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Grandes entrevistas

LÚCIA MIGUEL-PEREIRA

 

Entrevista conduzida por Homero Senna, publicada originalmente na Revista d’O Jornal, de 03/12/1944 e republicada em seu livro: SENNA, Homero. República das letras, 3ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996, de onde foi extraída,

 

* * *

 

Desde que aprendi a escrever que faço literatura – diz-me Lúcia Miguel-Pereira. Em criança vivia com o lápis na mão, e aos oito anos compus uma comédia. Em casa de minha mãe ainda hoje existem diversos romances que arquitetei e passei para o papel na adolescência. Estamos na casa da escritora, na Rua Inglês de Sousa, e, sentados num amplo sofá forrado de vermelho, numa sala rodeada de altas estantes de livros, com um ou outro móvel antigo de muito bom gosto, a palestra aos poucos vai se animando.

 

- E como eram esses romances?

 

Literatura de menina. Não podem ter valor algum e só mesmo o carinho materno os preservaria da destruição. Aliás, jamais pensei em publicá-los. Coisa que nesse tempo não passava por minha cabeça era tornar-me escritora. Escrevia para me distrair e para dar liberdade a um mundo de personagens que a minha imaginação criava e que desde então passavam a viver comigo. Queria ver como agiam, que jeito tomavam a partir do instante em que eu os transpunha para o papel, e esse jogo interessava-me.

 

- Chegou, também, a fazer poesia?

 

Não. Minhas tendências sempre foram para a ficção e o ensaio literário.

 

- Onde foi publicado seu primeiro trabalho?

 

Numa revista que, em 1927, as antigas alunas do Colégio Sion resolveram fundar aqui - o Elo. Lúcia Magalhães e eu éramos as redatoras, e para essa publicação, que contava também com a colaboração de Lia Correia Dutra, comecei a escrever sobretudo artigos em que procurava transmitir impressões de leitura. De um, sobre Euclides da Cunha, me lembro bem. (1) Qual não foi, porém, minha surpresa quando verifiquei que as despretensiosas colaborações que estampava naquela revista de circulação limitadíssima estavam sendo transcritas em jornais de grande tiragem! Disso, por gentileza, se incumbiam amigos diletos, como Roquete Pinto, Oton Leonardos e o saudoso Tristão da Cunha. Inclusive no O Jornal foram transcritos alguns trabalhos meus dessa época, para alegria minha e escândalo de minha mãe, que não achava próprio de uma moça andar escrevendo em jornais ...

 

- Faz uma pausa, mas logo retoma o fio da conversa:

 

Datam, porém, da fundação do Boletim de Ariel, a excelente revista dirigida por Gastão Cruls e Agripino Grieco, que infelizmente deixou de circular, meus primeiros artigos para uma publicação especializada. Só então comecei a tomar a sério o que fosse escrever, a ganhar consciência de que me estava tornando escritora de verdade. Aí resolvi aparecer também em livro, aventura a que muito me animaram alguns bons amigos, entre os quais Manuel Bandeira e Augusto Frederico Schmidt, que foi por sinal o editor do meu primeiro romance - Maria Luísa. Eu não estava em absoluto convenci da do valor do livro, e hoje acho-o francamente ruim, mas devo a esses dois amigos, e a alguns mais, o ter aparecido em volume. Atrás do primeiro, como geralmente acontece, vieram outros, e nesse ano mesmo de 1933 dava à publicidade meu segundo romance, já bem melhorzinho - Em Surdina - lançado por Ariel Editora.

 

- Que lia nessa época? Quais os autores que maior influência exerceram em sua formação intelectual?

 

Autor brasileiro que sempre li, que não me cansei jamais de reler, foi Machado de Assis. Dos estrangeiros, nenhum me impressionou tanto, na mocidade, como Dostoievski. Dos quinze aos vinte e poucos anos fui uma leitora desenfreada do grande russo. Infatigável devoradora de livros, poderia enumerar tanta gente que admiro... Mas influência é coisa muito difícil de discernir e que se renova e modifica diariamente.

