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vol. 13  dos  Mistérios da Criação Literária
Uma obra em obras

 

O QUE É INSPIRAÇÃO?

 

Parte B - Estudos

     Partamos, agora, para levantar a bibliografia existente sobre o assunto. Fomos saber primeiramente como o tema inspiração vem sendo estudado em nossas universidades, qual o volume de teses e dissertações dedicadas ao estudo dessa matéria. Consultamos a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (www.bdtd.ibict.br)  a mais completa base de dados na área, mantida

pelo IBICT-Instituto Brasileiro de Informação Científica e Tecnológica. Encontramos lá 333 registros referentes ao tema. Porém ao verificarmos cada um dos itens assinalados, verificamos que nenhum deles enfoca o assunto de modo específico. Existem meia dúzia de registros classificados na área literária onde o assunto é tangenciado, e em alguns casos o termo "inspiração" é apenas citado e aceito como um conhecimento dado sem explicação alguma para seu significado. Ou seja, cita-se o termo em seu uso comum e aceito por todos sem a necessidade de uma conceituação mais pormenorizada.

       Falta verficarmos a produção bibliográfica de livros e artigos sobre o tema. Nessa tarefa, gostaríamos de contar com a ajuda do prezado leitor em nos enviar qualquer bibliografia (com resumo, se possível) Neste sentido transcrevemos o texto abaixo intitulado Possessão, sopro divino ou Musa. Qual te inspira", de Daniel De Lucacs, postado por Alex Sens, publicado no site da Ateliê Editorial. (http://blog.atelie.com.br) Como se vê ele encontrou o mesmo problema da falta de bibliografia sobre o assunto. Seu texto é interessante pelo fato de tocar o assunto em sua especificidade e na sua importância. Temos enfim, alguma reflexão sobre o tema.

“É preciso estar possuído pelo demônio para ter êxito em uma arte.” A frase é de Voltaire, mas poderia ser de qualquer outro artista que tenha sentido essa espécie de possessão durante sua criação artística. A esta possessão também damos o nome de inspiração. Em busca de uma definição para ela, corri os dedos sobre algumas dezenas de livros de minha pequena (e em expansão ad infinitum) biblioteca. Não encontrei nada. Nem em grandes ensaios literários a inspiração ganha algum esboço analítico. E. M. Forster a coloca como um “estado”, e tanto não deixa de sê-lo como nos leva de volta à ideia de possessão, outro estado no qual o corpo se entrega ao estranho e por ele é guiado. O artista seria um possuído espontâneo?

Verbo precedente do latim inspirare, inspirar é soprar para dentro – e também comunicar. Em termos biológicos, a inspiração é uma das duas fases da respiração pulmonar: os pulmões se expandem aumentando de volume, a pressão interna cai, o ar se desloca do exterior para o interior através das vias respiratórias. Por outro lado, em sentido mais figurado e romântico, a inspiração é a intuição primeira que um artista tem antes de criar uma obra de arte. Ela está ligada à percepção, a estímulos sensoriais, à imaginação e à inteligência. Num sentido teológico, a inspiração segue o mesmo fluxo desse rio quimérico, sendo uma espécie de comunicação divina. Daí retorna-se à ideia de possessão, à presença de um espírito que fala com o corpo ou que nele impera durante a criação. No campo artístico, a inspiração era e ainda é chamada de Musa, sobretudo para escritores românticos que extraíam do mundo e principalmente da natureza a fonte de suas obras; pode vir tanto de fora quanto de dentro do escritor, embora este “de dentro” seja um tanto pernicioso. Pernicioso porque o que vem de dentro é imagem concebida a partir de outra(s) que tenha(m) vindo de fora. A inspiração interior pura não existe, aquela que pinga na mente do escritor sobressaltando-o, porque, esbarrando em teorias psicanalíticas, ela faz parte do subconsciente, o porão sombrio e impalpável da criatividade. Quando deixamos a psicanálise e a psicologia de lado, só podemos cair no conceito de inspiração enquanto sopro divino. E retomando a biologia, podemos pensar que a inspiração é igualmente misteriosa, automática, mas não programável – como a de caráter artístico.

