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Grandes Entrevistas

Cecília Meireles

 

Publicada originalmente na
Revista Manchete, nº 630
16/05/1964
Extraído de: Pedro Bloch entrevista
Rio de Janeiro: Bloch Editores, 1989

 

Tenho um vício terrível  - me confessa Cecília Meireles, com ar de quem acumulou setenta pecados capitais. Meu vício é gostar de gente. Você acha que isso tem cura? Tenho tal amor pela criatura humana, em profundidade, que deve ser doença." Em pequena ("eu era uma menina secreta, quieta, olhando muito as coisas, sonhando") tive tremenda emoção quando descobri as cores em estado de pureza, sentada num tapete persa. Caminhava por dentro das cores e inventava o meu mundo. Depois, ao olhar o chão, a madeira, analisava os veios e via florestas e lendas. Do mesmo jeito que via cores e florestas, depois olhei gente. Há quem pense que meu isolamento, meu modo de estar só ("quem sabe se é porque descendo de gente da Ilha de São Miguel em que até se namora de uma ilha pra outra?"), é distância quando, na realidade, é a minha maneira de me deslumbrar com as pessoas, analisar seus veios, suas florestas.

 

Cecília é carioca. Nasceu em novembro, dia de S. Florêncio (filha de Matilde e Carlos Alberto de Carvalho Meireles, funcionário do Banco do Brasil), em Haddock Lobo, na Rua São Luís. Seriam quatro irmãos, mas nunca chegaram a ser dois sequer, porque, mal nascia um, o outro já tinha morrido. Só ficou Cecília. Perdeu a mãe com três anos e meio, tendo sido criada pela avó, Jacinta Garcia Benevides, da Ilha de São Miguel, Açores, descendente de gente que andou do lado do Infante D. Henrique. A ela dedica Cecília:

"Minha primeira lágrima caiu dentro dos teus olhos

Tive medo de a enxugar: para não saberes que havia caído ...

No dia seguinte, estavas imóvel, na tua forma definitiva,

Modelada pela noite, pelas estrelas, pelas minhas mãos.”

 

Minha primeira escola foi a Estácio de Sá, que depois passou a Escola Normal, onde me formei. Olhando para trás me sinto uma criança extremamente poética. Em casa de meu padrinho, Louzada, onde brincava, sempre silenciosa e observado-a, via estátuas, pinturas, coleções de pequeninos, objetos e leques em vitrinas, coisas que me levaram a fazer o Inventário Lírico. A casa de minha avó chegavam continuamente malas, de gente da família que ia faltando e eu, muitas coisas, em vez de conhecê-las em seus lugares, via-as saindo de malas. Lembro bem de uma da qual saíram: uma capa de seda de mamãe, uma fantasia de dominó, roupas de banhos de mar listradas da época. O enxoval foi mais longo que a dona. Ela só esteve casada seis anos.


Vovó era uma criatura extraordinária. Extremamente religiosa, rezava todos os dias. E eu perguntava: "Por quem você está rezando?" "Por todas as pessoas que sofrem." Era assim. Rezava mesmo pelos desconhecidos. A dignidade, a elevação espiritual de minha avó influíram muito na minha maneira de sentir os seres e a vida.

 

("Eu canto porque o instante existe / e a minha vida está completa. / Não sou alegre nem triste: / Sou Poeta" / ... "Eu não tinha este rosto de hoje, / assim calmo, assim triste, assim magro, / nem esses olhos tão vazios, / nem o lábio amargo. / ... Em que espelho ficou perdida a minha face ?")

 

Uma das coisas que mais me encantavam em minha vida de infância era o eco que vivia em casa de minha avó. Eu vivia procurando o meu eco. Mas tinha vergonha de perguntar. Recolhida, tímida, deslumbrada, me debruçava no mistério das palavras e do mundo. Queria saber, mas tinha imenso pudor de confessar minha ignorância.

 

Terminada a Escola Normal, fui lecionar o primário, ainda com um jeito de menina, num sobrado da Avenida Rio Branco. Ali, na mesma sala, havia duas turmas e duas professoras, a metade voltada para cada lado. Pois as crianças, vendo-me quase tão menina quanto elas, viraram quase todas para mim. Sempre gostei muito de ensinar. Trabalhei na Escola Deodoro, ali junto ao relógio da Glória. Fui professora de Literatura da Universidade do Distrito Federal. Criei a primeira biblioteca infantil, ali onde era o Pavilhão Mourisco. Criança que não tivesse onde ficar podia encontrar o livro que lhe faltava, coleção de selos, moedas, jogos de mesa, sonhos, histórias e as explicações de professoras prontas e atentas. Acabou, depois de quatro anos, mas frutificou em São Paulo onde hoje existe até biblioteca infantil para cegos. Também ensinei História do Teatro na Fundação Brasileira. O resto da minha atividade didática está nas conferências em que sempre procuro transmitir algo.