 

Falando, a seguir, sobre a importância que poderá ter a Literatura no mundo de amanhã, diz-me a ensaísta de Machado de Assis:

 

A importância da Literatura será sempre muito grande, crescerá cada vez mais, à medida que os povos forem aprimorando sua cultura, No futuro, terá a importância que o meio exigir dela, pois precisamos não nos esquecer de que, se a Literatura influi na consciência de um povo, é também influenciada, e muito, pelo modo de pensar desse povo.

 

Daí passamos a falar dos romances best sellers, tipo... E o vento levou, e a esse respeito, com a resposta sempre em cima da pergunta, diz-me Lúcia Miguel-Pereira:

 

Não acho que se deva condenar o best seller, uma vez que é ele o gênero literário do grande público. Pois não conheço eu uma senhora, e senhora até inteligente e de certo nível de cultura, que foi ver E o vento levou dezesseis vezes? A meu ver, essa pessoa, que já passou portanto cerca de três dias inteiros no cinema, assistindo ao romance que Clark Gable e Vivian Leigh viveram na tela, é bem um exemplo da atração, da sedução que o best seller exerce sobre o espírito do povo. Combatê-lo seria, por conseguinte, inútil. O best seller desaparecerá quando sobre a face da Terra não existir mais gente capaz de se embevecer com tal gênero de literatura ...

 

Prosseguindo, observa, com bom humor, D. Lúcia:

 

E convenhamos que é melhor ler o best seller que os americanos nos enviam, juntamente com tantos outros artigos, neste momento, do que não ler nada. Pense nas horas de evasão, nos instantes de felicidade que tais livros proporcionam ao público. Atrás desses, adquirido o hábito da leitura, talvez venham outros melhores, e assim, aos poucos, o nível cultural do povo se irá elevando. Quanta gente por esse Brasil afora não aprendeu e não continua a aprender história dos Estados Unidos através do cartapácio da Sra. Margaret Mitchell? O best seller não precisa ser combatido. Acabará por si, no dia em que todo mundo preferir ler Shakespeare.

 

- E o romance, que rumos tomará no futuro? Acha que aparecerá sob novas formas, ou, de um modo geral, permanecerão os figurinos atuais?

 

Não é preciso ser pitonisa  para saber que o romance, amanhã, poderá perfeitamente apresentar-se sob novas formas, mesmo porque é ele um gênero que não tem forma fixa, rígida. Não é impossível que as novas gerações tragam formas inéditas de narrar, mas confesso que as novidades de processo, simplesmente, não me interessam muito... Prefiro as novidades essenciais, substanciais. Mas estas são muito raras. Aliás, hoje o conceito de romance já se alargou bas­tante, abrangendo desde a poesia até à crítica social e à história. Todos os gêneros e especialidades cabem dentro de um roman­ce... Parece que tudo já foi tentado nesse terreno, mas ainda outro dia não tivemos aqui no Brasil uma agradabilíssima surpresa com o livro Perto do Coração Selvagem, de Clarice Lispector? Essa jovem escritora, que é uma romancista de gran­de futuro, sem dúvida conseguiu fazer para o nosso meio uma coisa nova e interessantíssima, embora não original em toda a extensão da palavra, pois seus processos parecem ser os de Joyce. E estou certa de que tentativas como essa se repetirão.

 

- A tendência da Literatura, no futuro, será para dar mais importância ao individual ou ao social?

 

Ora, o indivíduo é muito importante e não morre, ao passo que o fato social é por excelência mutável e, portanto, envelhece, caduca. Tomemos, por exemplo, uma tragédia de Shakespeare e veremos que, nela, o que é baseado nas paixões humanas não perdeu um milímetro sequer do interesse, enquanto que o que é puramente reflexo dos costumes da época virou História... Durante as grandes crises políticas, como a que agora atravessamos, é natural que os assuntos ditos sociais ganhem maior importância e venham à baila, freqüentemente, nas con­versas, nos discursos, nos artigos de jornal, e, portanto, também na Literatura. Nas épocas de equilíbrio, porém, é indiscutível que a primazia tem cabido sempre e caberá, por certo, no futuro, ao estudo do indivíduo. Está claro que os sofrimentos do povo não podem deixar de interessar no máximo ao escritor, porque povo somos todos nós, e não há dúvida que os problemas angustiantes com que se debatem as classes menos favorecidas podem fornecer ao romancista e ao poeta temas para obras de caráter social. Por outro lado, o homem, considerado isoladamente, é um eterno mistério e não pode haver nada mais fascinante do que procurar desvendar esse mistério.

