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Grandes entrevistas

William Faulkner 2

Entrevista conduzida por Jean Stein Vanden Heuvel, publicada na Paris Review, nº 12, primavera de 1956 e republicada no livro Os Escritores: as históricas entrevistas da Paris Review. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, de onde foi extraída

* * *

- Sr. Faulkner, o senhor estava dizendo há pouco que não gosta de entrevistas.

A razão por que não gosto de entrevistas é que eu aparentemente reajo de modo violento a perguntas pessoais. Se as perguntas são a respeito da obra , tento responder a elas, Quando são a meu respeito, posso responder ou não, mas,mesmo que o faça, se a mesma pergunta for colocada amanhã, a resposta poderá ser diferente.

- E a respeito do senhor enquanto escritor?

Se eu não tivesse existido, algum outro teria escrito minhas obras, as de Hemingway, Dostoievski, de todos nós. Prova disso é que há cerca de três candidatos à autoria das peças de Shakespeare, Mas o importante é Hamlet e Sonho de uma noite de verão, não quem os escreveu, e sim o fato de que alguém tenha feito. O artista não tem importância. Só o que ele cria é importante, já não há nada de novo a ser dito, Shakespeare, Balzac, Homero, todos escreveram a respeito das mesmas coisas, e, se tivessem vivido mais mil ou dois mil anos, os editores não teriam precisado de mais ninguém desde então.

- Mas, mesmo que aparentemente não haja mais nada a ser dito, a individualidade do escritor não é importante?

Importantíssima para ele, Todos os outros deveriam estar ocupados demais com a obra para se preocuparem com a individualidade .

- E os seus contemporâneos?

Todos nós fracassamos em realizar nosso sonho de perfeição. De modo que estimo a nós todos com base no nosso esplêndido fracasso em realizar o impossível. Na minha opinião, se eu pudesse escrever toda a minha obra de novo, tenho certeza de que faria melhor, o que é a condição mais saudável para um artista. É para isso que ele continua trabalhando, tentando de novo; ele acredita sempre que dessa vez irá conseguir, irá realizar o que quer. É claro que não conseguirá, é por isso que essa condição é saudável. Uma vez que o fizesse, uma vez que equiparasse a obra à imagem, ao sonho, não lhe restaria mais nada a não ser cortar a garganta, saltar desse pináculo da perfeição para o suicídio. Sou um poeta fracassado. Talvez, primeiro, todo romancista queira escrever poesia, descobre então que não consegue e tenta o conto, que é a forma mais exigente depois da poesia. E, fracassando nisso, só aí começa a escrever romances.

- Há alguma fórmula que se possa seguir de modo a se tornar um bom romancista?

Noventa e nove por cento de talento.,. noventa e nove por cento de disciplina... noventa e nove por cento de trabalho. Não se deve estar nunca satisfeito com o que se faz, Nunca está tão bom quanto seria possível. Sempre sonhe e mire acima daquilo que você sabe que pode fazer, Não se preocupe apenas em ser melhor que os seus contemporâneos ou predecessores. Tente ser melhor do que você mesmo. Um artista é uma criatura arrastada por demônios, Não sabe por que o escolheram e normalmente está ocupado demais para se perguntar isso, É totalmente amoral, pois irá roubar, mendigar, pedir emprestado ou furtar de quem quer que seja para ver seu trabalho realizado.

- Está querendo dizer que o escritor deve ser inteiramente desapiedado?

A única responsabilidade do escritor é para com sua arte, Será inteiramente desapiedado se for um bom escritor, Tem um sonho, Isso o angustia tanto que ele tem que se livrar dele. Não tem paz até então. O resto vai por água abaixo: honra, orgulho, decência, segurança, felicidade, tudo, para que o livro seja escrito. Se um escritor tiver que roubar a sua mãe, não hesitará; a "Ode a uma uma grega" (de John Keats, 1795-1821) vale mais do que qualquer punhado de velhas.

- Então a falta de segurança, felicidade, honra poderia ser um fator importante para a criatividade do artista?

Não. Essas coisas são importantes apenas para a sua paz e alegria, e a arte não tem nada a ver com paz e alegria.

- Então qual seria o melhor ambiente para um escritor?

A arte também não tem nada a ver com o ambiente; não importa onde se esteja, Quanto a mim, o melhor emprego que já me foi oferecido foi o de zelador de um bordel. Na minha opinião, é o ambiente perfeito para um artista trabalhar. Proporciona ampla liberdade econômica; ele se vê livre do medo e da fome; tem um teto seguro e nada para fazer, senão cuidar de umas poucas contas e ir uma vez por mês pagar à polícia local. O lugar é quieto de manhã, que é a melhor hora do dia para se trabalhar. Há bastante vida social à noite, se ele quiser participa, para impedi-lo de se aborrecer; isso lhe dará uma certa posição em sua sociedade; não tem nada a fazer, já que a madame toma conta dos livros; todos os moradores da casa são mulheres, e o acatariam e o chamariam de "doutor", Todos os contrabandistas de bebida da região também o chamaria de “doutor”. E ele poderia tratar os policiais pelo primeiro nome. De modo que o único ambiente de que o artista necessita é qualquer lugar onde possa obter paz, solidão e prazer a um preço não muito alto. Tudo o que o ambiente inadequado lhe proporcionará é pressão alta; ele passará mais tempo se sentindo frustrado ou ressentido, Minha própria experiência tem me mostrado que as únicas ferramentas de que preciso para o meu ofício são papel, tabaco, comida e um pouco de uísque.

