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Conferência 3 (Proferida na ABL em 18/6/2013)

 

O humor e o cômico na ABL

Cláudio Murilo Leal

Nesta palestra, vou valer-me de textos que, de algum modo, ajudarão a caracterizar a forma de ver o mundo e descrevê-lo sob o prisma do Humor.

        Voltando um pouco no tempo, no intuito de construir uma ponte com os escritores contemporâneos, recorro à verve satírica tão atual de Agripino Grieco, um dos mais ferinos críticos da literatura Brasileira e dos hábitos e costumes da nossa vida literária. Ridendo castigat mores.    

         Inspirado no charivari da sessão histórica protagonizada por Graça Aranha na ABL, o vivo olhar de Grieco encontrou, nos inícios da nossa modernidade, o tom humorístico caricato e zombeteiro ao utilizar o vocabulário da Literatura e da Gramática para situar a graça de seu texto num contexto cultural.  

       Escreve Agrippino Grieco em Carcassas gloriosas sobre a famosa tarde em que Graça Aranha quis converter em noite do

Hernani os redutos do Petit Trianon:

"Que barulheira naquele misto de museu e belchior, naquele pequeno templo da musa da Gramática, com um jardinzinho de canteiros ajustados a fita métrica como os sonetos parnasianos e umas saletas em que os antigos jogos florais de acrósticos e ditirambos são substituídos pela caça maníaca aos galicismos e aos neologismos!"

         O contexto cultural aparece na comparação da tumultuada sessão na ABL com a estreia, em 1830, na Comédie Française, da peça Hernani, de Victor Hugo. Estreia que foi transformada em palco de violentos distúrbios deflagrados pelos representantes do nascente romantismo francês. Assim como Hugo, Graça Aranha foi visto por Agripino Grieco como um turbulento precursor da renovação da literatura Brasileira.

      O sarcástico crítico comparava a ABL daquela época a um museu, empregando ironicamente uma palavra antiga e de estranho sabor: belchior: estabelecimento onde são vendidos objetos velhos e usados: “que barulheira naquele misto de museu e belchior.”

      A Academia seria o templo da musa (comparação a princípio lisonjeira), porém uma simples Musa da Gramática, ciência contra a qual se rebelavam os escritores “antipassadistas, premonitórios da revolução literária dos anos 20 e 30”, no dizer de Alfredo Bosi. Os novos escritores defendidos por Graça Aranha queriam pôr-se a salvo da férula do crítico Osório Duque-Estrada, cognominado, por sua defesa implacável do idioma, o guarda-noturno da Literatura Brasileira.

       Os pequenos jardins do silogeu eram medidos com fita métrica, do mesmo modo que a severa escansão parnasiana media as sílabas dos sonetos. Nas saletas (espaço lilliputiano evocativo de um aposento minúsculo) a referência a jogos florais cultiva uma estranha poética de nomes arrevesados como acrósticos e ditirambos, galicismos e neologismos, despertando a nossa imaginação para canteiros de dicionários, compêndios de gramática e publicações sobre a Arte poética.

      O Humor, para quem o percebe, desperta um sutil processo mental: umore è cosa mentale, poderia ter dito Leonardo da Vinci. Nas entrelinhas do dito e do não dito, o Humor tece a sua infinita trama de conotações, metáforas, subentendidos, jogos de palavras, articulações entre o sisudo e o pitoresco, entre o erudito e o popular. Utilizando-se do potencial sugestivo da sátira, da paródia, da paráfrase, o scriptor ludens procura lançar mão de todo um arsenal simbólico para conquistar o seu público. Até o mau humor, paradoxalmente, também pode ser aproveitado para deflagrar o Humor.

          E o humor negro? O acadêmico Geraldo Holanda Cavalcanti traduziu com excepcional habilidade os poetas italianos Giuseppe Ungaretti, Salvatore Quasimodo, Umberto Saba, Eugenio Montale. Deste, último, lemos o poema: “Em Roma há uma casa funerária / que se chama O FUTURO. E ainda se diz / que o humor negro morreu com Jean-Paul / Jonathan Swift / e Achille Campanile.”

      Já a piada, como o cafezinho, quando repetida ou requentada sempre perdem graça e sabor.

