Antonio Tabucchi
Entrevista conduzida por Adelino Gomes, publicada na revista Mil Folhas, de Lisboa, em 22/04/2008.
É na ampla sala de entrada do primeiro andar da casa de Lisboa que nos recebe. A dois passos do Príncipe Real, onde gosta de beber “um cafezinho” e de olhar as pessoas, a “apanhar a vida alheia”. A mulher, Maria José, consegue dissuadi-lo de partilhar com os entrevistadores o café que lhes oferece, mas não de fumar, fumar sempre.
Tem uma embirração crónica (mas suave, pelo menos desta vez) com o ritual fotográfico. E um gosto evidente pelo jogo da pergunta-resposta. Chegou dias antes das eleições em Itália, deu já uma saltada ao Alentejo, para passar ao papel uns textos que andou a construir mentalmente. Resultado de um método que iniciou no seu último romance, preparado ao longo de dez anos. Em notas que encheram de cadernos uma mochila que levava consigo para todo o lado.
Quando chegou a hora de escrever, ditou-o em voz alta. Durante dois meses, no Alentejo. A versão portuguesa de “Tristano Morre” tem sessão de lançamento marcada para 2 de Maio, no Teatro Nacional D. Maria, em Lisboa. Apresenta-o José Sasportes, com passagens lidas por Raul Solnado, trechos de Schubert (amplamente citado no texto) e duas canções populares, italiana e grega, ao piano de Daniel Godinho, da Orquestra Metropolitana de Lisboa.
Porque é que este livro só sai agora, quase dois anos depois de ser publicado em Itália e um ano e tal depois de sair em França?
Porque o tradutor tomou todo o tempo necessário. E acho que fez muito bem. Esta tradução é excelente. Exprimo toda a minha gratidão ao Gaëtan Martins de Oliveira. Um tradutor tem de ter o tempo necessário, como se tinha antigamente, e não seguir as pressões dos editores. Em França saiu quase em simultâneo, mas eu tinha acabado de enviar o manuscrito ao editor, vivia em Paris e ao mesmo tempo, com o meu tradutor, que é um grande amigo, fazíamos a tradução.
Acompanhou também a tradução para português, que conhece tão bem que até já escreveu nessa língua um dos seus livros [“Requiem”, 1991].
O Gaëtan teve a amabilidade de querer fazer comigo uma revisão. Não teria sido necessário. Parece escrito em português. O que para um livro é uma grande vantagem.
Deu algum contributo para aquela palavra “Blateleblá” que usa para designar o fenómeno da televisão de hoje? A palavra existe?
Não. A palavra foi traduzida de várias maneiras, nas diferentes línguas em que saiu o livro. Em italiano é “pippo-pippi”. Nome ridículo, faz pensar imediatamente na televisão, ou melhor, no que seria a ontologia da televisão, o espírito profundo desta presença que ocupa o mundo contemporâneo. Os gregos encontraram uma tradução divertidíssima: “Katzipipares”. Antigamente, na Grécia, as pessoas que faziam a peregrinação até Jerusalém tinham direito de pôr no apelido o prefixo “katzi”. Katzi Crishostomiris queria dizer alguém que se chamava Crishostomiris mas que tinha feito a peregrinação. Esta fórmula tornou-se ridícula e representa uma velha maneira — piedosa — de ser dos gregos. “Pipares” era um programa estúpido da televisão grega. Os franceses — “dingo- dingue” — pegaram em “dingo”, o grandalhão do Micky Mouse, de Walt Disney, e “dingue”, estúpido.
E os portugueses? Como chegaram a “blateleblá”?
É “blá-blá” com “televisão” no meio… É bem achado.
O livro tem acção na Grécia, Espanha, Itália, onde é que o escreveu?
Foi escrito durante dez anos.
