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História sincera do Metrô
Contada pelos funcionários

                     OMT: orgware do Metrô


Laurindo Junqueira

     As tecnologias realmente inovadoras em escala global têm surgido, todas, nos grandes aglomerados humanos - e não nos pequenos. Essa constatação nos perturbava a vários de nós do Departamento de Métodos Operacionais-OMT do Metrô de S.P. Tempos duros, aqueles! Vários de nós tínhamos saído recentemente das catacumbas da Ditadura Militar. Talvez só Freud explique o fato de que viemos todos a trabalhar nos túneis que invadiriam e subverteriam a velha e desvairada paulicéia...

     Afinal, se São Paulo já era, àquela época do OMT, um dos maiores aglomerados mundiais, por que não nos distinguíamos enquanto cidade, no contexto global, até então, como capazes de também vir a sermos grandes geradores de conhecimentos passíveis de virem a ser considerados como “de ponta”?


     De fato, o Sindicato dos Metroviários - que hoje não mais se lembra nadinha (nem aparenta fazer questão alguma de se lembrar) de nenhum de nós omtianos - nasceu sob a nossa égide. Fomos nós – Pereirinha, Celsomt, Furtado, Toco, Alfredo e eu que, em plena Ditadura Militar, sob o peso mortal ainda presente dos anos de chumbo grosso, ainda sob os fogos que dizimaram centenas de jovens iguaizinhos a todos nós omtianos, resolvemos, num pequeno mas seleto grupo, criar um sindicato só nosso. E conseguimos, numa empreitada que surpreendeu a direção pelega da antiga Associação dos Empregados do Metrô. Os nomes dos jornais sindicais “Plataforma” e “Bilhete” nasceram da nossa lavra...


     Com efeito, fomos nós, do OMT – e não mais ninguém - que articulamos a verdadeira “tomada do poder” necessária para criar um sindicato só nosso, “não pelego”, inovador... e, por que não, “revolucionário”. Triste e vã ilusão! O atual sindicato, que tantas greves malsucedidas tem realizado, deve a sua criação aos militantes do OMT que somos nós mesmos, hoje aqui presentes, ou transformados em poeira de estrelas...

    Seishun jamais soube de nada dessas coisas, tal o respeito que sempre tivemos por ele e a tentativa de preservá-lo das nossas “loucuras”. Precisei de mais de 35 anos de vida para saber que Seishun havia sido um dos líderes da associação dos estudantes do ITA–Instituto Tecnológico da Aeronáutica; que, nos malfadados anos de 1964. Muitos dos estudantes do ITA haviam sido expulsos por terem convicções políticas e ideológicas distintas daquelas dos militares de plantão. O brilhante e inesquecível Celsomt havia sido um dos atingidos pela Ditadura. Ele fora expulso do ITA e impedido de cursar até o fim o seu curso de engenharia! Pode?!


     Como pode um país que se pretende ser “do futuro” se dar ao luxo de excluir de suas lideranças tecnológicas um cidadão como ele?! O OMT deve muito a ele! Caio, Alfredo, eu mesmo, Michelin, Pereirinha... e até mesmo o Brito, que não tem nada – felizmente! – de técnico, devemos – todos – muito a Celso Dietrichkeit , que ousou morrer bestamente ao reagir a um assaltante, que ele tanto defendia enquanto ser social, perseguido pelo poder econômico.


     Ah! Celso... Que saudade, cara! Cuméquiocê pôde nos abandonar tão cedo, velho! Qui coisa mais besta, sô! Ocê reagiu a um assaltante, meu! Morrestes de facada, Celso! Sai dessa, cara! Ocê que decidiu inscrever o nome de todos nós até o último RIP (Requiescat in pace) nas atas de nossas assembléias, foi um dos primeiros a partir. Ah! Deixa prá lá!


     Tivemos, de fato – nós, do OMT -, dois grandes “adversários” em nossa existência enquanto departamento de uma empresa intensamente inovadora, como foi o Metrô. Um deles foi o Engº Antonio Maria Claret Reis de Andrade, então “poderoso” chefe de projeto do Metrô. Claret abominava as nossas sugestões de mudança do projeto elaborado por sua equipe e enfrentava com bravura e pertinácia as nossas propostas, tidas como extemporâneas, inoportunas, inadequadas, sonhadoras... Todas elas, incumbia a Seishun defender no contexto “tratorístico” que a companhia tinha que ter. Vocês já pensaram sobre o que isso representava?!


     Claret era, porém, um adversário leal. Toda a sua equipe era leal e podíamos sempre travar com cada um dos seus técnicos um bom combate. Era muito instrutivo enfrentar opiniões opostas às nossas, então. Isso nos preparava para a vida como ela é, obrigando-nos a caminhar com os pés no chão, depois de estarmos sempre por muito tempo com a cabeça nas nuvens. A principal característica do OMT era exatamente essa: o Metrô precisava, enquanto o tatuzão furava os subterrâneos da cidade, ter uma equipe capaz de pensar longe, de voar alto, no que se refere à inserção real e concreta do novo meio de transporte no território da cidade.
     