-O senhor quer dizer bourbon?

Não, não me preocupo com esse detalhe, Entre uísque e nada, fico com uísque.

- O senhor se referia à liberdade econômica. O escritor precisa dela?

Não. O escritor não precisa de liberdade econômica. Tudo de que precisa é lápis de papel. Eu nunca soube que algo bom em literatura tivesse se originado da aceitação de uma oferta gratuita de dinheiro. O bom escritor nunca pede auxílio a uma instituição cultural. Está ocupado demais escrevendo alguma coisa. Se não é um escritor de primeira classe, ilude-se dizendo que não tem tempo ou liberdade econômica. Pode surgir arte boa de assaltantes, contrabandistas ou ladrões de cavalos. As pessoas na verdade têm medo de descobrir que podem suportar muita adversidade e pobreza. Têm medo de descobrir que são mais resistentes do que pensam. Nada pode destruir o bom escritor. A única coisa que pode alterar o bom escritor é a morte, Os bons não têm tempo para pensar no sucesso ou em ganhar dinheiro. O sucesso é feminino e como uma mulher; se você se curva diante dela, ela passa por cima de você. Então o jeito de tratá-la é dar-lhe as costas da mão, Aí, talvez, ela venha a rastejar.

- Trabalhar para o cinema pode prejudicar a sua própria literatura?

Nada pode prejudicar a literatura de um homem se ele for um escritor de primeira classe, Se um homem não é um escritor de primeira classe, então não há nada que possa ajudá-lo muito, porque aí já vendeu sua alma por uma piscina.

- Um escritor se compromete escrevendo para o cinema?

Sempre, porque um filme é por natureza uma colaboração, e qualquer colaboração é compromisso, porquc é isso o que essa palavra significa: dar e tomar.

- Qauis os autores o senhor mais gosta de trabalhar?

Humphrey Bogart é aquele com quem melhor trabalhei. Ele e eu trabalhamos juntos em To have and have not (Uma aventura na Martinica) e The big sleep (A beira do abismo).

- Gostaria de fazer outro filme?

Sim, eu gostaria de fazer um do 1984, de George Orwell. Tenho uma idéia para um final que comprovaria a tese em que estou sempre martelando: que o homem é indestrutível dada a sua simples vontade de liberdade'.

- Como consegue os melhores resultados trabalhando para o cinema?

O meu trabalho cinematográfico que me pareceu melhor foi feito quando os atores e o escritor deixaram de lado o roteiro e inventaram a cena num ensaio, pouco antes de a câmara começar a rodar. Se eu não levasse a sério o trabalho cinematográfico, ou sentisse que não era capaz de levá-lo a sério, eu, por simples honestidade para com o cinema e comigo mesmo, não o teria tentado. Mas hoje sei que nunca serei um bom roteirista; de modo que esse trabalho jamais terá para mim a prioridade que o meu próprio meio tem.

- O senhor gostaria de dizer alguma coisa a respeito daquela lendária experiência de Hollywood na qual esteve envolvido?