No final agradece aos amigos em casa de quem escreveu e diz que o fez também na sua. Mas como tem pelo menos três — esta, em Lisboa, a de Itália e uma para onde costuma ir no Verão, no Alentejo…
Comecei-o há dez anos, em cadernos. Os cadernos foram crescendo. Mesmo enquanto escrevia outras coisas, quando fazia uma viagem, levava-os comigo. Cheguei a ter uma mochila com eles. A uma certa altura eram um monte. Precisavam de uma revisão completa. Deitei fora muita coisa. Os escritores normalmente gostam mais de cortar do que de acrescentar. Quando decidi mesmo escrever, foi escrito em voz alta.
Como?
Eu lia e uma rapariga — a Valentina Parlato, a quem agradeço no livro, é uma amiga da minha filha — transcrevia no computador.
A casa de Lisboa, como já disse noutras entrevistas, é mais para ler?
É mais para ler.
Em 1999 já falava deste livro. Dizia que seria escrito no Alentejo e que seria sobre um homem de uns 80 anos. No livro agradece aos amigos que lhe emprestaram as casas para o escrever.
O livro foi escrito pelo mundo fora. Mas a sua primeira redacção, à máquina, foi mesmo no Alentejo.
As descrições tão minuciosas que faz, seja da Itália, seja da Grécia, dir-se-ia que necessitavam de uma “mirada” sua. Como é que o fez no Alentejo?
O Alentejo, para escrever, é um sítio ideal. É como se estivesse fora do mundo. Aliás, tinha o privilégio de não ter telefone. Era mesmo o isolamento, a dois passos de Lisboa…
Em qualquer destes países encontraria aldeias e praias e paisagens que o poderiam igualmente inspirar...
Os países que aparecem no livro aparecem por razões históricas. Portugal foi, como dizer?, o ninho no qual me refugiei para pensar noutras coisas.
A crítica francesa ficou entusiasmadíssima. A revista “Lire” considera-o mesmo o seu melhor livro. Está de acordo?
É sempre difícil autojulgarmo-nos. Posso dizer que é o livro que me custou mais a escrever e no qual eu investi mais. Colou-se-me muito na pele... Lembro-me de a certa altura estar a dizer frases como se eu fosse Tristano. Passou um certo tempo até eu sair finalmente dessa personagem. Nele, à primeira vista, eu sou o escritor que nunca fala e que está a ouvir, mas é evidente que tive de ser simultaneamente o ouvido e a voz. E devo dizer que ter de ser a voz é mais forte do que ser o ouvido.
Andou dez anos à procura da forma de contar a história?
Andei sobretudo a pensar numa coisa que me interessava e interessa muitíssimo: a voz. A voz humana. O conflito, simbólico, entre a voz e a escrita.
No livro, contraria a ideia feita de que às palavras, leva-as o vento. Pelo contrário, diz: “verba manent”, as palavras ficam…
Eu queria escrever um livro em que o estatuto da voz fosse maior do que o estatuto da escrita. A voz é um fundamento da nossa civilização ocidental. Ela gozou sempre de um estatuto mais importante do que a escrita. A civilização ocidental nasce com essa visão da voz fecundante, criadora. “Ao princípio era o verbo.” O mais antigo dos mitos gregos, o mito órfi co, atribui um poder à voz que nunca foi atribuído à escrita. Orfeu canta. E quando ele canta, diz o mito, as árvores inclinam-se e as feras amansam. Graças à potência da voz, ele pode sossegar, tranquilizar, convencer os monstros dos infernos e recuperar o cadáver. A ideia da ressurreição é atribuída ao poder da voz, nunca ao da escrita. Os que escrevem, são os escribas. Cristo não tinha bibliotecas, dizia Fernando Pessoa…
… que já estava aqui a faltar…
… exactamente. Cristo não escreve. Cristo fala, são os outros que escrevem. E aí há esta pequena arrogância de Tristano, que diz ao escritor: tu és o escriba, eu sou a voz. Por que é que a voz é mais importante? Porque é orgânica, biológica. A escrita não é biológica, é mineral.