      As estratégias de quem produz o Humor são múltiplas como as deformações esperpênticas da realidade, inspiradas nos espelhos convexos do Callejón del Gato, em Madri, magistralmente transpostas paraas novelas Don Ramón María del Valle-Inclán. Também uma fingida seriedade pode tornar-se engraçada. O francês denomina pince-sans-rire o ar sério com que alguém conta uma blague, uma vez que o compromisso com o riso, a gargalhada, é obrigação da Comicidade, do Cômico, e não do Humor.

        O Humor esconde no subentendido da verbalização um duplo viés. Aquele que dialoga com o cotidiano, o imediato, descobrindo a graça e a poesia através do chamado wit inglês e que um bom exemplo seria a crônica de Otto Lara Resende “O pastel e a crise”, que resume uma excursão, dita cultural, de Otto acompanhado de Rubem Braga ao centro da cidade:

   Um dia, Rubem me telefonou: vamos ao Bar Luís, na rua da Carioca? O objetivo era promovermos uma excursão cultural. mas o chope estava esplêndido. começamos por um preto duplo, que a sede era forte. depois mais um, agora louro. E outro. Claro que não faltou o salsichão com bastante mostarda. Calados, mas vorazes, cumpríamos um rito. saímos dali e fomos a um sebo. O Rubem comprou Xanã, do Carlos Lacerda, com dedicatória. Depois, pegamos o carro e voltamos pelo Aterro, onde se podia exercer o direito da livre eructação. tinha sido um perfeito programa cultural. E sem nenhum incentivo do governo.

      A ironia deste texto mineiramente disfarçada reside no contraste entre o elevado projeto da excursão cultural e o modesto resultado da realidade de chopes, salsichões, a compra de apenas um livro e o melancólico retorno para casa. A irrecusável proposta cultural e os fatos narrados foram os elementos que compuseram a crônica bem-humorada. O fracasso da douta missão sofrido por dois ilustres escritores, ou melhor, a troca de um objetivo nobre por uma pífia boemia no Bar luís... leva o leitor duvidar da consistência do objetivo cultural que resultou na frustrada excursão. A suplantação do ideal pela realidade de um cotidiano corriqueiro propiciou, neste caso, o surgimento do Humor. O filósofo Immanuel Kant já afirmara que “o Humor surge da transformação repentina de uma grande expectativa para o Nada”

        O outro viés do Humor, revelador de um pensamento que poderia ser chamado, talvez, de metafísico, guardadas as devidas proporções, transcende à trivialidade cotidiana do Rubem e do Otto, e amplia as referências da intriga material para o universo espiritual. São conhecidas as consagradas expressões: “frase de espírito”, “fulano é muito espirituoso”, pois o espírito em conúbio com o divertido são ingredientes indispensáveis na receita do Humor.

      Já a comédia bufa, o pastelão, a pantomima, a farsa, a chalaça e mesmo a Commedia dell’Arte, caracterizam-se por serem, como o cacth as cacth can, luta livre analisada por Roland Barthes em seu livro Mythologies, uma encenação magnificada, um espetáculo excessivo. Este tipo de exibição não representa o puro Humor, que se resguarda em uma configuração mais tímida e introspectiva. Machado de Assis forneceu a fórmula perfeita para qualificar o nosso humor quando, em Memórias póstumas de Brás Cubas, afirmou que escrevia com “a pena da galhofa e a tinta da melancolia”. Galhofa... melancolia. Humana bipolaridade que liquefaz o pensamento radical e único e é interpretada por Moacyr Scliar como uma síntese do caldeamento racial do brasileiro: a nostalgia dos portugueses, a tristeza dos negros escravizados, dos índios chacinados, do imigrante desenraizado. Mas o riso do carnaval (Scliar usa esta metáfora) neutraliza a melancolia hereditária do brasileiro. trata-se, segundo o médico eescritor gaúcho, de uma bipolaridade salvadora. Sergio Paulo Rouanet, em seu livro Riso e melancolia, relembra que Brás Cubas pensou em inventar um emplasto salvador anti-hipocondríaco, destinado a aliviar os sofrimentos anímicos da melancólica humanidade, deixando-a mais propensa à fruição das alegrias da vida.