Discutir as próprias inspirações e entender todos os impulsos por trás delas é entregar-se a uma vertigem atemporal. Parte do que me inspira surge com a espontaneidade e eficiência de uma lâmpada sendo acesa: subitamente a frase ou a imagem ilumina o escuro caminho da escrita, revelado enquanto a linguagem é esticada em seus próprios limites. Não é comum, mas muitas vezes fui “possuído” ou “iluminado” por histórias quase completas, com personagens, lugares, vozes, enredo, em questão de segundos, como se estas histórias, antes pequenos brotos coloridos enterrados no negrume do inconsciente, desabrochassem em explosões florais de perfumes e pétalas carnudas. A outra parte do que me inspira é mais evidente no ato em que a inspiração se dá. São músicas, filmes, conversas, fotografias, sabores, os chamados estímulos sensoriais. Capto instintivamente essa comunicação sensorial, logo transformada em esboço que se transformará ou não em literatura. Antes de desejar a inspiração como uma característica específica da personalidade artística, é preciso saber observar. E observar sem medo. Observar até ser engolido pelo objeto observado. É a partir de uma observação arguta, de qualquer coisa, que a inspiração torna-se mais palpável, mais rica, e para tê-la, para exercitá-la, é preciso também interesse.

Alguns meses atrás eu estava sentado num dos bancos de um shopping, folheando um pequeno livro do Coetzee em frente a uma loja de roupas esportivas, quando um funcionário começou a despir um dos manequins. Instantaneamente me perguntei: e se o único corpo que esse cara despiu até hoje foi o de um manequim? Seria um fato interessante, incomum e ligeiramente irônico numa contemporaneidade tão estimulada sexualmente, onde corpos brotam aos montes e objetos são transformados em sujeitos para sua autossatisfação. Eu também, vítima dos estímulos, não só vi ironia e erotismo na cena, mas um pouco de tristeza, de drama, e comecei a inventar uma vida para aquele funcionário. Como a morte, a inspiração tem esse poder de surpreender quando menos se espera. E diferentemente dela, não há luto, a não ser que se considere a ideia como ser vivo, cujo falecimento se dá na conclusão de seu processo criativo.

Inspire-se. E observe – também os funcionários das lojas de roupas esportivas. Minha história sobre aquele funcionário morreu dias depois sem conclusão. Seu espírito vaga por aí, em busca de alguém que queira ser possuído.

     Encontramos, também, um profunda reflexão, um ensaio substancial n livro de Octavio Paz - O arco e a lira (1956) - onde a parte sobre "A revelação poética" traz um capítulo intitulado "A inspiração", do qual extraimos e transcrevemos as partes abaixo:

"O ato de escrever poemas se oferece aos nossos olhos como um nó de forças contrárias, no qual nossa voz e a outra voz se enlaçam e se confundem. As fronteiras se extinguem: nosso discorer se transforma insensivelmente em algo que não podemos dominar totalmente; e nosso eu cede lugar a um pronome inominado, que não é inteiramente um tu ou um ele. Nessa ambiguidade consiste o mistério da inspiração. Mistério ou problema? Ambas as coisas: para os antigos a inspiração era um mistério; para nós, um problema que contradiz nossas concepções psicológicas e nossa própria idéia do mundo. Bem, essa conversão do mistério da inspiração em problema é a raiz da de nossa impossibilidade de compreender corretamente em que consiste a criação poética...

Numa sociedade em que, longe de ser posta em dúvida, a realidade exterior é a fonte de onde brotam idéias e arquétipos, não é difícil identificar a inspiração. A "outra voz", a "vontade estranha" são o "outro", isto é Deus ou a natureza com seus deuses e demônios. A inspiração é uma revelação porque é um manifestação dos poderes divinos. Um nume fala e suplanta o homem. Sagrada ou profana, épica ou lírica, a poesia é um dom, algo exterior que baixa sobre o poeta. A criação poética é um mistério porque consiste num falar dos deuses pela boca humana. Mas esse mistério não provoca nenhum problema, nem contradiz as crenças comumente aceitas. Nada é mais natural que o fato de o sobrenatural se encarnar nos homens e falar sua linguagem...