Eu tinha acabado de cumprir um contrato com a Metro Goldwyn-Mayer e estava prestes a voltar para casa. O diretor com quem trabalhara me disse: "Se quiser algum outro trabalho por aqui, basta me avisar e eu falarei com o estúdio sobre um novo contrato". Eu lhe agradeci e fui embora, Mais ou menos uns seis meses depois, telegrafei ao meu amigo diretor dizendo que gostaria de fazer outro trabalho. Pouco tempo depois, recebi uma carta do meu agente em Hollywood, incluindo um cheque de pagamento pela minha primeira semana de trabalho. Fiquei surpreso, pois esperava receber do estúdio, antes de tudo, uma comunicação oficial ou uma chamada telefônica e um contrato. Pensei comigo mesmo: o contrato está atrasado e chegará na próxima remessa de cartas. Em vez disso, uma semana mais tarde recebi outra carta do agente, incluindo um cheque de pagamento pela minha segunda semana, Isso começou em novembro de 1932 e continuou até maio de 1933. Aí recebi um telegrama do estúdio. Dizia: William Faulkner, Oxford, Miss, Onde está você? Estúdio da MGM. Redigi um telegrama: Estúdio da MGM, Culver City, Califórnia. William Faulkner. A jovem telegrafista indagou: "Onde está a mensagem, sr. Faulkner?" “Aí está", disse eu. Ela disse: "O regulamento diz que não posso enviá-lo sem uma mensagem, o senhor tem que dizer alguma coisa". Então consultamos todas as suas amostras e escolhemos não me lembro qual - uma dessas mensagens prontas de feliz aniversário. Enviei isso, A seguir recebi um telefonema interurbano do estúdio dizendo-me para tomar o primeiro avião, ir a Nova Orleans e me apresentar ao diretor Browing. Eu poderia ter tomado trem em Oxford e chegar a Nova Orleans oito horas depois. Mas obedeci ao estúdio e fui para Memphis, de onde um avião segui uma vez ou outra para Nova Orleans. Três dias depois, um deles decolou. Cheguei ao hotel do Sr. Browing lá pelas seis da tarde e me apresentei a ele. Estava havendo uma festa. Ele me disse paratirar uma boa noite de sono e estar pronto para começar bem cedo na manhã seguinte. Perguntei-lhe a respeito da história. Ele disse: “Ah, sim. Vá ao quarto n° tal. Aquele é o continuista. Ele lhe dirá qual é a história” Fui para o quarto que ele me indicara. O continuista estava lá sentado sozinho. Eu me apresentei e indaguei-lhe a respeito da história. “Quando tiver escrito os diálogos, eu lhe deixarei ver a história”, respondeu. Voltei ao quarto de Browing e contei-lhe o que havia acontecido. “Volte lá”, disse ele, “e diga mais ou menos que... bem, deixe pra lá, tire uma boa noite de sono para que possamos começar amanhã bem cedo”. Então, na manhã seguinte, numa lancha de alguel bastante elegante, todos nós, menos o continuista, navegamos rumo a Grand Isle, mais ou menos a uns cento e sessenta quilômetros de distância, onde o filme deveria ser rodado, chegando lá justo a tempo de almoçar e percorrer de volta os cento e sessenta quilômetros até Nova Orleans antes de escurecer. Isso continuou durante três semanas. De vez em quando eu me preocupava um pouco com a história, mas Browing sempre dizia: “Pare de se preocupar. Tire uma boa noite de sono para que possamos começar bem cedo amanhã de manhã”. Uma noite depois de voltarmos, eu mal tinha entrado em meu quarto quando o telefone tocou. Era Browing. Disse-me para ir imediatamente ao seu quarto. Fui lá. Ele me mostrou um telegrama. Dizia: Faulkner está despedido. Estúdio da MGM. “Não se preocupe”, disse Browing. “Vou telefonar a Fulano de Tal agora mesmo e fazer não só com que ele o coloque de novo na folha de pagamento, mas lhe envie um pedido de desculpas por escrito”. Alguém bateu à porta. Era um criado do hotel com outro telegrama. Este dizia: “Browing está despedido. Estúdio da MGM. Então fui embora. Presumo que Browing também tenha ido para algum lugar. Imagina que aquele continuista ainda esteja sentado num quarto, em qualquer canto, com o seu cheque semanal preso firmemente entre os dedos. Eles nunca terminaram o filme. Mas construíram uma aldeia de pescadores de camarões: uma extensa plataforma erguida sobre palafitas na água, coberta por barracões, tal como um ancoradouro. O estúdio poderia ter comprado dúzias delas por quarenta ou cinqüenta dólares cada. Em vez disso, construíram uma falsa, por conta própria. Isto é, uma plataforma com apenas uma parede, de modo que, quando você abria a porta e a atravessava, dava de cara com o oceano. Enquanto a construíam, no primeiro dia, um cajun (1) remou até lá em sua estreita e rápida piroga cavada num tronco de árvore. Passou o dia tido lá sentado, debaixo do sol escaldante, observando aquela atividade maluca e incompreensível. Estive em Nova Orleans dois ou três anos mais tarde e ouvi dizer que os cajuns continuavam a vir quilômetros de distância para ver aquela imitação de plataforma de camarão que um bando de gente branca tinha construído de repente e depois abandonado.

- O senhor disse que o escritor tem que se comprometer ao escrever para o cinema. E quanto à literatura? Ele tem alguma obrigação para com o leitor?

Sua obrigação é realizar seu trabalho da melhor maneira possível; quanto a qualquer outra obrigação, ele pode agir do modo como quiser. Eu mesmo estou ocupado demais para me preocupar com o público. Não tenho tempo de pensar em quem está lendo minha obra. Não me importa a opinião de qualquer pessoa a respeito dela ou de qualquer outro autor, O critério que tem que ser satisfeito é o meu, que é quando a obra faz com que eu me sinta como quando leio La tentation de Saint-Antoine [A tentação de Santo Antônio] ou o Antigo Testamento. Fazem com que eu me sinta bem. Assim como observar um pássaro. Saiba que, se eu reencarnasse, gostaria de voltar como um urubu. Ninguém o odeia ou inveja nem o quer ou precisa dele. Ele nunca se vê importunado ou em perigo, e pode comer qualquer coisa.

- Que técnica o senhor emprega para satisfazer o seu critério?

Deixe que o escritor se dedique à cirurgia ou à alvenaria, se a técnica o interessar. Não há uma maneira mecânica de escrever, nenhum atalho. Um escritor novo seria um louco se seguisse uma teoria. Deve aprender com seus próprios erros; as pessoas só aprendem errando. O bom artista acredita que ninguém é bom o bastante para lhe dar conselhos. Possui suprema vaidade. Não importa o quanto admire o velho escritor, ele quer superá-lo.

- Então o senhor negaria a validade da técnica?