      O Humor, como um analgésico, pode ser oferecido também em pílulas. O Barão de Itararé, Millôr Fernandes, Otto Lara Resende, Fernando Sabino, Nelson Rodrigues prodigalizaram Humor em pequenas doses homeopáticas. Quem esquece que toda a unanimidade é burra? Que o mineiro só é solidário no câncer? Ou que o ministro não é, mas está ministro? E que o último verão na Inglaterra caiu num domingo, segundo Sanislaw Ponte Preta. Machado de Assis também confeccionou na sua farmácia de manipulação aforística a pílula: “O boato é a telegrafia da mentira.”

     Álvaro Moreyra, escritor e acadêmico conhecido como possuidor de alma boníssima, contou que, uma vez, um amigo pedira-lhe emprestado 500 réis. – Amanhã eu pago – afirmou peremptoriamente aquele momentâneo necessitado. Com certa decepção Álvaro Moreyra revelou que “o amanhã nunca chegou.”

      Também as famosas greguerias do espanhol Don Ramón Gomez de la Serna são sínteses atomizadas que interpretam o que há por trás das aparências. A fórmula ramoniana compõe-se de associações inesperadas que reúnem metáfora e humor. Por exemplo: “idem, bom pseudônimo para um plagiário.” Adotando o mesmo formato das greguerias de Ron Ramón, escreveu mário Quintana: “O grande consolo das velhas anedotas são os recém-nascidos.” Ou, “enforcar-se é levar muito a sério o famoso nó na garganta”.

       Com o Humor, você pode sorrir, mas não chegará a rir altissonantemente. Por este motivo, o livro clássico do filósofo francês Henri Bergson, Le rire, talvez pouco instrua sobre as delicadas sutilezas do Humor.

      Uma inusitada situação e até mesmo um simples gesto podem despertar a comicidade. O cômico guarda uma tendência teatral, pois funciona sob as lu-zes de uma virtual ribalta. O Humor, ao contrário, é mais introspectivo, uma irisada e alegre bolha de sabão que pode desfazer-se a qualquer momento.

        Sorrir interiormente caracteriza o humour  inglês, ligeiro e intelectual, onde o understatement isto é, o subentendido ou minimizado, exige do receptor um razoável conhecimento do universo cultural para entender as referências e criações do autor.

        José Cândido de Carvalho usa trejeitos e invencionices lexicais salpicados na linguagem corrente para condimentar as suas estórias. O vocabulário de Ponciano (principal personagem de O coronel e o lobisomem) é o próprio Ponciano. Este é um dos segredos do Humor que, escondendo a voz do narrador, nasce e vive da fala do personagem. Processo semelhante ocorre com a colorida e estapafúrdia algaravia do prefeito Odorico Paraguaçu em O Bem-Amado, de Dias Gomes.

        A linguagem de José Cândido de Carvalho encantou Manuel Cavalcânti Proença que a compara à de Guimarães Rosa por seu poder de invenção. Ouçamos a fala de Ponciano:

       A bem dizer, sou Ponciano de Azeredo Furtado, coronel de patente, do que tenho a honra e faço alarde. Herdei do meu avô Simeão terras de muitas medidas, gado do mais gordo, pasto do mais fino. Leio no corrente da vista, e até uns latins arranhei em tempos verdes da infância com uns padres-mestres a dez tostões por mês

      Um dos truques do escritor neste início de romance é fugir do lugar-comum das frases feitas: coronel de patente, faz alarde de sua condição; a leitura no corrente da vistae a confissão que arranhou até uns latins. Assim, a palavra de Ponciano é um misto de linguagem educada, culta, que segue as normas e padrões da língua, porém enriquecida por expressões recolhidas da oralidade regional ou reinventadas pela criatividade do narrador. Esta mescla, um blended linguístico, é que dá, granus cum salis, a graça ao texto de O coronel e o lobisomem.

      José Cândido de Carvalho publicou também Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon, livro que reúne pequenos “causos”, cujos personagens levam os mais estranhos nomes: Dr. Beledano, José Pelinca, Ribaldino, Badenes Gurjão, Dona Licovina, Pinalcídio Ferrão, Escolastino Vieira, uma rica contribuição à onomástica brasileira, segundo Gilberto Amado.