Mas é através da escrita que a voz permanece. Diz-se que, mais do que as palavras, contam os nossos actos. Ao privilegiar a voz do protagonista, dá-se-lhe a possibilidade de ele compor a vida à maneira que mais lhe convém, reescrevendo a história. Qual será a versão mais verdadeira?
Eu pus em exórdio o verso de Paulo Celan: “Quem testemunha pela testemunha?” O jogo poderia ser este: há uma voz que fala; um ouvido e um escritor que transcreve, à sua maneira, com as suas palavras (e escrever com as suas palavras já significa modificar); o qual passa a um terceiro, que sou eu, com o meu nome escrito aqui [no frontispício do livro], que escrevo verdadeiramente. Neste trânsito da verdade, há o facto de que, se calhar, a verdade é múltipla.
Na trama do livro estão ao mesmo nível a história de Tristano e coisas como uma varejeira que o incomoda, um pedido de morfina para aliviar dores. Não parece haver pressa nenhuma em seduzir o leitor. Aqueles 30 dias é como se fossem 30 anos. Conquistar o leitor não foi, para o autor, uma prioridade?
Na verdade, é um livro que não faz concessões. Chegado à minha idade, depois de escritos tantos livros, essa preocupação era de deixar-se de lado. Até comigo próprio, muitas vezes. Diz-se que os escritores escrevem para si próprios. É verdade. E fazendo muitas concessões a nós próprios. Às vezes é bom sermos severos... Este livro levou muito tempo a ser escrito (embora a escrita propriamente dita tenha depois levado apenas dois meses). Quando o comecei, se calhar era demasiado novo para antecipar algumas coisas que se percebem melhor quando se tem mais idade.
A morte?
A morte e a vida em retrospectiva. É bom termos vivido mais um bocadinho. Se não, a vista fica mais curta.
Outro dos temas, talvez o principal, é o heroísmo. Escreve lá uma frase que todas as críticas retomam: “Um milímetro a mais para um lado e és um herói, um milímetro a mais para o outro e és um cobarde.” É tudo igual?
Eu sempre fui contra um heroísmo de que as instituições, no meu país, estão a viver muito. Um heroísmo retórico, patrioteiro e vagamente fascizante. Imagine que o Presidente da República deu recentemente uma medalha de oiro a um civil que foi para o Iraque como guarda-costas. Infelizmente, foi raptado pelos terroristas e foi filmada a sua execução. Não se vê o momento da execução mas ouve-se uma frase deste senhor: “Agora é que vou mostrar-vos [aos assassinos] como morre um italiano.” Esta frase tornou-o herói. Neste heroísmo eu não acredito.
Não acha que os povos precisam de heróis?
Nas praças. Como dizia o Brecht, coitados daqueles povos que precisam de heróis. Estou de acordo com ele. Acho que heroísmo é uma coisa que se conquista quotidianamente, vivendo de uma maneira simples, honesta e muitas vezes difícil.
O mesmo quanto à traição. Não acha que banalizou demasiado a traição ao mostrar-nos um herói-traidor?
Não faço no livro o elogio da traição. Ele pode ter “traído” o seu comandante dando a saber que ele estava ali escondido. Mas o facto de ter atraído com esse estratagema um pelotão inteiro de alemães, tendo-os exterminado, significa que ele sacrificou um homem para matar um pelotão inteiro. É o velho problema de Judas…
… cuja nova interpretação o livro antecipa…
… que é quem faz, no fundo, o sacrifício extremo. Deveria ter-lhe custado muito denunciar Jesus. Mas graças a isso Cristo pode ressuscitar. Se não houvesse Judas, Cristo teria vivido até aos 80 anos.
Fala também na morte, algo que está presente na sua obra. O que aprendeu sobre ela, neste livro, ao vestir a pele de alguém a 30 dias de morrer?