De modo algum. Às vezes, a técnica entra em cena e assume o comando do sonho antes que o próprio escritor possa tê-lo entre as mãos. Isso é tour de force, e o trabalho acabado é apenas uma questão de assentar os tijolos cuidadosamente, já que o escritor provavelmente sabe de antemão cada palavra do livro antes de pôr a primeira no papel. Isso aconteceu com As I Lay Dying (Enquanto agonizo). Não foi fácil. Nenhum trabalho honesto é. Foi simples porque todo o material já estava à mão. Levei apenas umas seis semanas, durante as horas de folga de um trabalho manual que me ocupava doze horas por dia. Simplesmente imaginei um grupo de pessoas e as sujeitei às simples catástrofes universais da natureza, que são as inundações e o fogo, com um simples motivo natural que desse sentido ao seu desenvolvimento. Mas aí, quando a técnica não intervém, num outro sentido escrever também fica mais fácil. Porque comigo há sempre um ponto no livro em que os próprios personagens se erguem, tomam conta e completam a tarefa - digamos lá pela página 275. É claro que não sei o que aconteceria se terminasse o livro na página 274. A qualidade que um artista tem que ter é objetividade no julgamento de seu trabalho, além da honestidade e da coragem de não se iludir com ele. Já que nenhuma das minhas obras satisfez os meus próprios critérios, devo julgá-las com base na que mais dor e angústia me causou, tal como a mãe sente amor pelo filho que se tornou ladrão ou assassino do que por aquele que tornou sacerdote.

- Que obra é essa?

The sound and the fury ( O som e a fúria). Eu a escrevi cinco vezes em épocas diferentes, tentando contar a história, ficar livre do sonho, que continuaria a me angustiar até que eu o realizasse. É uma tragédia de duas mulheres perdidas: Cady e sua filha. Dilsey é, entre as minhas próprias personagens, uma das favoritas, porque é valente, corajosa, generosa, amável e honesta. Ela é bem mais valente e honesta e generosa do que eu.

- Como começou The sound and the fury?

Começou com uma imagem mental. Não percebi, na ocasião, que era simbólica. A imagem era dos fundilhos enlameados da calcinha de uma menina pequena trepada numa pereira, de onde ela podia ver, por uma janela, o local onde estava se realizando o funeral de sua avó e descrever o que estava acontecendo aos seus irmãos, no chão, embaixo. Quando expliquei quem eles eram e o que estavam fazendo, e como suas calças haviam se sujado de lama, percebi que seria impossível pó tudo aquilo num conto e que teria que ser um livro. E aí eu me dei conta do simbolismo das calças sujas de terra, e essa imagem foi substituída pela menina sem pai nem mãe descendo pelo cano da calha para escapar do único lar que possuía, no qual nunca lhe haviam dado amor, afeto ou compreensão. Eu já tinha começado a contar a história através dos olhos da criança retardada, já que sentina que ela seria mais eficaz contada por alguém capaz de saber apenas o que acontecera, mas não por quê. Percebi que não tinha contado a história dessa vez. Tentei conta-la de novo, a mesma história, através dos olhos dos olhos de outro irmão. Ainda não era o que eu queria. Contei-a pela terceira vez, através dos olhos de um terceiro irmão. Ainda não era o que eu queria. Tentei juntar as peças e preencher as lacunas, tornando-me eu mesmo o narrador. Ainda assim não ficou completa, até quinze anos depois de o livro ser publicado, quando escrevi, como apêndice a um outro livro, o último esforço de contar a história e tira-la da minha cabeça, para poder ter um pouco um pouco e paz. É o livro pelo qual sinto mais carinho. Não pude abandoná-lo, e nunca consegui contar a história direito, embora tentasse ao máximo, e gostaria de tentar de novo, embora provavelmente fracassasse ainda outra vez.

- Que emoção Benjy desperta no senhor?

A única emoção que posso sentir por Benjy é dor e piedade por toda a espécie humana. Não se pode sentir nada por Benjy porque ele não sente nada. A única coisa que posso sentir por ele pessoalmente é preocupação quanto a ele ser verossímil ou não como o criei. Ele era um prólogo, como o coveiro nos dramas elisabetanos, Cumpre a sua finalidade e se vai. Benjy é incapaz para o bem ou para o mal porque não tem conhecimento do bem e do mal.

- Benjy podia sentir amor?

Benjy não era racional o bastante nem mesmo para ser egoísta. Era um animal. Reconhecia a ternura e o amor, embora não pudesse lhes dar nome, e foi a ameaça à ternura a ao amor o que o levou a berrar quando sentiu a transformação em Cady. Já tinha mais Caddy; sendo retardado, nem sequer notava que Caddy estava ausente. Sabia apenas que alguma coisa estava errada, que deixava um vácuo, no qual ele sofria. Tentou preencher esse vácuo. A única coisa que tinha era um dos chinelos que Caddy jogara fora. O chinelo era a ternura e o amor aos quais ele não podia dar nome, sabendo apenas que estavam faltando. Estava sujo porque não tinha coordenação porque e a sujeira nada significava para ele Não podia distinguir entre distinguir m não distinguia entre o bem e o mal. O chinelo o consolava, embora ele já não se lembrasse da pessoa a quem uma vez pertencera, tal como não conseguia se lembrar do motivo por que sorria. Se Caddy tivesse reaparecido, ele provavelmente não a teria reconhecido.

- O narciso dado a Benjy tem algum significado?

O narciso foi dado a Benjy para distrair a sua atenção. Era simplesmente uma flor que estava à mão naquele 5 de abril. Não foi deliberado.