 

Você sabe que eu tenho muito medo da literatura que é só literatura e que não tenta comunicar?

 

(“Já por exausta e descrida / não me anima a um breve traço: / saudosa do que não faço, / do que faço, arrependida" ... "Pus-me a cantar minha pena / com uma palavra tão doce, / de maneira tão serena, / que até Deus pensou que fosse / felicidade - e não pena.")

 

Vivo constantemente com fome de acertar. Sempre quase digo o que quero. Para transmitir, preciso saber. Não posso arrancar tudo de mim mesma sempre. Por isso leio, estudo. Cultura, para mim, é emoção sempre nova. Posso passar anos sem pisar num cinema, mas não posso deixar de ler, deixar de ouvir minha música (prefiro a medieval), deixar de estudar, hindi ou o hebraico, compreende?

 

Casei com vinte anos. Tenho três fllhas: Maria Elvira, Maria Matilde e Maria Fernmanda. As três são bibliotecárias mas a minha biblioteca não está fechada. Maria Fernanda você conhece como atriz, não é mesmo? As três têm em comum uma bondade comovente mas são de temperamentos completamente diferentes. Tenho cinco netos. Viúva, casei em 1940 com Heitor Grilo, um homem admirável pela sua capacidade técnica em sua enxtraordinária fé no ser humano, em sua ânsia de tudo elevar. Basta dizer a você que, nesta primeira e única doença que tive e que me segurou cinco meses, ele não arredou pé, um momento de carinho, gesto e palavra prontos, apesar de suas inúmeras responsabilidades e ocupações. Conheci-o quando fui entrevistá-lo certa vez. Depois ... nunca mais o entrevistei. Entendemo-nos até calados.

 

Estudei canto e violino. Abandonei. Era preciso ganhar a vida e poesia se pode criar até numa viagem de bonde. Mesmo nas reuniões em que muita gente discutia eu era capaz de me ausentar em meu mundo e construir. Aos poucos pude criar a minha Ilha de Nanja, a São Miguel transfigurada pelo sonho. Acho linda a continuidade humana através da poesia. Só viajo com a Bíblia. Bíblia é uma biblioteca. Tem tudo: história, poesia, religião. Já disse que, se tivesse que escolher o meu livro para uma ilha deserta, levaria a Bíblia. Ou um dicionário.

 

Mas comigo aconteceu uma coisa deliciosa, deixe-lhe contar. Neste Natal eu estava doente em São Paulo. Pois bem. Ao voltar para esta minha casa (Cecília vive ao lado do bondinho que sobe pro Corcovado) encontrei cartões de gente de todos os cantos do mundo que se lembrou de mim. De todas as raças e religiões. Todos unidos pelo Natal. E o mais curioso é que eu olhava um cartão e outro e dizia comigo mesma: "Fulano talvez não combine com Beltrano, mas eu ser­vi de elo entre os dois. A mim eles escreveram!" Me fez um bem enorme aquele meu Natal atrasado!

 

("Na quermesse da miséria, / fiz tudo o que não devia; / se os outros se riam, ficava séria; / se ficavam sérios, me ria. / ... De tanto querer ser boa, / misturei o céu com a terra... )

Mas a explicação melhor vai neste verso:

"Deus não fala comigo - e eu sei que me conhece"

Se eu inventei palavras? Não. Isto nunca me preocupou. No inventar há um certa dose de vaidade. "Inventei. É meu". O que me fascina é a palavra que descubro, uma palavra antiga abandonada e que já pertenceu a tanta gente que a viveu e sofreu! No Romanceiro do Rio de Janeiro, que estou preparando para o IV Centenário, procuro usar, em cada capítulo, a linguagem da época.

Tenho amigos em toda parte. Mas sou feito o Drummond que étão amigo quase sem a presença física. Esse meu mejito esquivo é porque eu acho que cada ser humano é sagrado, compreende?E esse pudor de invadir, esse medo do perto. Eu sou uma criatura de longe. Não sei se me querem mas eu quero bem a tanta gente! Sou amiga até dos mortos. Amiga de muita gente que nem conheci. Você não imagina quanta gente eu levo ao meu lado. E fico emocionada quando penso como uma criatura só recebe tanto de tantos lados, de tantas pessoas, de tantas gerações!

Tenho pena de ver uma palavra que morre. Me dá logo vontade de pô-la viva de novo. Solombra, meu novo livro, é uma palavra que encontrei por acaso e que é o nome antigo de sombra. Era o título que eu buscava e a palavra viveu de novo.