Este livro aproximou-me muito da ideia da morte. Quando se é mais novo, é uma ideia tão longínqua que normalmente pensamos que nunca morremos. É uma das maiores desgraças que pairam sobre o mundo moderno. As pessoas que estão no poder, sobretudo, devem pensar que nunca vão morrer. É por essa razão que são tão estúpidas. A modernidade elidiu a ideia da morte. É uma omissão incrível. Um dos factores mais negativos do comportamento da nossa sociedade. Deveria ensinar-se aos miúdos, na escola, da maneira mais natural, que temos de morrer. A ideia de sermos mortais ajuda muito a viver. Mas a nossa sociedade escondeu totalmente a ideia da morte. Em compensação, porém, estamos cheios de cadáveres. É só abrir a televisão. Como pode funcionar bem uma sociedade em que há muitos cadáveres mas não há a ideia da morte?
A serenidade que Tristano atinge, ao ponto de estar preocupado, várias vezes ao longo do livro, com a varejeira, transmite a impressão de que ele não sofre da angústia de quem tem a morte tão próximo dele.
Penso que a ideia da morte dá muita liberdade. Só o facto de pensar que temos o direito de a administrar torna-nos muito mais livres.
O não acreditar que haja vida para além da morte ter-lhe-á facilitado essa sensação?
Eu sou ateu. Ou pelo menos não acredito numa transcendência. Não há aquela tripartição da religião católica em mim, a colocação, como se fosse a plateia, o galinheiro, etc. A entrada é livre.
Já está a escrever outro livro?
Estou a tomar umas notas.
A forma, como vimos, desempenha um papel importante nesta obra. Julgo até que marca a diferença. Vai mantê-la?
Este livro foi pensado na forma oral. E teve-a. No fundo é um solilóquio. Funcionou como ponto de passagem. Pensei utilizar outro método, que estou a exercer com um certo prazer: não escrevo. Manualmente. Escrevo mentalmente e decoro.
Como os africanos nas aldeias?
Ou como os miúdos na escola. O facto físico de escrever tem uma influência muito grande na escrita. Armazeno mentalmente, mesmo que não seja todas as palavras. Funciona, claro, em textos pequenos. Por isso estou a escrever contos, neste momento. Ainda há três dias estive no Alentejo: andei um mês a pensar num texto, decorei-o e escrevi-o agora.
Usa neste livro uma frase demolidora, ao descrever a televisão-divertimento em Itália: “Estou a ver-vos a todos, ao serão (…) fitando enfeitiçados aquela fogueira eléctrica e murmurando em coro muuuu…” É um fenómeno universal.
É. Mas há países mais permeáveis a esta perversão. É óbvio que aquilo produz uma mudança interna muito grande. A Itália apanhou uma injecção deste tipo de televisão há 30 anos. Há 30 anos que vêem este lixo todas as noites. Aquilo tem de produzir alguma coisa…
Essa máquina de lixo também produz pérolas, de vez em quando. Como a rádio, no passado, a televisão leva, a quem está afastado dos grandes centros, um outro mundo de produções na área do pensamento, das artes.
Estou a falar sobretudo da chamada televisão privada, comercial. Essa tem outras intenções: vender produtos e fazer publicidade, de que vive. Não lhe interessa levar outro mundo para as pessoas que vivem dele afastadas. Ou então leva-lhes um mundo feito de papel celofane, totalmente falso, ilusório, feito de mau gosto, de vulgaridade e grosseria. A Itália tem 60 milhões de habitantes, 10 por cento lêem jornais. São esses, apenas, quem apanha notícias, reflexões da imprensa escrita. Os outros são expostos todos os dias a este tipo de produção. E aí, o que é que há?
É preciso um antídoto da família, da escola, da sociedade.