       O último conto-relâmpago de José Cândido traz o mesmo título do livro. A estória narra que na cidade de curralzinho surge um desconhecido, que atendia pelo nome de Lulu Bergantim que, em pouco tempo, se elege prefeito. Já no dia da posse, após comerem biscoitinhos de araruta e bebericarem licor de jenipapo, o prefeito leva todos os eleitores para a rua e, com enxadas e pás, começam a capinar o mato da Rua do Cais. No dia seguinte, de brocha na mão, Lulu comanda a caiação dos prédios da cidade. Depois, abrem valas para passar o encanamento de água. O povo, agradecido por tanta dedicação e eficiência no cumprimento dos projetos municipais, encomendou uma estátua em bronze em homenagem ao prefeito, quando, repentinamente, sem mais aquela, ele comunicou que ia para Ponte Nova. Em verdade não foi por conta própria, diz o relato: vieram buscá-lo, pois era fugitivo do Hospício Santa Isabel de Lavras, sendo as suas últimas palavras: – Por essas e outras é que não atravessei o Rubicon!

        Por premência de tempo, depois de contar sumariamente o enredo da estória, vou ater-me apenas ao título: “Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon”.

      O apelido Lulu representa uma referência canina ao mundo moderno das madames. Já Bergantim é o nome dado às antigas naus movidas a remo ou à vela. O antigo e o moderno na composição de um mesmo nome criam uma irônica contradição em termos.

      Rubicon, como todos sabem, é o rio que ficou conhecido quando Roma proibiu seus generais de atravessá-lo acompanhados de suas tropas. As águas do Rubicon, empregadas metaforicamente por José Cândido, funcionam como uma quase intransponível fronteira entre a sanidade mental e a loucura. Águas do rio ou muros do hospício que impediam o livre trânsito de Lulu Bergantim em direção à liberdade criativa, idealizadora de utópicas cidades.

        Assim, voltou para o manicômio o ex-prefeito, coberto de glória e quase erigido em estátua, mas, infelizmente, não tendo conseguido atravessar o Rubicon.

       A obra de Marques Rebelo é, principalmente, a de um romancista, cronista e memorialista do rio de Janeiro. Renato Cordeiro Gomes escreve que o escritor “oferece toda uma cidade feita de letras e costurada com sarcasmo e ternura”.

        No entanto, Marques Rebelo não se restringiu a reconstruir literariamente o rio. teclou em sua máquina de escrever roteiros de são Paulo a Itajubá, de Salvador a Cataguases, cidade onde surgiu a Revista Verde, importante divulgadora do modernismo mineiro.

       A crônica de Marques Rebelo sobre Cataguases,  misto de sarcasmo e ternura, lembra uma época em que a palavra turista era ainda inédita naquela cidade e, talvez por isso mesmo, seus habitantes esperavam, ansiosamente, a visita da sociedade Filarmônica de Petrópolis. Foguetes, discursos, corbeilles de flores. Como o prefeito não dera a mínima importância para a cerimônia de recepção dos músicos, eles foram recebidos pelo senhor Arruda, jornalista local e rábula conceituadíssimo. No jogo desta oposição, os contornos do Humor-Ironia já começam a desenhar-se. Representava a municipalidade não o prefeito, mas um rábula conceituadíssimo, elevado, quase, à insigne categoria dos melhores causídicos. A figura do presidente da Filarmônica também não era das mais conspícuas: cavalheiro gordo, suarento, de guarda-pó e boné que, logo ao chegar, teceu largos elogios a Cataguases... antes mesmo de conhecê-la.

      Os turistas saíram para visitar a cidade e o resultado foi que em cinco minutos tinham visto tudo. só havia um remédio: descansar na Praça rui Barbosa, onde desembrulharam os farnéis, abriram garrafas térmicas e lá ficaram o dia todo “como um bando de ovelhas cansadas”, até que o trem, às seis horas, levou-os de volta para a fresquíssima e pitoresca Petrópolis.      

       Diferentes manifestações de Humor podem ser encontradas no chiste, no gracejo, na pilhéria, na anedota. Para o sucesso de uma anedota é necessário, algumas vezes, concisão e rapidez de quem a conta. É um corisco rasgando o céu da seriedade. Outras vezes, ela pode construir um caso alongado que vai preparando o final jocoso. mas a piada só desperta o riso na primeira vez.

