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Literatura epistolar

 

Mário de Andrade x Fernando Sabino

 

     S.Paulo, 10-01-42

  Fernando Tavares Sabino

  Si você quiser continuar sendo escritor, antes de mais nada tem que encurtar o nome. Tavares Sabino, Fernando Tavares, Fernando Sabino. O que é impossível é Fernando Tavares Sabino. Me desculpe esta sinceridade e entremos pelas outras.

  Muita ocupação, só nesta noite de sábado pude ler os seus contos e lhe escrevo imediatamente, enquanto a impressão é nítida. Saio do seu livro com a convicção de que você é um escritor, um artista. Não que o livro seja bom, mas é uma estréia excelente, uma estréia promissora, denunciando fartas possibilidades.

   Antes de mais nada: eu achava que os estreantes deviam pôr nos seus livros a idade que têm. Que idade tem você? Isso importa extraordinariamente num caso como o seu, por causa justamente das possibilidades fartas. Si você está rodeando os vinte anos, de vinte a vinte e cinco como imagino, lhe garanto que o seu caso é bem interessante. Mas si você já tem trinta  ou trinta e cinco, já estudou muito (você parece de fato se preocupar com a expressão linguística) e está homem-feito, não lhe posso dar aplauso que valha. Neste caso o livro fica mediocre, sem o menor interesse. É apenas um de muitos.

   Seu livro está muito bem escrito. Não há dúvida nenhuma que você, como bom mineiro (?) tem o sentimento da língua, como cultura e princiopalmente como estilo, como expressão do pensamento. E tem no que escreve um sabor brasileiro, muito firme, muito nítido e muito atilado. De extremo bom gosto. Quero dizer: você não cai em nenhum exagero de brasileirismo falso. Com um bocado mais de apuro estilístico e de conhecimento técnico da linguagem, das linguagens populares do Brasil, você chegará a ótimo, talvez grande escritor. De uma língua que já é indiscutivelmente nacional.

    O problema, a meu ver, é tanto mais grave no caso de você que nele se intercala o da sua personalidae de ficcionista. Será você de fato um contista? Este problema é dos mais graves e dos que você precisa resolver para si próprio. É incontestável que você não tem nenhum conto verdadeiramente forte como assunto. Cujo assunto imponha o conto por si mesmo, como Os Faroleiros, de Monteiro Lobato, como Pedro o Barqueiro, de Afonso Arinos. Não nego que sejam "contos" os contos de você, mas não parece, pelo livro, que você tenha forte imaginação criadora, grande imaginativa, excepcional faculdade de invenção.

    Seus contos são lees e delicadas transposições líricas da vida, como o admirável "Anos Verdes", ou irônicas transposições realísticas da vida. Estou pensando em Machado de Assis. Seus contos estão longe de ser impressionantes. Longe de prenderem a gente por uma idealidade humana definitiva. Aí é que a arte, como beleza de criação técnica, interfere definitivamente para impor e justificar um criador. Si você não fizer coisas maravilhosamente bem feitas como técnica, como estilo, como arte de escreve, como bom gosto espiritual, você será apenas "mais um".

    No gênero dos seus contos, você tem, a meu ver, descaídas lastimáveis, pricipalmente para o lado anedótico. Apesar das observações, excelentes, no realismo humorístico com que você esteriotipa gestos e expressões verbais, contos como As Rosas Iam Murchar e o Padre Venâncio, são simples anedotas simplórias, de lastimável descontrole e nenhuma autocrítica. Mesmo o caso do telefone que, não posso negar, é muito engraçado e me fez rir bastante, é, em última análise, grosseiro, tratado sem tacto, sem delicadeza, bacalhoada de Portugal com arrotos e todas as faltas de medida. Quando você tem, pra salvar seus contos na arte, de abandonar qualquer colorido mediterrâneo e se esquipar no senso de medida dos franceses, e na delicadeza espiritual de ingleses e nórdicos.

    Mas ainda eu me pergunto si sua tendência é realmente para o conto e não para o romance... Pela faculdade de observação naturalista, pela riqueza de tipos psicológicos, não sei, sinto em muitos dos nossos contistas, e em você, romancistas verdadeiros, que por preguiça, por falta de tomar fôlego, erram de espécie, se dispersam no conto, quando são romancistas legítimos.

    Não sei se você consegue perceber que no fundo seu livro me interessou muito. Mais você que o livro, aliás... Conforme a idade, lhe garanto que você pode ir longe. Mas não como um Jorge Amado, pouco trabalho, ignorância muita, criação de sobra. Você tem que trabalhar dia por dia. Como um Machado de Assis.

     E não lhe seria possível botar um bocado mais de responsabilidade humana coletiva nas suas obras?...

                                                                                      Mário de Andrade

                                                                R. Lopes Chaves, 546 -S. Paulo

Fonte: SABINO, Fernando. Cartas a um jovem escritor e suas respostas. Rio de Janeiro: Record, 2003.

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