- Há algumas vantagens artísticas em moldar o romance na forma de uma alegoria, como a alegoria cristã que o senhor empregou em A Fable (Uma fábula)?

A mesma vantagem que tem o carpinteiro ao construir ângulos retos na construção de uma casa quadrada. Em A Fable, a alegoria cristã era a alegoria certa para aquela história em particular, assim como o ângulo obtuso é o ângulo certo com o qual se construir uma casa retangular oblonga,

- Isso quer dizer que um artista pode usar o cristianismo simplesmente como uma outra ferramenta, tal como um carpinteiro pediria emprestado um martelo?

O carpinteiro de que estamos falando nunca está sem esse martelo. Não há ninguém sem cristianismo, se é que estamos de acordo quanto ao que queremos dizer com essa palavra. E o código de conduta íntima de cada pessoa por meio do qual ela se torna um ser humano melhor do que a sua natureza o quer, se ela seguisse apenas a sua natureza. Qualquer que seja o seu símbolo - a cruz, o crescente ou outro qualquer -, esse símbolo recorda ao homem o seu dever como parte da raça humana. Suas várias alegorias são as coordenadas pelas quais ele se dimensiona a si próprio e aprende a saber quem é. Ele não pode ensinar o homem a ser bom da maneira como os livros de escola lhe ensinam matemática. Mostra-lhe como se descobrir a si mesmo, criar para si mesmo um código moral e um critério dentro de suas capacidades e aspirações, dando-lhe um exemplo incomparável de sofrimento e sacrifício e a promessa de esperança. Os escritores sempre se utilizaram, e sempre se utilizarão, das alegorias da consciência moral, pelo fato de que as alegorias são incomparáveis – os três homens em Moby Dick, que representam a trindade da consciência: não saber nada, saber, mas não se importar, saber e se importar. A mesma trindade está representada em A Fable pelo jovem piloto judeu, que disse: “ Issoé terrível . Recuso-me a aceitá-lo, mesmo que para isso tenha que recusar a vida”; o velho contramestre francês, que disse: "Isso é terrível, mas podemos chorar e suportá-lo; e o mensageiro de batalhão inglês, que disse: “Isso é terrível, vou fazer algo a esse respeito”.

- Os dois temas não relacionados existentes em The Wild palms (Palmeiras selvagens) foram reunidos num só livro com alguma finalidade simbólica? Trata-se, como certos críticos insinuam, de uma espécie de contraponto estético, ou estão lá apenas por acaso?

Não, não. Deveria ser uma única história - história de Charlotte Rittenmeyer e Harry Wilbourne, que sacrificaram tudo por amor, e então perderam isso. Eu não sabia que seriam duas histórias separadas senão depois de ter começado o livro. Quando cheguei ao final do que é hoje a primeira parte de The wild palms, descobri de repente que alguma coisa estava faltando, faltava ênfase, alguma coisa para realçá-la, assim como o contraponto na música. Então escrevi a história "Old Man" (O velho), até que a história de The wild palms readquirisse o seu tom. Aí interrompi a história O velho no que é hoje a sua primeira parte e retomei a história de The Wild Palms até que ela começou a decair novamente. Daí eu a relacionei com um outro trecho da sua antítese, que é a história de um homem que conquistou seu amor e passou o resto do livro fugindo dele, até chegar ao ponto em que volta voluntariamente para a cadeia, onde estaria a salvo. São somente duas histórias por acaso, talvez por necessidade. A história é a de Charlotte e Wilbourne.

- Quanto de sua literatura é baseada na experiência pessoal?

Não sei dizer. Nunca fiz as contas, Porque "quanto" não tem importância. Um escritor precisa de três coisas, experiência, observação e imaginação, sendo que dessas, às vezes até mesmo uma, podem suprir a falta das outras. Comigo, uma história geralmente começa com uma idéia ou memória ou imagem mental. Escrever a história é apenas uma questão de ir construindo esse momento, de explicar por que aconteceu ou o que provocou a seguir. Um escritor está sempre tentando criar pessoas verossímeis em situações comoventes e críveis, da maneira mais comovente possível. É claro que deve usar como uma de suas ferramentas o ambiente que conhece. Eu diria que a música é o meio mais fácil para se expressar alguma coisa, já que surgiu antes, na história e na experiência do homem, Mas como as palavras são o meu dom, tenho que tentar expressar canhestramente em palavras o que a pura música faria melhor. Isto é a música expressaria de modo melhor e mais simples, mas eu prefiro usar palavras, assim como prefiro ler a ouvir. Prefiro o silêncio ao som, e a imagem produzida por palavras transcorre em silêncio. Isto é, o estrondo e a música da prosa se processam em silêncio.

- Algumas pessoas dizem que não conseguem compreender o que o senhor escreve, mesmo depois de terem lido duas ou três vezes. Que tipo de enfoque lhes sugere?

Que leiam quatro vezes.

- O senhor se referiu à experiência, observação e imaginação como sendo importantes para o escritor. Não incluiria a inspiração?

Não sei nada a respeito da inspiração, porque não sei o que é - ouvi falar a respeito dela, mas nunca a vi.

- Dizem que, como escritor, o senhor é obcecado pela violência.

Isso é como dizer que o carpinteiro é obcecado por seu martelo. A violência é apenas uma das ferramentas do carpinteiro. Assim como o carpinteiro, o escritor não pode construir com uma única ferramenta.