      Nas Crônicas sobre medicina e saúde de Moacyr Scliar, recém-lançadas sob o título Território da emoção, entre casos e conselhos, repletos de “humor e leveza” como se lê na orelha do livro, o autor insere fatos curiosos. Transcrevo uma historieta do médico-escritor:

  Dois homens na sala de espera de um médico sofrem do mesmo problema: insônia. Um deles diz que está satisfeito com isso. O doutor receitou-lhe um maravilhoso sonífero; ele não apenas dorme, como tem sonhos arrebatadores, no qual belíssimas mulheres acariciam-no sem cessar. O outro pede ao médico que lhe receite a mesma pílula. O efeito, porém, é absolutamente decepcionante: o paciente consegue dormir, mas só tem pesadelos. Queixa-se ao doutor, que lhe dá a explicação: – o primeiro cliente é particular, você é do SUS.

       Já o malemolente humor baiano de Jorge Amado traz para o velório de Quincas Berro Dágua os amigos do inesquecível personagem, talvez “uma grande troupe de palhaços saltimbancos”, no dizer de Ana Maria Machado. Possivelmente sob os vapores da pinga, todos teriam sido levados a crer que o defunto Quincas estaria vivo... quase diríamos, nós leitores, irremediavelmente vivo. Isto por que o conhecido e indefectível sorriso do morto, estampado em seu semblante maroto, contrariava claramente a fria e triste imagem da morte.

     O que aconteceu naquela movimentada noite? Quitéria, esvaziando o velório de uma possível atmosfera soturna, confunde a morte com o sono, quando exclama: “– O desgraçado dormiu...” O que foi confirmado por Pé-de-Vento:

      “– tá num porre, mãe...”

      Depois, sempre solícito, Pé-de-Vento presenteia o morto com uma jia verde. A ideia talvez fosse de que o bicho guardasse os poderes dos verdadeiros amuletos e trouxesse paz ao espírito de Quincas.

      – Cadê o sapo? – pergunta Negro Pastinha.

       – Sapo, não. Jia. Agora... pra que lhe serve?... não sei...

      – É... talvez ele goste.

     Em uma vigília sem choro nem vela, o trágico é amenizado pela envolvente magia e graça de Jorge Amado.

      Com razão, reconhece Ana Maria Machado, em seu livro Romântico, sedutor e anarquista: como e por que ler Jorge Amado hoje, o “humor libertário do romancista muitas vezes fundido ao onírico e delirante, seja por meio de estados alterados de consciência (da bebedeira ao transe) ... seja pelo coro coletivo que multiplica as vozes e as máscaras em sucessivas contribuições cômicas”.

      Sabemos que não é raro um escritor ser abordado por algum distraído admirador, mais fascinado pela glória literária do que conhecedor dos livros de seu ídolo. Por isso, “Dialogando com o público leitor”, título já levemente irônico da coletânea de crônicas Sempre aos domingos, João Ubaldo, um mestre na literária utilização do cotidiano e das nuances da oralidade, registra um esdrúxulo diálogo.

       – Boa-tarde, o senhor me desculpe eu estar interrompendo a sua leitura, mas é só um minutinho.

        – Ah, pois não.

– É o seguinte, não é o senhor que é o escritor? O menino ali me disse que o senhor é o escritor. Não vou interromper nada, pode ficar descansado, o senhor pode continuar com a sua leitura. Admiro muito a sua obra O sargento de milícias.

      – Mas não fui eu quem escreveu esse livro, foi outro. Bem que podia ter sido eu, mas não fui eu.

     - Ah, então o senhor não é o autor do “Sargento”?

      – Sou, mas de outro sargento, o sargento Getúlio.

      – Ah, mas é claro, que besteira minha. O sargento de milícias é de Lima Duarte, não é?

      – Lima Duarte? O sargento...

      – Sim, Lima Duarte, do Policarpo Quaresma, grande autor, para mim maior do que Machado de Assis.

      – Lima Barreto.

      – Sim, claro, claro, Lima Barreto, eu sempre confundo, Lima Duarte é outro. E não foi Lima Barreto que escreveu O sargento de milícias?

       – Manuel Antô... Deixa pra lá, tudo bem, seu Rosalvo.