Um modo de resolver os problemas consiste em negá-los. Se a inspiração é um fato incompatível com nossa idéia de mundo, nada mais fácil que negar sua existência. Desde o século XVI começa-se a conceber a inspiração como uma frase retórica ou uma figura literária. Ninguém fala pela boca do poeta, a não ser sua própria consciência; o verdadeiro poeta não ouve outra voz, nem escreve um ditado; é um homem desperto e senhor de si. A impossibilidade de achar uma resposta que explicasse realmente a criação poética transforma-se insensivelmente numa condenação da ordem moral e estética. Durante toda uma época foram denunciados os extravios a que conduza a crença na inspiração. Seu verdadeiro nome era preguiça, descuido, amor pela inprovisação, facilidade. Delírio e inspiração se transformaram em sinônimos de loucura e enfermidade...

É mister dizer também que a criação póetica exige um transtorno total de nossas perspectivas cotidianas: a feliz facilidade da inspiração brota de um abismo. O dizer do poeta se inica como silêncio. esterlidade e secura. É uma carência e uma sede, antes de ser uma plenitude e um acordo; em seguida, é uma carência ainda maior, pois o poema se desliga do poeta e deixa de lhe pertencer. Antes e depois do poema não há nada nem ninguém em torno; estamos a sós conosco; e mal começamos a escrever, esse "nós", esse eu desaparece e se afunda. Debruçado sobre o papel, o poeta cai sobre si mesmo. Assim, a criação poética é irredutível às idéias de ganho e perda, esforço e prêmio. Tudo é proveito na poesia. Tudo é perda. Não obstante, a pressão da moralidade burguesa fez com que os poetas afetassem tapar os ouvidos à antiga voz do nume. O próprio Baudelaire insinua o elogio do trabalho, logo ele que escreveu tanto sobre os páramos da esterilidade e os paraísos do ócio! Mas o desvio dos críticos e dos criadores não cegou o brotar da inspiração. E a voz poética continuou sendo um desafio e um problema...

O lugar de Deus e da antiga natureza povoada de deuses e demônios está agora ocupado por seres sem rosto: a Raça, a Classe, o Inconsciente (individual ou coletivo), o Gênio dos povos, a Herança. A inspiração pode ser explicada com facilidade a partir de qualquer uma dessas idéias. O poeta é um médium através do qual se expressam em códigos o Sexo, a Clima, a História, ou algum outro sucedâneo dos antigos deuses e demônios. Não pretendo negar o valor dessas idéias. São insuficientes, porém; em todas campeia uma limitação que nos permite rechaçá-las em conjunto: seu exclusivismo, sua insistência em explicar o todo pela parte. Ademais, em todas é evidente sua incapacidade de apreender e explicar o fato essencial e decisiso: como são tranformadas em palavras essas forças ou realidades dominantes? Como se tornam palavra, ritmo e imagem, a libido, a raça, a classe ou o momento histórico? ...

Afinal, nem o Sexo, nem o Inconsciente, nem a História são realidades meramente externas, objetos, poderes ou substâncias que agem sobre nós. O mundo não está fora de nós, nem rigorosamente dentro de nós. Se a inspiração é uma "voz" que o homem ouve em sua própria consciência, não seria melhor interrogar essa consciência, que é a única que escutou essa voz e que constitui seu âmbito próprio?...

Para o intelectual - e também para o homem comum - a inspiração é um problema, uma superstição ou um fato que resiste às explicações da ciência moderna. Em qualquer dos casos, podemos dar de ombros e tirar esse assunto de nossa mente, como quem sacode da roupa a poeira do cominho. Em compensação, os poetas devem enfrentá-la e viver o conflito. A história da poesia moderna é a do contínuo dilaceramento do poeta, dividido entre a moderna concepção do mundo e a presença às vezes intolerável da inspiração. Os que primeiro padecem desse conflito são os românticos alemães. Também são os que o enfrentam com maior lucidez e plenitude  os únicos - até o movimento surrealista - que não se limitam a sofrê-lo e tentam trancedê-lo. Descendentes, de um lado, da Ilustração e, de outro, do Sturm und Drang, vivem entre a espada do Império napoleônico e a reação da Santa Aliança, perdidos, por assim dizer, num beco sem saída. Neles os opostos lutam sem cessar...