Tudo se privatiza, como quer o neo-liberalismo. A escola também. A família já não [actua]. Não há uma protecção estatal, como as nossas democracias a conceberam nos finais do século XIX, como garantia, e tudo é deixado à iniciativa privada de um cidadão qualquer. Qual o interesse do cidadão qualquer que quer pôr a funcionar uma televisão? Fazer dinheiro. Não educar o povo de Trás-os-Montes.
Como resolver o problema?
Não sei. Sendo eu uma pessoa com uma visão muito liberal da sociedade, nunca posso pensar num Estado forte. Mas também recuso-me a pensar no desaparecimento total do Estado, em favor da iniciativa privada. Seria o desastre. Viu-se, até numa democracia muito forte, como a dos EUA: vem o [furacão] “Katrina” sobre Nova Orleães e o Estado não está lá. O “Katrina” é, nesse plano, quase uma metáfora.
Foi professor, é um intelectual que intervém regularmente na imprensa, escreve livros, é pai. Falharam todos os intelectuais, a família?
“Chi ha sbagliato?” [Longa pausa] Não sei, não sei. Uma vez pus a conversar duas figuras e uma perguntava-se: quem é que errou? Uma delas era o Papa; a outra Fidel Castro. Percebia-se, mas não estava explícito. Republiquei- a neste livro que agora saiu em Itália. Chamava-se: “O tempo está cansado.” Acho que há uma disparidade demasiado grande entre a palavra do escritor, a força dos pais, na família, e esta máquina enorme da sociedade comercial. Nós somos muito mais fracos. Não tenho nenhuma ilusão sobre a força que pode ter um livro. Embora os livros sejam uma coisa estranha. Analisando o momento, o instante, acho que ganha toda esta coisa que está à nossa volta. É como no atletismo: nos 100 metros, o escritor perde. Podemos pensar numa maratona. Se calhar, no curso dos anos, é capaz de ter mais influência um livro do que um programa de televisão comercial. Mas neste momento estou perfeitamente convencido de que o programa desta noite do Canale Cinque, de Berlusconi, tem mais força do que o meu livro.
No entanto, amanhã, se calhar, vai publicar um artigo num jornal qualquer do mundo.
Claro, não vou desistir, é evidente. É o meu dever. Não vou render-me, pelo menos.
O Nobel faz parte dos seus sonhos?
Só pensar no que seria enfrentar uma cerimónia daquelas!… Gostaria, se mo trouxessem aqui à minha casinha de Lisboa. Sem ter de enfrentar aqueles banquetes. Não recusaria…
Figuras que admira, hoje?
O nosso mundo actual não me parece pródigo em figuras entusiasmantes. Mas algumas emergem. Gosto muito daqueles que são solidários e que dão a sua vida para os outros. No meu país, por exemplo, há um “médico sem fronteiras” que se chama Nino Strada, que está a construir um hospital na África Central. Andou em todos os lados onde havia guerra, com o seu hospital de campo. Como um mecânico: as bombas inteligentes destruíam os corpos, os miúdos de Angola saltavam sobre as minas e ficavam sem uma perna, e ele reconstruía a perna. Podia ser um grande cirurgião e ganhar muito dinheiro, na sua clínica, em Milão. Gino Strada. Gosto muito dele. Um padre comboniano, Alex Zanotelli. Vive na periferia de Lagos (Nigéria). E gosto muito de cientistas. Seja dos biólogos, que lutam contra as doenças que afligem o nosso corpo, como o oncologista Veronesi, seja dos que, como Stephan Hawks, estudam uma coisa que nunca conseguimos perceber, o tempo. Gosto portanto daqueles que estudam a matéria e daqueles que estudam a antimatéria. E depois também gosto daqueles que acreditaram na democracia, mesmo em tempos difíceis. Por exemplo, aqui, apoiei Mário Soares. É uma pessoa que fez transitar Portugal da ditadura até à democracia. E depois até à Europa. Quer dizer, é um homem que entrou no barco e pôs-se a remar, no seu país. Pessoas como ele precisam do apoio do intelectual. Fazem alguma coisa pelos outros.