     Essa função de voar alto já existia na Companhia. Os chamados “sete homens de ouro” da equipe de Claret já tinham a função de pensar além do dia-a- dia. Outras equipes também o faziam, cada uma à sua moda, como a turma do Belda, por exemplo. E o mesmo ocorria com a Deobel e os seus recursos humanos. Acho, cada vez mais, que éramos felizes e não sabíamos... Que falta faz essa turma toda para o Brasil atual!


     Pois não é que foi o próprio Claret que, num dia desses, tranqüilo, apesar de toda a sua proverbial vitalidade, apesar dos seus setenta e três aninhos de vida, almoçando tranquilamente comigo e revendo o passado, de cima da sua proverbial experiência profissional, me disse, de forma peremptória, cabal:
-“Laurindo! Deixe-me lhe revelar uma coisa: Se não fosse o OMT, o Metrô não poderia ter tido, jamais, o sucesso que teve!”. E continuou: “Eu, que tanto confrontei o Seishun, 40 anos passados, posso reconhecer, agora, que o grande fator de sucesso de nosso empreendimento comum não foram as importantes definições relativas ao hardware e ao software do metrô – tomadas em grande parte por mim e por minha equipe -, mas sim aquelas referentes à organização (ao orgware, diria eu) do empreendimento metroviário”.


      E acrescentou mais algumas observações fundamentais:
-“Não bastava eu ter escolhido o que havia de melhor, de mais seguro, mais rápido, mais confortável e mais confiável para São Paulo. Era preciso que os seres humanos a quem o empreendimento se destinava pudessem ser capazes de operá-lo e de usá-lo adequadamente. E isso o Seishun e o Cláudio conseguiram!"


    Essa necessidade indescartável de ter que associar uma nova tecnologia ao meio em que ela será aplicada, ainda hoje é motivo de muita discussão. E cremos que assim será para todo o sempre. A natureza humana não acompanha com a velocidade suficiente a evolução tecnológica. Esse fato dá o que pensar,,, Ele envolve questões de ordem sociológica e até filosófica que muitas vezes nos escapam a todos nós.


     Claret, evidentemente, estava sendo modesto com ele mesmo e com sua equipe! Ele sempre é modesto... Não fora a qualidade das escolhas que ele e sua equipe fizeram - contando com as nossas contribuições e muitas vezes passando por cima delas -, quanto aos equipamentos e aos sistemas que vieram a compor o tão bem sucedido Metrô de São Paulo, e hoje não seríamos nada, nós, do OMT – nadinha de nada! Nossos pretensiosos manuais de organização e métodos, nossos volumosos e numerosos cadernos de procedimentos operacionais, referentes aos equipamentos, aos sistemas e às operações a serem desenvolvidas pelo novo meio de transporte que viria a revolucionar São Paulo – todos eles não passariam hoje de mero... pó, descartável e inútil, como todo pó parece ser, não fora o trabalho do Claret e de sua equipe.

     Mas seria mesmo “descartável e inútil” esse pó? Afinal, há quem suponha que a vida no Universo se tenha propagado exatamente por causa do pó pan-gérmico, que teria levado a cada lugar e a todos os lugares a mensagem da vida... Eu disse “mensagem da vida”, e não simplesmente “vida”. Eu me referi não somente ao hardware, como também ao software da vida. E o OMT representou a vida, mais do que todos e qualquer um de nós possa ter imaginado!


     Há cientistas famosos (Freeman Dyson) que, hoje, entendem a vida como tendo sido criada e recriada várias vezes, algumas delas por processos de divisão celular, ou seja, por multiplicação do hardware, e também por replicação do software, isto é, dos planos, programas e procedimentos que regem o hardware. Certamente se poderia estender as considerações de Dyson para outros níveis de consideração, ainda mais abrangentes que os dois por ele citados.


     Haverá muitos, entre nós – e, principalmente, fora de nós – que acharão isso tudo uma pura besteira... E eu ouso discordar, por tudo o que a vida tem me ensinado.


     Ufanismo à parte, essa curiosa questão do papel da tecnologia na sociedade e na economia da cidade, percebida ou não percebida que tivesse sido por todos os membros do OMT – mas certamente por alguns deles -, e hoje tão inevitavelmente presente em tudo aquilo que todos e cada um de nós fazemos, viria a moldar muitas das coisas que – cada um a seu modo - viemos, no futuro, a fazer – todos nós -, eu penso!


     No futuro, cada um de nós, em sua própria e singular atividade pós-extinção do OMT tão “maldito e malquisto”, viria a usar e a usufruir das benesses do mesmo modelinho “simples” adotado pelo Seishun, pelo Cláudio, pelo Claret, pelo Plínio... e por todos e cada um de nós .