       – Pelo amor de deus, nada de formalidades, que é isso de “seu Rosalvo”, os amigos a gente trata pelo nome.

       E o quiproquó vai-se estendendo sinuosamente pelas linhas da crônica como um samba do crioulo doido do Stanislaw Ponte Preta.

      O recurso do diálogo, quando é bem aproveitado, o torneio das frases, a maneira de concatenar a elocução das falas, a pitoresca diversidade das vozes produzem uma movimentação teatralizada e propicia o desencadeamento do Humor ou do cômico.

     O Humor pode servir para ridicularizar, satirizar, satanizar o inimigo, mas também para introduzir o que o espanhol chama de moraleja, “explicitação da moral de uma estória.” Rabelais, La Fontaine, Voltaire, a picaresca de Lazarillo de Tormes retiravam de um simples acontecimento burlesco considerações e ensinamentos sobre o comportamento ético. Também Carlos Heitor Cony, na crônica intitulada “Da salvação da pátria”, monta com apenas dois paralelepípedos a sua peça de resistência contra o que chamou a quartelada de 1º de abril, no livro O ato e o fato, de 1964.

   

     Vejo um heroico general, à paisana, comandar alguns rapazes naquilo que mais tarde o repórter da TV-Rio chamou de “gloriosa barricada”. Os rapazes arrancam bancos e árvores. Impedem o cruzamento da Av. Atlântica com a Rua Joaquim Nabuco. Mas o general destina-se a missão mais importante: apanha os paralelepípedos e concentra-se na brava façanha de colocar um em cima do outro.

    [...] pergunto para que servem aqueles paralelepípedos tão sabiamente colocados um sobre o outro.

      – General, para que é isto?

      O intrépido soldado não se dignou olhar-me. Rosna, modestamente.

      – isso é para impedir os tanques do I exército!

............................................................

      Eu acreditava até então que dificilmente se deteria todo um exército com dois paralelepípedos ali na esquina da rua onde moro. Não digo nem pergunto mais nada. Retiro-me à minha estúpida ignorância.

      Mais tarde, Cony ouve pelo rádio que “os dois paralelepípedos do general foram eficazes: o I Exército, em sabendo que havia tão sólida resistência, desistiu do vexame e aderiu aos que se chamavam rebeldes”.

     Do momento histórico, que poderia ser descrito com pinceladasépicas, o arguto cronista descobre aquela razão da desrazão cervantina que se esconde por trás de uma falsa seriedade. Cony escreve com a pena da galhofa e a tinta... do ridículo.

       O dicionário da língua Portuguesa, dirigido pelo filólogo e acadêmico Antônio Houaiss, registra a acepção da palavra “anedota” também como episódio, conto, historieta, ao lado da mais conhecida: a piada. O Diccionario de la Real Academia Española define anécdota como relato breve de um fato curioso. O Anedotário Geral da Academia Brasileira, de Josué Montello, guarda este espírito. Não há intenção de contar piadas, mas de reunir de forma leve e interessante algumas estórias ocorridas com os acadêmicos. É um trabalho bem-humorado de memorialística. Muita coisa se perderia se não fosse reunida por quem viveu longa e intensamente a vida da ABL, tendo sido, inclusive, seu Presidente. Na anécdota intitulada “Verso e Burocracia”, ele salva do esquecimento alguns versos de circunstância de Olavo Bilac. escreve Montello:

        Secretário do Governo no estado do Rio, Olavo Bilac soube conciliar, muitas vezes, o estilo burocrático com a fluência poética, redigindo em verso o expediente da repartição. Eis um de seus ofícios:

Niterói, 10 de janeiro,

Saúde e fraternidade.

Demita-se o tesoureiro

Por falta de assiduidade.

E lavre-se a portaria,

O decreto ou alvará,

Que entrega a tesouraria

Ao poeta luís Murat.

       E o teatro? Em seu interessante livro Almanaque Armorial, o próprio Ariano Suassuna revela que, no Auto da compadecida, João Grilo e Chicó formam uma dupla tão unida por suas diferenças que é lembrado, mutatis mutandis, o que Cervantes já imortalizara nas aventuras de um personagem e seu alter ego, Dom Quixote e sacho Pança. No Auto da compadecida, com sinal trocado, atuam João Grilo e Chicó. Esclarece suassuna: “João Grilo, o pícaro, é que tem arrancos de coragem como Quixote, e Chicó, um mentiroso sonhador e lírico, é que tem a covardia e o bom-senso de Sancho.” 

