"No meu caso, quando começo a escrever, o texto já vem praticamente pronto; parece que ele se elabora no inconsciente ou no subconsciente. Eu me comparo a uma piscina: hoje eu estou inteiramente vazia, mas amanhã estarei cheia d’água. O inconsciente vai alimentando, vai nutrindo, vai juntando a memória convertida em imaginação, que é uma memória falsa, adúltera, recriada pela mentira, pela ficção. Eu acho que a criação literária é uma mitografia, é uma ficção. Quando começo a escrever, eu não sei o que vou escrever. Por exemplo, o meu livro mais conhecido, Ninho de cobras, nasceu de uma circunstância curiosíssima. Eu trabalhava num jornal durante a ditadura militar. Um dia tocou o telefone: era um coronel do exército que queria falar comigo. Eu fiquei completamente atemorizado, me coloquei à disposição do coronel, que já estava no prédio do jornal, no andar inferior. Eu pensava que ele ia me prender, mas, depois, compreendi que era um pobre coronel cassado que tinha mandado um artigo para o jornal; o diretor dissera que o artigo (sobre transporte) estava comigo para se livrar dele. Eu fiquei impressionado com aquele episódio porque senti que vivia num mundo kafkiano onde ninguém é inocente ou culpado. Você não fez nada, mas se um coronel vem lhe apanhar para ser preso, você até aceita e concorda com aquilo. No dia seguinte, não sei por que cargas d’água, eu comecei a escrever a história dessa raposa. Aquilo foi se avolumando, mas o núcleo nasceu desse incidente, que não tem nada a ver com o romance, mas tem no sentido da descoberta do mundo em que vivemos. Este é um fato pessoal que acabou sendo convertido numa obra de arte".
Fonte: RICCIARDI, Giovanni. Auto-retratos. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
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