 

- E a nossa literatura? Ganhará um caráter mais acentuadamente brasileiro, ou continuará caudatária das escolas literárias estrangeiras?

 

À medida que formos ganhando em cultura, ganharemos também em personalidade, pois está visto que não pode haver literatura original num país que ainda não se emancipou de todo intelectualmente. Cem por cento original não existe, porém, literatura alguma, nem é mesmo desejável que exista. Ainda as literaturas dos povos mais acentuadamente originais, como o russo e o inglês, trazem influências estranhas. (2) E, no futuro, as relações entre os países, tão facilitadas como por certo ficarão, o intercâmbio cultural de povo a povo naturalmente ainda mais se estreitará, para felicidade nossa e desespero dos fetichistas da originalidade.

 

- É partidária, em literatura, do estilista, ou acha que isso de escrever mal não tem importância?

 

Simplicidade e correção são, para mim, as principais qualidades de um estilo. Felizmente já nos vamos libertando daquele nefasto preconceito acadêmico, segundo o qual escrever bem era escrever bonito. Houve tempo, no Brasil, em que se dava mais importância à forma que à substância. Num ensaio, por exemplo, os leitores, ou melhor, certa classe de leitores, se preocupava mais com a música da frase que com as idéias do autor. Acho isso uma coisa absurda. Num escritor devemos, de preferência, buscar pensamentos, conceitos, orientações, e não frases sonoras. O que, entretanto, não quer dizer que eu seja partidária do  "escrever mal". Em absoluto. Penso que o intelectual tem obrigação de escrever limpa e corretamente. Há uma grande distância, porém, entre o bom estilo e o estilo enfeitado. Nada de atavios e berloques. Prefiro a linguagem simples, direta, aquela em que forma e fundo constituem um todo harmonioso.

 

- Nessa altura da palestra, ocorreu-me indagar qual a atitude de Lúcia Miguel-Pereira em face da reação modernista de 1922. A respeito, eis o que me disse:

 

Quando veio o Modernismo, eu ainda não pensava em ser escritora. Por isso não participei do movimento, que acompanhei, porém, com grande curiosidade. Confesso que tive enorme entusiasmo por Graça Aranha e se naquela época já formasse, é certo que ficaria do seu lado. Quanto aos benefícios que o Modernismo nos trouxe, citarei apenas um, que a meu ver é o maior de todos: livrou-nos da literatice. A parte destrutiva do movimento foi excelente. Não sei se a parte construtiva também o terá sido, mas é inegável que se fazia necessária uma reação contra aquele academismo, aquele marasmo, aquele cansaço em que se atolara a literatura nacional. O modernismo foi uma sacudidela benéfica.

 

-Academismo... Que pensaria da Academia a romancista de Amanhecer? Armo a pergunta, mas ela se esquiva com uma boutade:

 

Se a Academia não quer saber das mulheres, eu também não quero saber dela. Para mim, portanto, a Academia não existe. (3)

- Mas o repórter insiste e a resposta, então, vem pronta:

 

Ainda que as mulheres pudessem ser acadêmicas, está aqui uma que jamais se candidataria. Talvez seja um defeito, mas confesso-me com espírito pouco associativo. Além disso, não acredito nos grêmios literários, nessas associações que nascem para ser inteligentes. No meu entender, quarenta acadêmicos esplêndidos ainda dariam uma Academia medíocre.

 

- Sendo Lúcia Miguel-Pereira um espírito crítico tão atilado, seria interessante saber quais as obras de sua autoria que prefere.

 

Inteiramente satisfeita não fiquei com nenhum de meus livros. Enquanto estou escrevendo, em geral me entusiasmo, mas depois de terminado o trabalho, aquilo que escrevi já não me diz mais nada, cansa-me. Tanto que nunca leio os meus livros, nem mesmo os meus artigos, depois de impressos, o que aliás é bom, porque assim não me amofino com os erros de revisão... Não obstante isso, o livro meu de que mais gosto é o Machado de Assis, preferência que talvez se explique pelo assunto, pois o velho Joaquim Maria foi e continua a ser uma de minhas maiores admirações literárias.