Para os poetas do passado a inspiração era algo natural, precisamente porque o sobrenatural fazia parte do seu mundo. Um espírito tão seguro de si como Dante relata com ingenuidade e simplicidade que no sonho o Amor lhe dita e inspira seus poemas, e acrescenta que essa revelação sobrevém em certas horas e dentro de certas circunstâncias que tornam inequívoca e absolutamente certa a intevenção de poderes superiores...

Para Dante a inspiração é um mistério sobrenatural que o poeta aceita com recolhimento, humildade e veneração. Para Nerval é uma catástrofe e um mistério que nos provoca e desafia. Um mistério que tem de ser desvendado. A passagem entre "mistério a decifrar"  e "problema a resolver" é insensível e será feita pelos sucessores de Nerval...

A necessidade de refletir e se debruçar sobre a criação poética para arrancar-lhe o segredo só pode ser explicada como uma consequência da Idade Moderna. Ou melhor, nessa atitude consiste a modernidade. E a mágoa dos poetas reside em sua incapacidade de explicar, como homens modernos e dentro de nossa concepção do mundo, esse estranho fenômeno que parece nos negar e negar os fundamentos da Idade Moderna: aí, no seio da consciência, no eu, pilar do mundo, única rocha que não se desagrega, surge de repente um elemento alheio que destrói a identidade da consciência. Seria necessário que nossa concepção do mundo oscilasse, isto é, que a Idade Moderna entrasse em crise, para que se pudesse suscitar de modo cabal o problema da inspiração. Na história da poesia esse momente se chama Surrealismo...

Ao contrário dos poetas anteriores, que se limitam a sofrê-la, o Surrealismo maneja a inspiração como uma arma. Assim, transforma-a em idéia e teoria. O Surrealismo não é uma poesia mas uma poética, mais ainda, e sobretudo, uma visão do mundo. Revelação exterior, a inspiração rompe o dédalo subjetivista: é algo que nos ataca, mal a consciência vacila, algo que irrompe por uma porta que se abre  somente quando são fechadas as portas da vigilia. Revelação interior, faz titubear nossa crença na unidade e identidade dessa mesma consciência: não há eu e dentro de cada um de nós lutam várias vozes. A idéia surrealista da inspiração se apresenta como uma destruição de nossa visão do mundo, já que denuncia como meros fantasmas os dois termos que a constituem. Postula ao mesmo tempo uma nova visão do mundo, na qual a inspiração ocupa precisamente o lugar central. A visão surrealista do mundo se baseia na atividade conjuntamente dissociadora e recriadora da inspiração. O Surrealismo se propõe a fazer um mundo poético, fundar uma sociedade na qual o lugar central de Deus ou da razão seja ocupado pela inspiração. Desse modo, a verdadeira originalidade do Surrealismo consiste não somente em ter feito da inspiração uma idéia, mas sobretudo uma idéia do mundo. Graças a essa transmutação, a inspiração deixa de ser um mistério indecifrável, uma superstição vã ou anomalia, e se torna uma idéia que não está em contradição com nossas concepções fundamentais. Não queremos dizer com isso que a inspiração tenha mudado de natureza, mas que pela primeira vez nossa idéia da inspiração não se choca com o resto de nossas crenças. Todos os grandes poetas anteriores ao Surrealismo tinham se debruçado sobre a inspiração, pretendendo arrancar-lhe o segredo - e esse traço os distingue dos poetas barrocos, renascentistas e medievais - mas, nenhum deles pôde inserir inteiramente a inspiração na imagem que o homem moderno faz de si mesmo e do mundo. Em todos havia resíduos das idades anteriores. E mais: para eles a inspiração era regresso ao passado: tornar-se medieval, grego, selvagem. O goticismo dos românticos, o arcadismo geral da poesia moderna e, enfim, a figura do poeta como um desterrado no seio da cidade provêm  dessa impossibilidade de aclimatar a inspiração. O Surrealismo faz cessar a oposição e o desterro ao definir a inspiração como uma idéia do mundo, sem postular sua dependência de um fator externo: Deus, Natureza, História, Raça, etc. A inspiração é algo que se processa no homem, se confunde com seu próprio ser e só pode ser explicado pelo homem. Tal é o ponto de partida do Primeiro manifesto. E nisso se fixa a originalidade, pouco assinalada até agora, da atitude de Breton e seus amigos...