- Poderia dizer de que modo começou a escrever?

Eu estava vivendo em Nova Orleans, fazendo todo tipo de serviço para ganhar algum dinheiro de vez em quando. Conheci Sherwood Anderson. Costumávamos andar pela cidade durante a tarde, conversando com as pessoas. De noite nos encontrávamos de novo e nos sentávamos diante de uma garrafa ou duas, enquanto ele falava e eu ouvia, De manhã eu nunca o via, Ele ficava fechado, trabalhando. No dia seguinte, repetíamos tudo. Concluí que, se aquela era a vida de um escritor, tornar-me escritor era o que me convinha. Comecei então a escrever meu primeiro livro. Descobri imediatamente que escrever era divertido. Já tinha me esquecido que não via o sr. Anderson havia três semanas até que ele me entrou pela porta, era a primeira vez que vinha me ver, e disse: "O que é que está havendo? Está zangado comigo?". Eu lhe disse que estava escrevendo um livro. "Meu Deus!", exclamou, e saiu. Quando terminei - era Soldier's Pay -, encontrei a sra. Anderson na rua. Ela me perguntou como ia o livro, e eu disse que o tinha terminado. "Sherwood diz que fará um trato com você. Se ele não tiver que ler o manuscrito, dirá ao seu editor para aceitá-Io", disse ela, Eu respondi: "Feito", e foi assim que me tornei escritor.

- Que tipo de serviço fazia para ganhar “algum dinheiro de vez em quando"?

O que aparecia. Eu podia fazer um pouco de quase tudo: dirigir barcos, pintar casas, pilotar aviões, Nunca precisava de muito dinheiro porque a vida então era muito barata em Nova Orleans, e tudo o que eu queria era um lugar para dormir, um pouco de comida, tabaco e uísque. Havia muitas coisas que eu podia fazer durante dois ou três dias e ganhar dinheiro suficiente para viver o resto do mês, Sou um vagabundo e um andarilho por temperamento. Não desejo o dinheiro tanto assim a ponto de trabalhar por ele. Na minha opinião, é uma vergonha que haja tanto trabalho no mundo. Uma das coisas mais tristes é que a única coisa que um homem pode fazer oito horas por dia, dia após dia, é trabalhar. Não se pode comer oito horas por dia, nem beber oito horas por dia, nem fazer amor oito horas - tudo o que se pode fazer durante oito horas é trabalhar. É esse o motivo pelo qual o homem torna, a si e a todos os demais, infelizes e miseráveis.

- O senhor deve se sentir grato a Sherwood Anderson, mas o que acha dele como escritor?

Ele foi o pai da minha geração de escritores americanos e da tradição de literatura americana que os nossos sucessores levarão adiante. Nunca recebeu o reconhecimento que merecia. Dreiser é seu irmão mais velho e Mark Twain o pai de ambos.

- Que tal os escritores europeus daquela época?

Os dois grandes homens do meu tempo eram Mann e Joyce. Deveríamos nos aproximar do Ulysses, de Joyce, como o pregador batista analfabeto se aproxima do Antigo Testamento: com fé.

- Como adquiriu seu conhecimento da Bíblia?

Meu bisavô Murry era um homem amável e gentil, pelo menos para nós, crianças. Isto é, embora fosse escocês, não era (para nós) nem especialmente devoto nem severo tampouco; era simplesmente um homem de princípios inflexíveis. Um deles era: todo mundo, desde as crianças até todos os adultos presentes, tinha que ter um versículo da Bíblia pronto e afiado, na ponta da língua, quando nos reuníamos em volta da mesa para o café da manhã, todos os dias; quem não tinha O seu versículo preparado ficava sem o café da manhã; era desculpado o tempo suficiente para deixar a sala e decorar um versículo apressadamente (havia uma tia solteirona, uma espécie de sargento encarregado dessa tarefa, que se retirava com o culpado e lhe soprava as palavras que lhe permitiam superar o obstáculo da próxima vez). Tinha que ser um versículo verdadeiro, correto? Enquanto éramos pequenos, podia ser o mesmo toda manhã, uma vez que o soubéssemos bem, até que ficássemos um pouco mais velhos e maiores, quando então, uma manhã (a essa altura já estávamos bastante afiados, lançando as sílabas a galope, sem sequer prestar atenção ao que dizíamos já que estávamos cinco ou dez minutos à frente, em meio ao presunto e à carne, ao frango frito, mingaus, batata-doce e dois ou três tipos de pão quente) de repente percebíamos os seus olhos fixos em nós - muito azuis, muito amáveis e gentis, e mesmo agora não tão severos, mas inflexíveis; e, na manhã seguinte, tínhamos um novo versículo. De certo modo, era aí que você descobria que a infância tinha acabado; você a tinha deixado para trás e penetrara no mundo.

- O senhor lê os seus contemporâneos?