 

- É verdade que no momento está escrevendo uma biografia de José de Alencar?

 

Sei que corre por aí essa notícia. Mas pode desmenti-la. É boato. Pensei, de fato, há tempos, em aproveitar o autor de O Guarani para assunto de um livro, mas isso não passou de projeto vagamente esboçado. Considero, porém, sua figura ótima para um trabalho desse gênero e é pena que não tenha encontrado ainda o biógrafo que merece. Recomendo-a à atenção dos escritores novos do Brasil. Atualmente estou escrevendo a parte que me coube no plano geral da grande História da Literatura Brasileira, em 14 volumes, que a Livraria José Olímpio pretende editar, sob a direção de Álvaro Lins. (4) Nessa obra devo estudar a ficção em geral (romance, teatro e conto) no período que vai de 1870 a 1920. Já iniciei o trabalho, e o que lhe posso dizer é que tenho lido livro ruim que não acaba mais, embora fazendo, também, umas poucas descobertas muito boas. (5)

 

Notas:   

(1) O artigo sobre Euclides da Cunha ("Um bandeirante") foi publicado no n? 3, de setembro de 1927. Antes, saíra outro, sobre "Isabel, a Redentora". Por gen­tileza de D. Lúcia Magalhães, pudemos' consultar a coleção de Elo, que ela guardava carinhosamente. São ao todo 20 números, aparecidos de julho de 1927 a maio de 1929. A partir do 2º número, a revista passa a circular sob a responsabilidade de uma Comissão de Redação em que se reuniam três Lúcias: Lúcia Magalhães, Lúcia Miguel-Pereira e Lúcia Lobo. Trazendo como subtítulo "revista das 'antigas' de Sion", em suas páginas colaboravam, além das redatoras e de Lia Correia Dutra, citada pela entrevistada, as seguintes ex­alunas: Stela de Faro, Heloísa Alberto Torres, Laurita Pessoa Raja Gabaglia e várias outras. O Elo não era uma revista fútil. Ao contrário, as colaborações além de traduzirem preocupação literária e cultural, debatiam, freqüentemente, temas brasileiros. Exemplo disso é o estudo de Lúcia Miguel-Pereira sobre Euclides da Cunha. Além desso, a futura biógrafa de Machado de Assis publi­cou ali vários artigos, já denunciadores da notável ensaísta que viria a ser mais tarde. Sua colaboração para o Elo não poderá ser esquecida, quando amanhã se fizer o levantamento bibliográfico de sua produção esparsa por jornais e revis­tas. Parte dessa produção foi resgatada pela Graphia Editorial, no volume. recentemente publicado, A leitora e seus personagens (Rio de Janeiro. 1992), ao qual, segundo se anuncia. outros se seguirão.

 

(2) Esta é, aliás, a lição da Literatura Comparada: "Nenhuma literatura se forma, nenhuma obra individual se cristaliza, sem complexas, profundas e múltiplas influências estranhas" - observa Tasso da Silveira. E pouco mais adiante: "O que se verifica, de fato, é um verdadeiro movimento migratório, não apenas de gêneros, formas, estilos, mas ainda de temas, assuntos, idéias, sentimentos." (Literatura Comparada, Rio de Janeiro, Edições GRD, 1964, pp. 17-18 e 34.)

 

(3) Somente muito tempo depois desta entrevista. passou a Academia a admitir mulheres entre os 40 titulares. A primeira a ingressar na Ilustre Companhia foi Raquel de Queirós. eleita em 4 de agosto de 1977.

 

(4) História da Literatura Brasileira - Organizada sob a direção de Álvaro Lins - 12 volumes, Prosa de Ficção (de 1870 a 1920), por Lúcia Miguel­-Pereira - Rio de Janeiro, Livraria José Olímpio Editora, 1950.

 

(5) Dentre essas descobertas, destaca-se o romance de Manuel de Oliveira Paiva, Dona Guidinha do Poço, por iniciativa de LMP publicado pela primeira vez, na íntegra, em 1952 (São Paulo, Saraiva S/A, Livreiros Editores).

 

 

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