      Acontece, então, um fenômeno raro, mas muito bem resolvido por Ariano Suassuna: o Humor e o cômico se ajustam no aproveitamento do riso (o cômico) e da introspecção (o Humor) para fruição de uma completude no gran finale da peça.

     Vou trazer, agora, a esta iluminada cena da Academia Brasileira de letras, aquele que ficou conhecido pela sua projeção internacional como signatário em 1948 da declaração Universal dos direitos Humanos; também como influente e ubíquo jornalista e escritor e, na ABL, em seu largo e operoso período na Presidência: Belarmino Maria Austregésilo Augusto de Athayde. Austregésilo de Athayde. Tão identificado com a Academia, Athayde algumas vezes até suportou incompreensões em relação à instituição.

       Ao candidatar-se à ABL, recebe uma carta do xará Tristão de Ataíde, Ataíde sem agá, expressando a garantia do seu voto mas, ironicamente, alertando que ele terá de “vestir aquele belíssimo fardão, que é a maravilha das nossas cozinheiras e de nossos filhos menores”. Tristão imagina os dois no Purgatório, sendo anistiados em alguns anos de penitência por terem, “sentados em confortáveis cadeiras azuis, escutado, pacientemente, às quintas-feiras, Fulano e sicrano”. E termina a sua carta, “mas até lá vamos tenteando as coisas cá por baixo. Um grande abraço do seu velho amigo Alceu”.

      Cícero e Laura Sandroni, em seu livro: Austregésilo de Athayde: “o século de um liberal”, registraram a paródia de Millôr Fernandes ao reescrever, nas páginas de O Cruzeiro, a história de chapeuzinho Vermelho no estilo de Austregésilo de  Athayde:

      Tenho que chapeuzinho Vermelho, essa pobre moça vítima das insídias do lobo mau, não está sozinha nesta Batalha das eras. envolvida no ardil torpe de um ser altamente experimentado nas artimanhas de nosso tempo, ela se deixou sucumbir. Não deduzamos, porém, que tudo esteja perdido.

      O linguista russo Yuri Tynianov já havia escrito que “a estilização está próxima da paródia”.

     O multifacético e indefinível Humor-Ironia recebeu a atenção da Filosofia desde os seus primórdios. Sócrates definiu a ironia como docta ignorantia, “a inteligente ignorância”, e São Tomás de Aquino afirmou: Ludus est necessarius ad conversationem humanae vitae. “O Humor é necessário para a conversação e a vida humana.”

     O Humor bebe das águas da Picaresca espanhola, da Patafísica, de Alfred Jarry, do Esperpento, de Valle-Inclán, das Greguerías, de Ramón Gomez de la Serna, da farsa, do burlesco, da Commedia dell’Arte, do Anedotário. Humor, resultado da correlação entre uma subjetivação criadora e o mundo exterior, propicia momentos risíveis ou apenas sorrisíveis da alegre História da Humanidade.

       Se voltarmos ao dualismo riso e melancolia, que poderia, segundo a fórmula do acadêmico Moacyr Scliar, constituir-se na bipolaridade salvadora do brasileiro, encontraremos na família que Sergio Paulo Rouanet denominou de shandiana, desde o humor de Laurence Sterne ao humor de Machado de Assis.

       Senhoras e Senhores, antes que a luz se apague e caia o pano sobre a representação da comédia O Humor e o Cômico na ABL, peço o seu aplauso para os acadêmicos que participaram deste Espetáculo:

     Geraldo Holanda Cavalcanti, Otto Lara Resende, José Ccândido de Carvalho, Dias Gomes, Marques Rebelo, Álvaro Moreyra, Josué Montello, Olavo Bilac, Moacyr Scliar, Alceu Amoroso Lima, Jorge Amado, Ana Maria Machado, Carlos Heitor Cony, Eduardo Portella, Ariano Suassuna, João Ubaldo Ribeiro, Machado de Assis, Cícero Sandroni–Belarmino Maria Austregésilo Augusto de Athayde.

 

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