Não, os livros que leio são aqueles que conheci e amei quando era moço e aos quais volto como se volta aos velhos amigos: o Antigo Testa mento, Dickens, Conrad, Cervantes - Dom Quixote. Leio-os todos os anos, como alguns lêem a Bíblia. Flaubert, Balzac - ele criou um mundo intacto próprio, uma corrente sanguínea que flui através de vinte livros -, Dostoieyski. Tolstoi, Shakespeare. Leio Melville ocasionalmente, e dos poetas Marlowe, Campion, Jonson, Herrick, Donne, Keats e Shelley. Ainda leio Housman. Já li esses livros tantas vezes que nem sempre começo na primeira página ou leio até o fim. Leio apenas uma cena, ou o tocante a uma personagem, assim como você se encontra e conversa com um amigo por alguns minutos.

- E Freud?

Todo mundo falava de Freud quando eu vivia em Nova Orleans, mas nunca o li. Nem Shakespeare o leu. Duvido que Melville o tenha lido, e tenho certeza de que Moby Dick não o fez.

- Costuma ler histórias de mistério?

Leio Simenon porque me lembra alguma coisa de Tchekhov.

- Quais são as suas personagens preferidas?

Minhas personagens preferidas são Sarah Gamp - uma mulher cruel, impiedosa, bêbada, oportunista, nada confiável, um caráter quase todo negativo, mas pelo menos tinha caráter; sra. Harris, Falstaff, Prince Hal, dom Quixote, e Sancho, é claro. Sempre admiro Lady Macbeth. E Bottom, Ofélia e Mercúcio - tanto ele como a sra. Gamp enfrentavam a vida, não pediam favores, nunca choramingavam. Huck Finn, é claro, e Jim. Nunca gostei muito de Tom Sawyer - um tremendo pedante. E gosto ainda de Sut Lovingood, de um livro escrito por George Harris por volta de 1840 ou 1850, nas montanhas do Tennessee. Ele não tinha ilusões acerca de si mesmo, fazia o melhor que podia; às vezes era covarde e sabia disso, e não se sentia envergonhado; nunca culpava os outros por suas desgraças e nunca amaldiçoou a Deus por elas.

- Tem algo a dizer sobre o futuro do romance?

Suponho que, enquanto as pessoas continuarem a ler romances, outras continuarão a escrevê-los, ou vice-versa; a menos, é claro, que as revistas ilustradas e as histórias em quadrinhos finalmente atrofiem a capacidade do homem de ler, e a literatura realmente estará em seu caminho de volta à escrita pictórica das cavernas de Neanderthal.

- E que pensa da função dos críticos?

O artista não tem tempo para escutar os críticos. Aqueles que querem ser escritores lêem as resenhas, aqueles que querem escrever não têm tempo de ler resenhas. O crítico também está tentando dizer: "Joãozinho esteve aqui". Sua função não se dirige ao próprio artista. O artista está um degrau acima do crítico, pois está escrevendo alguma coisa que porá o crítico em movimento. O crítico está escrevendo alguma coisa que porá todo o mundo em movimento, menos o artista.

- Então o senhor nunca sente necessidade de discutir a sua obra com ninguém?

Não, estou ocupado demais escrevendo. Minha obra tem que me agradar, e, se o faz, não preciso falar a respeito dela com ninguém. Se não me agrada, falar disso não vai melhorar coisa alguma, já que a única coisa que pode melhorar é trabalhar nela um pouco mais. Não sou um literato, apenas um escritor. Não sinto prazer algum em falar a respeito do meu trabalho.

- Os críticos afirmam que as relações de sangue são centrais em seus romances.

Essa é uma opinião, e, como já disse, não leio os críticos. Duvido que um homem que tenta escrever acerca de pessoas esteja mais interessado em relações de sangue do que no formato de seus narizes, a menos que elas sejam necessárias para ajudar a história a se desenvolver. Se o escritor se concentrar naquilo em que precisa estar interessado, que é a verdade e o coração humano, não vai ter muito tempo de sobra para quaisquer outras coisas, tal como idéias e fatos sobre formatos de narizes e relações de sangue, já que, na minha opinião, as idéias e os fatos têm muito pouco a ver com a verdade.

- Os críticos também dizem que suas personagens nunca escolhem conscientemente entre o bem e o mal.

A vida não está interessada no bem e no mal. Dom Quixote vivia constantemente escolhendo entre o bem e o mal, mas aí estava escolhendo em seu estado de sonho. Era louco. Só entrava na realidade quando estava tão ocupado em enfrentar pessoas que não tinha, tempo de distinguir entre o bem e o mal. Já que as pessoas existem apenas na vida, elas precisam dedicar seu tempo simplesmente para viver. A vida é movimento, e o movimento está ligado ao que faz com que o homem se mova - que é ambição, poder, prazer. Qualquer tempo que um homem possa dedicar à moralidade, ele tem que arrancá-lo à força do movimento do qual faz parte. Mais cedo ou mais tarde, é compelido a escolher entre o bem e o mal, pois a consciência moral exige isso dele, para que possa viver consigo mesmo amanhã. Sua consciência moral é a maldição que ele tem que aceitar dos deuses de modo a obter deles o direito de sonhar.

- Poderia explicar um pouco mais o que entende por movimento em relação ao artista?

O objetivo de todo artista é deter o movimento, que é vida, por meios artificiais e fixá-la, de modo que daí a cem anos, quando um estranho olhar aquilo, ele se mova novamente, pois é vida. Já que o homem é mortal, a única imortalidade possível para ele é deixar atrás de si algo que seja imortal, pois estará sempre se movendo. Essa é a maneira de o artista rabiscar "Joãozinho esteve aqui" no muro do último e irrevogável oblívio que um dia ele terá que atravessar.