Quem são os seus amigos em Portugal?
Tenho, felizmente, muitos. Alguns já morreram — o Zé [Cardoso Pires], o Alexandre O’ Neill, vários outros. A lista seria infinita. O grande ponto de encontro de todos é a casa em Colares de dois grandíssimos e queridíssimos amigos — Alice e Hellmut Wohl, americanos de passaporte e portugueses na alma. Estou a dar-me conta de que é difícil fazer amizades com pessoas mais novas. Quando isso acontece é uma alegria. Fui ajudado nos últimos livros por dois jovens — a Valentina Parlato, filha do Valentino Parlato, director do “Manifesto”, e o Simone Verde, um rapaz e uma rapariga de 30 anos. Ficámos muito amigos.
Mas sempre teve esse contacto, enquanto professor, na universidade...
Sim, mas há sempre aquela etiqueta, entre professor e aluno. Depois íamos à pizzaria, mas sermos assim cúmplices, amigos [é mais difícil]… Gosto de ter amigos mais novos. Como os meus filhos.
Está reformado. Sente-se com mais tempo?
Gosto muito de perder tempo. Acho que é um grande privilégio.
Como é que perde tempo em Lisboa?
Olhando para as coisas, para as pessoas na rua, para a paisagem. A pessoa fica a pensar, a aprender coisas, observa. Pelo gosto de ver, de apanhar a vida alheia, ou de a imaginar. Gosto muito de passar pelo jardim do Príncipe Real, de tomar um cafezinho, de ouvir as conversas dos outros.
Passaram 40 anos sobre o seu encontro com Portugal. Muitos portugueses fazem um balanço amargo destes últimos anos — os ideais, a solidariedade. A sua amargura vai só para Itália. Porque é que poupa este seu segundo país, ou este seu outro país, Portugal?
A minha amargura vai também para Portugal, por muita coisa, em geral. Talvez que respondendo possa fechar esta nossa conversa com uma frase de Fernando Pessoa, quando ele diz: “Falta por aqui uma grande razão.” Acho, efectivamente, que hoje em dia falta por aqui — e por aí — uma grande razão. Teremos de nos contentar com as pequenas razões. É a nossa época. Esta não é a época dos grandes ideais. Não existem grandes chamas de entusiasmo. (E por isso) O importante é manter aceso o fósforo. Contentemo-nos em que o fósforo não se apague.
Estava em Portugal no dia das eleições em Itália. Aquelas que podiam afastar Berlusconi, em cujo combate se empenhou fortemente. Desistiu de votar?
Posso votar por correspondência. Mas tinha já feito um boletim [de voto] um mês antes das eleições, com o qual tinha dado vários votos, não só um [contra Berlusconi]. Foi este aqui [aponta para o livro “L’Oca al Passo-Notizie dal Bruio che Stiamo Attravesando”].
Tem de me traduzir este título.
“O Ganso a Passo — Notícias da Obscuridade Que Estamos a Atravessar”. Foi editado há 20 dias. Mesmo em cima das eleições. Para dar o meu contributo eleitoral. Escolhi as minhas intervenções políticas durante dez anos, isto é, desde quando apareceu este curioso indivíduo que se chama Berlusconi. Escolhi os artigos mais representativos que publiquei no “El País”, “Le Monde”, “Il Manifesto”, “Unita”, “Herald Tribune”, “La Reppublica”, “Clarin”, “Diário de Notícias”…
Cada artigo, um voto…
Acho que [assim] votei muito. E a direita deu-se conta. Fez-lhe muita publicidade…
Como é que olha para o resultado?
Com muita perplexidade e com um certo medo.
Porquê?