     Quanto à maldição e à malquerência que acompanhou o OMT durante toda a sua existência, e que causou, até mesmo, a sua extinção inglória, elas não são um fenômeno estranho para a história da humanidade. Na verdade, as questões aqui levantadas são quase atávicas, tão recorrentes que foram na história da civilização. Essas pragas da mente que nos destruíram, mas que nos deram vida, ao mesmo tempo, não devem perturbar o nosso pensamento... Ao analisarmos o passado e ao projetarmos o futuro – coisas que aprendemos a fazer com excelência no OMT -, devemos nos pautar em saber que todos os poetas são, inevitavelmente, sempre classificados como “marginais”. Isto é, passam eles, os poetas – sempre -, ao largo do pensamento dominante em cada época. Todos nós, do OMT, éramos tidos como “poetas” por quem “de direito” e, especialmente, por quem “de direita”... Essas facções nossas adversárias não se confundiam, esteja claro aqui!

     Mas não há poeta que não anteveja o futuro, mesmo que se suportando apenas em leves traços pairando no ar.... O OMT era isso, não vos parece?

     Nós do OMT éramos todos poetas... E a Humanidade toda deveria adorar todos os poetas! E deveria adorar em altares dourados todos nós, omtianos... De fato, aos poetas cabe – e a ninguém mais – antever, com base em apenas alguns leves traços pairando no ar, os sinais do futuro. Esses sinais quase invisíveis costumam ser transparentes aos demais seres humanos e cabe apenas aos “pensadores marginais” vê-los e a partir deles tirar conclusões.

     Toda e qualquer tecnologia – pude aprender isso à beça! – não se resume apenas a uma única dimensão interpretativa. De nada adiantaria o mais avançado hardware, se não fosse um software adequado a ele. Com efeito, equipamentos e instalações mal programados, de pouco ou nada valem. E não bastariam essas duas dimensões tecnológicas se não existisse um orgware, isto é, uma organização que conjuminasse ambos esses aspectos com o caráter humano dos destinatários dessa tecnologia, sejam eles os seus beneficiários, sejam eles os seus operadores. A junção entre as dimensões materiais e as dimensões humanas da tecnologia é um requisito fundamental – sine qua non, mesmo – para que qualquer empreendimento tecnológico de transporte de grande porte possa vir a ter sucesso. E assim tem sido e assim será, a cada avanço que a civilização tiver que dar.

     A função do OMT tem muito a ver com isso tudo. Enquanto Claret (e Plínio, em certa medida) projetavam e construiam hardwares & softwares, Seishun, Claudio & Cia Bela projetavam e construiam orgwares, usuwares e ambientwares. Ah! Que coisas chatas, essas, não?!
    

     Ou seja, cabia ao OMT inserir a tecnologia revolucionária do metrô na sociedade real e concreta assentada no território paulistano, com todas as suas idiossincrasias, suas reações, seus constrangimentos, viessem eles dos usuários ou dos operadores.


     A aplicação desse conhecimento quase filosófico, mas certamente de caráter sociológico-tecnológico, adquirido pelo Metrô de SP, em toda a envergadura que atingiu os profissionais envolvidos no planejamento, no projeto, na operação, na manutenção e na administração de um empreendimento tão bem sucedido quanto o metrô de São Paulo, na ação completa que exerceu e que ainda vem exercendo, passadas mais de quatro décadas de existência, ação essa entendida sob o enfoque sistêmico e holístico, exercida por todos os seus departamentos, sem exceção, não se resume mais a ela própria, a Cia do Metrô, evidentemente.

 
      E não se resume, também, apenas aos meios públicos de transporte coletivo. Tive a oportunidade de experimentar aplicar o que aprendi com o OMT em muitas outras realidades, de outras cidades e de outros países, como técnico, como consultor e como “autoridade de transporte”. Tive, mais do que isso, a oportunidade ímpar de expor a experiência do OMT para centenas – repito: centenas! - de outras cidades e países, de todos os cinco continentes. Não houve quem não admirasse o nosso trabalho – novamente, ufanismo à parte!


      Acho que estas coisas nunca foram ditas, nem ao Seishun nem ao Claret, nem ao Cláudio nem ao Plinio. Mas nunca é tarde para as boas intenções. Espero que esta seja uma boa intenção, ao comemorarmos pela 51ª. vez a nossa comunhão: que ela venha a se propagar por todo o território nacional, por todo o mundo, quem sabe, já que... o mundo merece!


      Abraços demorados e efusivos a cada um e a todos nós! Lembranças saudosas dos que já se foram e com quem aprendemos tanto! Abraços a eles também! E aos seus descendentes, que são muitos...
E por derradeiro, muito obrigado, OMT, por tudo o que foi proporcionado para o nosso mundo – ufanismo à parte, como sempre!
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Laurindo Junqueira Filho é
Físico e trabalhou no OMT de 1972 a 1976; exerceu diversos cargos na área dos transportes públicos, tais como Diretor de Manutenção da CMTC, Secretário Municipal de Transportes de Campinas e de Santos; atualmente é Superintendente de Planejamento da São Paulo Transportes-SPtrans (Ex-CMTC)

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