- Foi dito por Malcolm Cowley que as suas personagens carregam um senso de submissão quanto ao próprio destino.

Essa é a opinião dele. Eu diria que algumas delas sim e outras não, como as personagens de todo mundo. Diria que Lena Grove, em Light in August (Luz de agosto), enfrentou muito bem a sua sorte. Na verdade, não lhe importava muito, em seu destino, se seu homem era Lucas Birch ou não. Era seu destino ter um marido e filhos, e ela sabia disso, e então ela tocou sua vida e tratou disso sem pedir ajuda a ninguém. Ela comanda sua alma. Uma das falas mais calmas e sensatas que já ouvi foi quando ela disse a Byron Bunch, no instante em que repelia sua última desesperada e desesperadora tentativa de violentá-la, "Não tem vergonha? Poderia ter acordado o bebê?" Nunca, por um momento sequer, ela se sentiu confusa, assustada, alarmada. Nem mesmo sabia que não precisava de piedade. Sua última fala, por exemplo: "Olhe só, não estou viajando nem há mais de um mês e já cheguei ao Tennessee. Deus meu, como o corpo da gente se move por aí!". A família Bundren, em As I Lay Dying, enfrentava muito bem o seu destino. O pai, tendo perdido a esposa, iria naturalmente precisar de outra, de modo que a arranjou. De um golpe só, ele não apenas substituiu a cozinheira da família como comprou um gramofone para dar prazer a todos enquanto estavam descansando. A filha grávida não conseguiu resolver dessa vez a sua situação, mas não se desencorajou. Tencionava tentar de novo, e, mesmo que todos eles fracassassem até o último, aquilo não era nada demais, só um outro bebê.

- E Cowley diz que o senhor considera difícil criar personagens que sejam simpáticas e tenham idades entre os vinte e os quarenta anos.

As pessoas entre os vinte e os quarenta anos não são simpáticas. A criança tem a capacidade de sê-lo, mas não pode saber. Só o sabe quando já não é mais capaz de o ser - depois dos quarenta. Entre vinte e quarenta, a vontade de agir da criança se torna mais forte, mais perigosa, mas ela ainda não começou a aprender a conhecer. Como a sua capacidade de ação é canalizada para o mal devido ao meio ambiente e às pressões, o homem é forte antes de ser moral. A angústia do mundo é causada por gente entre vinte e quarenta anos. As pessoas da minha região que causaram toda a tensão inter-racial - os Milams e os Bryant (no assassinato de Emmet Till) e as gangs de negros que agarraram e estupraram uma mulher branca por vingança, os Hitlers, Napoleões, Lenins -, todas essas pessoas que são símbolos da angústia e do sofrimento humanos, todas elas tinham de vinte a quarenta anos.

- O senhor deu uma declaração aos jornais na época do assassinato de Emmet Till. Tem algo a acrescentar aqui?

Não, apenas repetir o que disse antes: que se nós, americanos, sobrevivermos será porque escolhemos, elegemos e defendemos ser antes de tudo americanos; apresentar ao mundo uma frente homogênea e inquebrantável, seja de americanos brancos ou negros, roxos, azuis ou verdes. Talvez a finalidade desse triste e trágico erro cometido no meu Mississípi natal por dois brancos adultos contra uma sofrida criança negra seja provar se merecemos ou não sobreviver. Porque se nós, na América, chegamos ao ponto, na nossa desesperada cultura, de assassinar crianças, não importa por qual razão ou cor, não merecemos sobreviver, e provavelmente não sobreviveremos.

O que lhe aconteceu entre Soldier's Pay e Sartoris - isto é, o que o levou a começar a saga de Yoknapatawpha?

Com Soldier's Pay descobri que escrever era divertido. Mas descobri mais tarde que, não só cada livro tinha que ter um desígnio, mas que toda a produção ou soma dos trabalhos de um artista tinha que ter um desígnio. Escrevi Soldier's Pay e Mosquitoes porque escrever era divertido. Com Sartoris, descobri que valia a pena escrever acerca da minha própria terra natal e que eu nunca viveria o suficiente para esgotá-la, e que, sublimando o real no apócrifo, teria total liberdade para empregar ao máximo o talento que eu tivesse. Isso me abriu uma mina de ouro de outras pessoas, então criei um cosmo próprio. Posso mover essas pessoas para a frente e para trás como Deus, não só no espaço mas também no tempo. O fato de eu tê-las movido com êxito no tempo, pelo menos segundo o meu próprio critério, prova para mim minha própria teoria de que o tempo é uma condição fluida que não tem existência senão nos avatares momentâneos dos indivíduos. Não há alguma coisa como foi - apenas é. Se foi existisse, não haveria dor ou tristeza. Gosto de pensar no mundo que criei como sendo uma espécie de pedra angular do universo; e que, por pequena que essa pedra angular seja, se fosse removida o próprio universo entraria em colapso. Meu último livro será o Livro do Juízo Final, o Livro de Ouro, do condado de Yoknapatawpha. Então quebrarei o lápis e terei que parar.

JEAN STElN V ANDEN HEUYEL
(Tradução de Alberto Alexandre Martins)

 

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