Cão carioca
João Labrador
A vida levada por aqui não é das piores. Não dá para comparar com Paris, onde temos assento à mesa nos bons restaurantes. Por outro lado, não se compara a Pequim, onde também temos lugar na mesa, só que servidos no prato. Eu, por exemplo, moro num apartamento ao lado da praia e três vezes por semana saio à noitinha para passear no calçadão de Copacabana. Naquele passo de caminhada, acompanho o exercício de minha dona com a brisa do mar batendo na cara. Melhor que isso só a caminhada de domingo pela manhã, quando o calçadão fica cheio de gente e cachorros. É uma festa: encontro amigos, aprecio a beleza das cadelas e faço o cortejo com uma ou outra mais espevitada. Perto do meio dia damos uma parada para descanso próximo a umas barracas e, invariavelmente, ganho uma salsicha, que tiveram o mal gosto de chamar "cachorro quente".
Em casa vivo sozinho, apenas com minha dona que se chama Soninha, e posso ficar à vontade em qualquer lugar. Tenho o meu canto de dormir, de comer e do et cetera, mas o lugar que mais ocupo é o sofá da sala, onde me esparramo gostoso. Quando a Soninha está alegre, me puxa ao lado e ficamos ali numa conversa fiada cheia de mimos. Quem vê de longe (e de perto mais ainda) diria que estamos namorando. Numa situação oposta, ela nem precisa chamar. Eu vejo seu semblante caído, a mão segurando o queixo e, num pulo só, lá estou ao seu lado, em cima se for preciso. Um dia a tristeza era tanta que vi umas gotas d'água cairem de seus olhos. Fiquei consternado e tentei exugar ao meu modo. Mas de nada andiantou, quanto mais eu lambia mais água jorrava. Uma aguinha salgada que até gostei. Ela também gostou, porque logo em seguida sorriu, me abraçou forte, me deu uns beijos e foi preparar a refeição. Naquela noite jantamos juntos à mesa.
Estes momentos de tristeza são raros. No mais das vezes o que impera é a normalidade: nem alegre, nem triste, e para mim está bom assim. De vez em quando, aos domingos, antes de anoitecer, surge uma festa ou algo parecido. Aparece um monte de amigos e amigas do trabalho, de estudo, de bebida que a Soninha cultiva. O apartamento fica pequeno para tanta gente, mas eu não me incomodo. Se a minha dona está feliz porque eu haveria de não estar? Além disso são pessoas legais, não me importunam. O que me desagrada nestes dias é que não posso ocupar o sofá, tenho que ficar no chão ou perambulando entre pernas. Certa vez insisti em permanecer ali, mas levei uma bronca: "O sofá é para as visitas, ouviu bem!?" Tive que ouvir bem com o dedo em riste balançando na frente do focinho. Isso não é tão incômodo, o tapete também tem lá seu conforto. De modo que eu fico ali calado, ouvindo as conversas que não entendo nem são de minha conta. Mas teve uma que me interessou.
Eles passaram a falar de um vira-lata que se apaixonou por uma cachorrinha de madame. Era uma história antiga ocorrida em princípios do século passado, da qual eles sabiam apenas o início. O pobre coitado perseguia a madame sempre que ela saia para passear com a cachorrinha. Mas, sem chance alguma de sequer uma aproximação. Já no segundo encontro, se é que se pode chamar assim, a madame veio com uma correia na mão pronta a descer no espinhaço do vira-lata. Pelo que falavam fiquei sem saber se era uma história verdadeira ou inventada. Talvez nem eles mesmos soubessem. Diziam que a história foi contada por uma tal de Paulo Barreto, mais conhecido como João do Rio. Com esse nome devia ser um cara famoso por estas bandas. Mas, isto não importa. O que importa é que gostei da história mesmo sem saber como terminou. Através dela fiquei sabendo que já naquela época havia cachorro de madame passeando numa boa por aí, tal como temos hoje a "Pepetela", comentada até nas colunas de jornais. Por aí se vê que não é de hoje que esta cidade acolhe bem meus semelhantes.
Noutro domingo de festa, que a Soniha dá o nome de reunião, voltaram a falar de cachorros, creio, com a intenção de me envolver na conversa, visto meu interesse pela anterior. Agora falavam de uma história de fato inventada, de literatura, uma crônica de Carlinhos de Oliveira, intitulada Cãomício no calçadão. O título me interessou nas duas palavras: calçadão eu conheço bem, é o lugar onde faço meus passeios e "cãomício" eu não sei o que é, mas carrega junto o nome da espécie. Uma baixinha, de óculos tipo fundo de garrafa, explicou tratar-se de uma alegoria, o que não ajudou em nada. De qualquer modo fiquei sabendo que ocorreu nos anos 70, num momento em que era proibido fazer comício. Com a proibição, o tal cronista realizou um comício de cachorros revindicando uma série de coisas, tais como a instalação de "pipi-dog" nas ruas, consultas periódicas ao veterinário, alimentação balanceada etc. O "cãomício" terminou numa grande arruaça, devido à intervenção de um vira-lata que sugeriu a necessidade de haver maior iguldade entre eles, proclamando: "Todo poder aos cachorros, sem distinção de raça, sexo ou cor!". A história acabou com o vira-lata preso sob a acusação de "cãomunista".
Mesmo sendo inventada é uma boa história. Vê-se nela a intenção de nos atribuir algumas características humanas. Não deixa de ser uma consideração. Mas fiquei me perguntando: com tanta gente ali reunida, não tem uma história reeal para contar? Esse pessoal vive apenas de fantasia, pura ilusão? Encarei-os um a um com a indagação exposta no focinho. Um deles, que me olhava meio espantado, como que entendendo minha perplexidade, pediu a palavra para contar um caso acontecido e conhecido por todos no bairro Ipanema, no final dos anos 60. Era um cachorro boêmio, de nome "Barbado", que fazia ponto no "Jangadeiro". Os intelectuais o adotaram e serviam-lhe chope num prato. O dono do bar não gostava que o cachorro bebesse de estômago vazio, e servia-lhe antes um filé. Até os motoristas de ônibus conheciam-no porque ele tomava um na praça General Osório, ia até a Central do Brasil e voltava. Chegou a ficar famoso, substituindo um cachorro amestrado na peça Ratos e homens, de John Steinbeck e virou mascote da Banda de Ipanema nos desfiles de carnaval. Na crítica de Fausto Wolff sobre a peça, publicada na Tribuna da Imprensa, todo o elenco e a produção foi espinafrada. Só restou elogios para "Barbado". Tempos depois o cachorro fez amizade com um camioneiro e pegou a estrada como tantos jovens naquela época. Seu nome ficou imortalizado num verbete de Ela é carioca: a Enciclopédia de Ipanema, de Ruy Casto.
Finalmente uma história real para encerrar a conversa voltando ao seu início. Além de mostrar o quanto os cariocas gostam da gente, serviu para me certificar do quanto eu também gosto desta cidade. Não digo que sou apaixonado porque eu sou fiel e paixão mesmo eu só sinto pela minha dona. Serviu, também, para deixar um segundo registro sobre "Barbado", pois como digno representante da espécie, ele bem que merece.
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