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Como escreve?
José Castello

"Não tenho uma rotina de trabalho. Sou caótico e cultivo um pouco esse caos porque, caso contrário, não consigo trabalhar. Trabalho no meio do caos. No Ribamar aconteceu o seguinte: durante dois a três anos, fui escrevendo uma porção de coisas sem saber como elas se ligavam. Várias vezes me pareceu que tudo aquilo era uma maluquice e que não chegaria a lugar nenhum. As coisas não paravam de crescer, e em direções diferentes e não combinavam. Cheguei a achar várias vezes que estava escrevendo três ou quatro livros ao mesmo tempo. Cheguei até a considerar repartir o livro, escrever um, depois outro. Um dia, finalmente, incorporei essa história ao próprio livro, grande parte das coisas que aconteceram comigo contei no livro. Um dia, estava na casa da minha mãe, em silêncio com ela. Os dois parados, sentados olhando para a parede e aí ela começou a cantarolar uma canção de ninar. Ela me disse que era uma canção que meu pai cantava quando eu estava chorando muito e ele queria me colocar para dormir. Perguntei de onde ele tirou a música e ela disse que era a música que o pai dele cantava e o avô dele cantava para o pai dele. Portanto, já se tem um fio entre os homens da família. Era uma canção que tinha uma transmissão masculina na família; para as mulheres, a canção não era cantada. Ela me falou isso de uma forma muito clara. Eu pedi e ela cantou inteira. Lembrava letra e música. Cantou várias vezes e eu decorei a música, anotei a letra, liguei para o meu irmão Marcos, que mora em Campinas. Mandei a letra por e-mail, cantei a música pelo telefone várias vezes, ele fez a partitura e me mandou. Quando olhei a partitura, falei: “Aqui está o meu livro”. Mas como um livro está dentro de uma partitura? Descobri que tinha que encaixar o livro, a borda que faltava, aquele monte de coisa que estava escrevendo. Sempre falta uma borda, um desenho, como se fosse a moldura de um quadro. A moldura que faltava era aquela partitura. Transformei-a num esquema. Sempre que aparece a nota sol é a minha viagem a Parnaíba; sempre que aparece a nota fá é a minha leitura do livro Carta ao pai do Kafka, a carta que ele escreveu ao pai, com quem também tinha imensa dificuldade de se relacionar, assim como eu tinha com o meu pai. Comecei a adaptar meus escritos para aquela partitura. Estabeleci para cada nota musical certo número de caracteres. Quanto mais rápida é a nota, menor é o número de caracteres. Fiz um esquema de caracteres e comecei a encaixar o livro dentro daquele esquema. Então, cortei o livro, que é um quinto, talvez menos, do que escrevi. Deu muito mais trabalho cortar do que escrever. Mas foi um momento de mais lucidez, porque, entre aspas, eu sabia o que estava fazendo. Mas parecia um trabalho de louco. As pessoas me perguntavam como encaixar um livro em uma canção de ninar. Tinha tudo a ver. O livro é sobre a minha relação com meu pai. A música era a música que meu pai cantava para que eu dormisse. Portanto, para que calasse a boca. A música não tinha nome. Dei o nome de Cala a boca. Era uma coisa totalmente arbitrária. Eu poderia ter inventado outra coisa. O que quero dizer é: se não vou visitar a minha mãe nesse dia, se ela não canta essa canção, se não dou importância a essa música, se ela não lembra direito da letra da música e não conta que era a música que o meu pai cantava para mim, se não resolvo anotar a música e a letra, se não passo para o meu irmão e ele não passa para uma partitura, se ele não me manda essa partitura e se não tenho em cima da partitura essa idéia, o Ribamar não existiria. Eu teria escrito o livro, mas não dessa forma. Chegamos, então, ao que mais me interessa: o papel decisivo do acaso na criação. Somos muito mais escravos do acaso do que donos do que escrevemos".

Fonte: Rascunho (Curitiba), janeiro de 2011

“Assim que abro a página em branco do computador, escrevo sempre no alto a palavra ‘NADA’. Sem isso, não consigo começar. Tenho a sensação de que ela me dá um chão. Fica mais claro que não tenho compromisso com nada, ou ninguém, e que posso avançar em qualquer direção. Tenho sempre ao meu lado dois ‘amuletos’. Um pequeno elefante de bronze que herdei de meu pai. E um Quixote e um Sacho de madeira, dessas esculturas para turistas, que comprei em Sevilha, em minha primeira viagem à Europa, quando tinha 15 anos. O Quixote está com a perna quebrada e emendada com fita durex, mas não me afasto dele. Preciso estar sozinho no escritório. Gente ao meu lado, seja quem for, me atrapalha – o que é espantoso, eu sei, para um cara que, como eu, trabalhou durante duas décadas em imensas redações. Sim, gosto de ouvir música clássica. Nesse exato momento, por exemplo, ouço os Caprichos, do Paganini.”

Fonte: http://michellaub.wordpress.com (23/10/2012)

 

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