Em resposta ao individualismo e ao racionalismo que os precedem, os surrealistas acentuam o caráter inconsciente, involuntário e coletivo de toda criação. Inspiração e ditado do inconsciente tornam-se sinônimos: aquilo que é propriamente poético reside nos elementos inconscientes que, sem que o poeta queira, se revelam em seu poema...

Breton sempre teve presente a insuficiência da explicação psicológica e, mesmo em seus momentos de maior adesão às ideías de Freud, fez questão de reiterar que a inspiração era um fenômeno inexplicável para a psicanálise. A dúvida sobre as possibilidades de uma compreensão real que a psicologia oferece levou-o a se aventurar em hipóteses ocultistas. No entanto, o ocultismo só pode nos auxiliar na medida em que deixar de sê-lo, isto é, quando se torna revelação e nos mostra aquilo que oculta. Se a inspiração é um mistério, as explicações ocultistas se tornam duplamente misteriosa. O ocultismo pretende, exatamente como a inspiração, ser uma revelação da "outridade"; por conseguinte, é incompetente para explicá-la, exceto por analogia. Se nos interessa saber o que é a inspiração não basta dizer que é algo como a revelação que os ocultistas proclamam, já que tampouco sabemos em que consiste essa revelação. Também não deixa de ser reveladora a insistência com que Breton recorre à possibilidade de uma explicação oculta ou sobrenatural. Essa insistência denuncia sua crescente insatisfação diante da explicação psicológica, tanto quanto a persistência do fenômeno da "outridade". Assim, não é tanto a idéia da inspiração que é válida em Breton quanto o fato de ter feito da inspiração uma idéia do mundo. Embora não acerte ao nos fornecer uma descrição do fenômeno, tampouco o oculta nem o reduz a um mero mecanismo psicológico. Porque mantém em suspenso a "outridade", a doutrina surrealista não finda numa sumária, e no final das contas superficial, afirmação psicológica; pelo contrário, abre-se numa interrogação. O Surrealismo não só aclimatou a inspiração entre nós como uma idéia do mundo, como também através da mesma e confessada insuficiência da explicação psicológica adotada, tornou visível o centro do problema: a "outridade". Nela, e não na ausência de pré-meditação, radica-se, talvez, a resposta...

A inspiração é uma manifestação da "outridade" constitutiva do homem. Não está dentro, em nosso interior, nem atrás, como algo que surgisse subitamente do limo do passado; está, por assim dizer, adiante; é algo (ou melhor: alguém) que nos convida a sermos nós mesmos. E esse alguém é o nosso próprio ser. Na verdade, a inspiração não está em parte alguma, ela simplesmente não está, nem é algo; é uma aspiração, um ir, um movimento para a frente: para aquilo que nós mesmos somos. Desse modo, a criação poética é exercício de nossa liberdade, de nossa decisão de ser. Essa liberdade, conforme já foi dito muitas vezes, é o ato pelo qual vamos mais além de nós mesmos, para sermos mais plenamente. Liberdade e transcedência são expressões, movimentos da temporalidade. A inspiração, a "outra voz", a "outridade", são, na sua essência, a temporalidade brotando, manifestando-se sem cessar. Inspiração, "outridade", liberdade e temporalidade são transcedência. Mas são transcedência, movimento do ser para o quê? Para nós mesmos. Quando Baudelaire sustenta que a mais "elevada e filosófica de nossas faculdades é a imaginação", afirma uma verdade que, em outras palavras, pode ser expressa assim: pela imaginação - isto é, por nossa capacidade, inerente à nossa temporalidade essencial, de transformar em imagens a contínua avidez de encarnar típica dessa temporalidade - podemos sair de nós mesmos, ir mais além de nós mesmos ao encontro de nós. Em seu primeiro movimento, a inspiração é aquilo através de que deixamos de ser nós mesmos; em seu segundo movimento, esse sair de nós é sermos mais totalmente. A verdade dos mitos e das imagens poéticas - tão patentemente mentirosos - reside nessa dialética da saída e regresso, de "outridade" e unidade...

