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Psicanálise
Isaías Pessoti

“Uma obra de ficção, histórica ou não, atrai porque traz o prazer lúdico da fantasia, do pensamento delirante. Mas, para fascinar o leitor, deve preservar-lhe a segurança de não se extraviar num universo sem limites, de ‘não se perder de si mesmo’. A fantasia literária resulta da capacidade de embarcar no delírio, com bilhete de volta na mão. A imaginação é uma forma de delírio, ou vice-versa. Mas é um delírio reversível. A loucura é a imaginação desgarrada, sem retorno. Ou é, mais tecnicamente, uma ditadura da imaginação sobre as outras formas de perceber e conhecer. É a imaginação imposta, a distorcer sensações, percepções, julgamentos. O Quixote guerreiro é um louco, portanto. O Quixote poeta apaixonado não difere do apaixonado ‘normal’ que idealiza a amada. Isto, na medida em que o delírio  sobre a amada for reversível. Isto é: na medida em que  abandona tais delírios porque as lides guerreiras o chamam. Não importa aqui se tais lides são delirantes ou não. É a reversibilidade do delírio que distingue a fantasia criadora (literária ou não). Vejo outro aspecto a distinguir loucura (delírio) e ficção ou criação literária: uma trama é uma série de episódios com personagens que vêm e vão. Tudo isso é criado arbitrariamente, delirantemente, se quiser. Mas esse fantasiar, que é imaginação pura, difere do delírio louco. Para o louco, os limites das categorias fatos, coisas e pessoas são fluidos: um cavalo pode ser verde e cantar a ‘marselhesa’. Na literatura isso pode ocorrer, mas dentro de uma espécie de pacto tácito com o leitor (veja-se Italo Calvino). Entra-se racionalmente na esfera do absurdo e ali vigem outras regras. Nesse mundo novo, outra racionalidade impera: um visconde partido ao meio obedece limitações impostas pela sua categoria. Um barão que vive sobre as árvores também segue a lógica e a racionalidade que cabem a quem não pisa no chão e enfrenta problemas de seu ambiente especial. Parece-me que o critério é mesmo o da reversibilidade da fantasia ou do delírio. E uma certa cumplicidade entre autor e leitor, quando se parte para o fantástico, tipo Calvino”.

Fonte: Cult (S.Paulo), fevereiro de 1998 – José Guilherme R. Ferreira          

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