("Que procuras? - Tudo. Que desejas? - Nada. / Viajo sozinha com o meu coração." ... "Não há passado / nem há futuro. / Tudo que abarco / se faz presente. / Se me perguntam / pessoas, datas, / pequenas coisas / gratas e ingratas / a minha fala / tão bem responde / que todos crêem / que estou na sala.")

 

Cada lugar aonde chego é uma surpresa e uma maneira diferente de ver os homens e coisas. Viajar para mim nunca foi turismo. Jamais tirei fotografia de país exótico. Viagem é alongamento de horizonte humano.

 

Na India foi onde me senti mais dentro de meu mundo interior. As canções de Tagora, que tanta gente canta como folclore, tudo na India me dá uma sensação de levitar. Note que não visitei ali nem templos nem faquires. Não é exótico. E o espírito, compreende?

 

O impacto de Israel também foi muito forte. De um lado, aqueles homens construindo, com entusiasmo e vibração, um país em que brotam flores no deserto e cultura nas universidades. Por outro lado, aquela humanidade que vem à tona pe­las escavações. Ver sair aqueles jarros, aqueles textos sagrados, o mundo dos profetas. Pisar onde pisou Isaías, andar onde andou Jeremias ... Visitar Nazaré, os lugares santos!

 

A Holanda me faz desconfiar de que devo ter parentes antigos flamengos. Em Amsterdã, passei quinze dias sem dormir. Me dava a impressão de que não estava num mundo de gente. Parecia que eu vivia dentro de gravuras.

 

Quanto a Portugal, basta dizer que minha avó falava como Camões. Foi ela quem me chamou a atenção para a India, o Oriente: "Cata, cata, que é viagem da India", dizia ela, em linguagem náutica, creio, quando tinha pressa de algo, Chá-da-India, narrativas, passado, tudo me levava, ao mesmo tempo à Índia e a Portugal. Em Portugal me encanta aquele "catecismo rural", aquele “classicismo”

 

 A babá Pedrina me contava a história do Palácio de Louça Vermelha. Eu achava que devia ser muito fresco viver num palácio assim e, em menina, já estava pronta a transformar um jarro imenso que havia em casa em palácio, quando, querendo escondê-lo de meus sonhos, de tanto procurarem lugar para ocultá-lo, o patiram em mil pedaços.  

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Viagens, folclore e idiomas são uma espécie de constante em minha vida. Comprei livros e discos de hebraico. Estudei hindi, sânscrito. O desejo de ler Goethe no original me obrigou a estudar alemão. Não estudo idiomas para falar, mas para melhor penetrar a alma dos povos.           

 

Cecília conhece uma meia dúzia de línguas mais.      

 

Meus amigos, é curioso, ou vivem longe ou estão distantes. Minha casa já é contramão.  

                                                                           ~

Gosto de estudar o que me dá conhecimento melhor das pessoas, do mundo, da unidade. Através dos idiomas e do folclore, vejo até que ponto somos todos filhos de Deus. A passagem do mundo mágico para o mundo lógico me encanta.

 

("Não te aflijas com a pétala que voa: também é ser deixar de ser assim. / Eu deixo aroma até nos meus espinhos, ao longe o vento vai falando em mim. / E por perder-me é que me vão lembrando, por desfolhar-me é que não tenho fim.”)

 

Nunca esperei por momento algum na vida. Vou vivendo todos os momentos da melhor maneira que posso. Quero realizar coisas, não para para ser a autora, mas para dar-me, para contribuir em benefício de alguém ou de alguém ou de alguma coisa. Quando adoeci e tinha que repousar uma hora depois do almoço, ficava calculando quanto ­poema deixava de escrever, quanta coisa linda deixava de ler e conhecer naquelas horas perdidas. Mas aprendi também a renunciar a fazer quando é preciso. Não tenho poema predileto. Ainda não o escrevi. A intenção é que é perfeita. Às vezes,  um poema viaja comigo muito tempo sem ser escrito. Se não lhe dou muita importância, vai embora. Tenho muita pena dos poemas que não escrevo. E também muita dos que escrevo.

Escrevi as palavras de uma Cantata para o IV centenário do Rio, para Camargo Guarnieri. O tema é uma frase de Estácio de Sá:   “Levantemos esta cidade." Coloco o verbo em vários tempos até o "levantaremos” , aí já um pouco diiferente  plano diferente.

                                                                             

A minha janela vêm sabiás em bando. Fiz o Ciclo do Sabiá mostrando que, com o passar do tempo, eram outros os sabiás, mas o canto ficava, o canto que era a a continuação...