Estamos numa situação institucionalmente não clara. O Tribunal Constitucional vai reconhecer, obviamente, os resultados, embora Berlusconi faça declarações perfeitamente subversivas e muito inquietantes. Mas ouvi uma declaração do Presidente da República, Carlo Azeglio Ciampi, dizendo que, por causa de pequenos factores burocráticos, não vai investir no Governo de Prodi. Alegou que ele, Presidente, está a dois meses de acabar o mandato, e que [isso] será da competência do seu sucessor. Critico fortemente esta posição. Acho que com o seu comportamento tornou-se involuntariamente cúmplice da política de Berlusconi. Foi um presidente que me lembrou muito Américo Tomás com a tesoura na mão a cortar fitas.
Que explicação dá para que metade dos eleitores tenha votado em Berlusconi, apesar de todas as denúncias de pessoas como Tabucchi, num país tão politizado como Itália?
Politizado até certo ponto. A Itália sempre foi um país profundamente dividido. Com 50 por cento de democratas com voz, e a outra metade sem voz, fascizante. Um país que nunca teve um processo de penitência como tiveram os alemães [em relação ao nazismo]. Fomos libertados [na II Grande Guerra] graças à Resistência e aos aliados, que ganharam. A Itália invadiu a Abissínia, a Etiópia, a Líbia. Bombardeou Trípoli, a Grécia. O pequeno Vittorio Emmanuelle III foi o imperador da Albânia e da Abissínia. [Derrotado o fascismo de Mussolini] Virou-se imediatamente de página e a Itália esqueceu tudo isto. Ficou submersa a “maioria silenciosa”, que agora se tornou uma maioria barulhenta. Essa voz voltou porque houve alguém que lhe deu voz. A Itália pertence àquela categoria de países que nunca fi zeram uma verdadeira lavagem da sua consciência, no sentido histórico. Portugal pode vir a ser a mesma coisa. Não foi uma revolução popular que deu a democracia, foi um golpe de Estado militar.
O que é que o atrai em Portugal que não encontra lá
Portugal não tem exactamente os mesmos defeitos. Tem outros, claro. Não há país perfeito. Mas pode ser uma compensação ao meu país, da mesma forma que a Itália pode ser uma compensação de Portugal. De um ponto de vista antropológico, Portugal é um país onde as pessoas são suaves e pacatas. O meu país tornou-se, nos últimos anos, quase histérico, muito agressivo. Incomoda-me enormemente ver aquela agitação. Para quê? O povo italiano foi sempre naturalmente elegante. Mesmo quando era misérrimo, tinha uma elegância que lhe vinha, não sei, da pintura. Agora transformou-se na elegância dos estilistas. Qualquer bicho careta sem o vestido/o fato Armani não sai à rua. Pensar que um povo com uma alma tão grande como o italiano acha hoje que os valores da vida são comer, defecar, ver televisão, andar na rua, ter dinheiro…
Muitos leitores estarão, como eu, neste momento, a pensar em Portugal pós-anos 80.
Talvez se trate de um vento que está a soprar sobre todos nós. Há muito pouco a fazer, para além de o constatar. Procurando [valorizar] aquela humanidade que fi cou ainda na Humanidade.
Não o sente, no entanto, em Portugal, ainda?
Não com esta força. Até em Lisboa, para não falar no campo, há ainda uma humanidade que me dá um certo alívio. Acho a Itália muito hostil. Alguns partidos, como a Liga Norte, exploraram esta hostilidade, com xenofobia, racismo. A certa altura [dá vontade de gritar]: “Dêem- me um bocadinho de humanidade, por favor. Alguém que me faça um sorriso, que me dê um abraço, que me diga: ‘Olá, estás bom? Queres um bocadinho de pão com chouriço?’”
Acha que com [Romano] Prodi vai mudar alguma coisa?
Não sei. Os estragos estão feitos. Vi o último filme do [Nanni] Moretti, “Il Caimano”, grande filme [ainda não estreado em Portugal), e acho que ele tem muita razão. Remediar os estragos vai ser difícil. Prodi terá de remar contra a corrente. O problema não é de mera gestão política. É realmente, neste momento, um problema antropológico.
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