosto muito de experimentar autores, vício que o Kindle tornou pesado com os capítulos-amostra que você pode baixar de graça. Mas imprescindível mesmo é, aqui e ali, voltar ao velho Walter Benjamin.
• Em uma suposta conferência de Théo, ele afirma que “a utilidade da escrita está para mim ligada muitas vezes à morte, a resistir à morte”. A literatura é uma boa forma de resistir à morte? Em medida a morte lhe é uma preocupação?
A morte é talvez minha preocupação central — mas não a minha morte, a dos outros que me cercam. Se tudo correr bem, a quantidade de perdas que se tem numa vida é impressionante. Escrever e ler organiza a dor, sem dúvida alguma, e torna o intervalo entre uma perda e outra mais suportável. Mas medo mesmo eu tenho é de sobreviver às pessoas que me são mais caras, da minha mulher aos meus amigos.
• Quais são as suas obsessões literárias?
São os escritores que continuam lá no fundo, um rumor que não sai do ouvido. Um rumor que atende por alguns nomes: Raduan Nassar, Carlos Sussekind, Walter Benjamin, Marguerite Duras, Samuel Beckett, Roland Barthes e o Comendador Aires, o espetacular último capítulo da vida e da obra de Machado. Mas eu não seria leviano ou pretensioso em nomeá-los aqui como “influências”. Eles são o que me faz achar que vale a pena escrever e, espero, funcionam como uma vacina de dignidade e austeridade para o patético.
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