 

A juventude de hoje? Acho que são meninos que não têm tempo de crescer. Saltam do apartamento fechado para a calçada de mil solicitações, sem armadura, sem objetivo, sem a necessária religiosidade. A vida passa a ser uma coisa zoológica. Muitos crescem zoologicamente. Inventam modas, mas como não têm essência de verdade, as modas não pegam. As frustrações crescem. Felizmente muitos se realizam apesar de tudo. Cada geração acredita que traz uma nova voz e uma nova mensagem.

 

A arte abstrata? Nós, pouco a pouco, vamos caminhando para o subentendido, não é? A arte abstrata é uma alusão. Você constrói dentro de si. Muita gene faz coisas com nomes concretos que geram um mundo abstrato e vice-versa.

Você sabe, Pedro Bloch, que houve muitos jovens que não compreenderam ou não sentiram os meus sabiás?

 

("Aquilo que ontem cantava / Já não canta. / Morreu de uma flor na boca: / Não do espinho na garganta.")

 

Carlos Drummond de Andrade me diz: "Cecília é o caso de poesia total. Cecília é o próprio nome da poesia. Riqueza verbal e espiritual. E nobre por fora e por dentro. Não participa nunca das coisas menos elevadas. Não tem deficiências. E poesia no sentido universal. Tem coisas que não se encontram em nenhum outro."

 

Bandeira lê, para mim, o poema que dedica a Cecília:

 

"Cecília, és libérrima e exata; como uma concha. / Mas a concha é excessiva matéria ... / E a matéria mata. / Cecília, és tão forte e tão frágil; como onda ao termo da luta. / Mas a onda é água que afoga. / Tu, não, és enxuta. / Cecília, és como o ar, diáfana. / Mas o ar tem limites. / Tu, quem te pode limitar? Definição: / Concha, mas de orelhas; / água, mas de lágrimas;/ ar com sentimentos;/ brisa, viração de asa de uma abelha."

 

Tenho, nos lugares mais diferentes, amigos à minha espera. Você já reparou que, entre centenas, em cada país, nós temos sempre aquela pessoa, que, sem mesmo saber, espera por nós e, quando nos encontra, é para sempre? Por isso é que eu gosto tanto de viajar, visitar terras que ainda não vi e conhecer aquele amigo desconhecido que nem sabe que eu existo, mas que é meu irmão antes de o ser.

 

Educação, para mim; é botar, dentro do indivíduo, além do esqueleto de ossos que já possui, uma estrutura de sentimentos, um esqueleto emocional. O entendimento na base do amor.

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Em prosa Cecília dá lições de grandeza. Vejam como descreve o barquinho Elenita: "parece uma nuvenzinha a correr por um espelho." E o Anjo da Noite: "à noite o mundo é bonito, como se não houvesse desacordos, aflições, ameaças. Há muitos sonhos em cada casa. O gato volta apressado, com certo ar de culpa." Chuva com Lembranças: "Começaram a cair uns pingos de chuva. Tão leves e raros que nem as borboletas ainda perceberam." Outro: "Com estas florestas de arranha-céus que vão crescendo, muita gente pensa que passarinho é coisa de jardim zoológico."

 

Cecília conta: Houve um tempo em que a minha janela se abria para um chalé. Na ponta do chalé brilhava um grande ovo de louça azul onde costumava pousar um pombo branco. Nos dias límpidos o pombo parecia pousado no ar. Eu era criança, achava essa ilusão matavilhosa e me sentia completamente feliz.

 

Mas houve épocas em que a janela abria para um canal em que oscilava um barco carregado de flores. Outras em que se abria para um terreiro, sobre uma cidade de giz, para um jardim que parecia morto. Outras vezes abre a janela e encontra um jasmineiro em flor, nuvens espessas ou crianças que vão para a escola, pardais que pulam pelo muro, gatos, borboletas, marimbondos, um galo que canta, um avião que passa. E Cecília se sente completamente feliz. E conclui: - Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-Ias assim.

 

Olho para Cecília encolhida em sua poltrona, iluminando a penumbra do canto da sala. Vejo-a tão menina olhando o solo e descobrindo na madeira floresta e lendas, deslumbrada de azul! Uma ilha cercada de pontes por todos os lados. Pontes para a ternura, pontes para a poesia, pontes para a alma de cada um. E olhando-a assim, poesia ela mesma, tão alta e tão pura, percebo por que continua a ser a garotinha à procura do eco, correndo por todos os cantos e por todos os deslumbra­mentos, sem poder recolher o eco da própria voz: nós somos o seu eco, cantamos o seu canto, sem que ela perceba; somos todos um pouco habitantes de sua Ilha de Nanja “onde as crianças brincam com pedrinhas, areia, formigas”.

 

Solombra, a última obra de Cecília, quer dizer só sombra. Cecília, para nós. é só luz.   

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