A inspiração é essa voz estranha que arranca o homem de si mesmo para ser tudo que ele é, tudo o que deseja: outro corpo, outro ser. A voz do desejo é a própria voz do ser, porque o ser não é outra coisa senão o desejo de ser. Mais além, fora de mim, na espessura verde e ouro, entre ramos trêmulos canta o desconhecido. Chama por mim. Mas o desconhecido é profundo e por isso sabemos, com um saber de lembrança, o lugar de onde veio e aonde vai a voz poética. Eu já estive aqui. O chão natal ainda guarda as marcas de meus pés. O mar me conhece. Este astro ardeu um dia à minha direita. Conheço teus olhos, o peso de tuas tranças, a temperatura de tuas faces, os caminhos que conduzem a teu silêncio. Teus pensamentos são transparentes. Neles vejo minha imagem confundida com a tua mil vezes até chegar à incandescência. Por ti sou uma magem, por ti sou outro, por ti sou. Todos os homens são este homem que é outro e eu mesmo. Eu sou tu. E também ele é nós e vós e isto e aquilo. Os prenomes de nossas linguagens são modulaçõe, inflexões de outro prenome secreto, indizível, que a todos sustém, origem da linguagem, fim e limite do poema. Os idiomas são metáforas desse pronome original que sou eu e os outros, minha voz e a outra voz, todos os homens e cada um. A inspiração é lançar-se para ser, mas também e sobretudo é recordar e voltar a ser. Voltar ao Ser.

Fomos encontrar mais um esclarecimento sobre a natureza da inspiração num livro sobre música (SCOTT, Cyril. La musica: su influencia secreta a traves de los tiempos. Mexico:Editorial Orion, 1968. cap. 3 e 4.

O autor considera as dificuldades sobre o estudo da inspiração: "A grande dificuldade das investigações de tal natureza reside no fato que alguns, muito naturalmente, consideram tais investigações como uma curiosidade impertinente, ou como uma tentativa de desvelar o véu que cobre o 'saneta sanctorum' de sua arte. Mas, por que é visto desse modo? A inspiração pode ser misteriosa em certo sentido, mas isto não a torna tão sagrada ao ponto de não poder ser analisada. De qualquer modo, a inspiração geralmente está associada com a beleza, e tudo que é belo merece ser compreendido por mais difícil que seja.

James Branch Cabell, em sua obra "Straws and prayer-books" espressa tão perfeitamente o "rationale" de pena criadora que, ainda que suas expressões se refiram a literatura, com alguns pequenos ajustes podem ser aplicadas também à composição musical... "O romancista escreverá de um modo que ele pessoalmente considera atrativo; seus ritmos serão configurados de tal modo que acariciarão seus ouvidos pessoais e a extensão de seus escritos será estabelecida pelo que ele mesmo acha interessante ou não. Porque o escritor serio escreverá primordialmente para divertir a si mesmo, ainda que com um pensamento subjacente parcial pelo econômico; mas sua idéia principal será entregar... os 'juguetes' ... que ele inventou para divertir aqueles que possuem um gosto similar em 'anodinos'. E ao fazê-lo assim lhe encantará". Cabel prossegue dizendo que que existe nele uma fome irresistível para escapar dos costumes e hábitos; que ele parece estar mais decidido que seus companheiros a não se aborrecer e daí seu esforço para evitar o tedio das coisas familiares.

 

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Chegamos até aqui por enquanto. A pesquisa dos estudos continua sempre contando com a colaboração dos leitores que fizerem a gentileza de enviar textos ou referências que nos auxilem na pesquisa.

Veja também:      Parte A - Conceituação

                            Parte C - Depoimentos de 101 escritores