Volta para a capa
Romance inédito

             Primavera dos mortos

                                                                     Jorge Fernando dos Santos

                                               Parte 1

                               Capítulo 3 - Leôncio Duarte

                                        Espora de prata

                                        Risca o lombo do baio

                                        Tudo que eu tenho

                                        Cabe neste balaio...

UM LAGARTO teiú cruzou a estrada de terra vermelha, à frente da tropa. A madrinha resfolegou, sacudiu o pescoço e tilintou o cincerro, sem perder o ritmo da marcha. Era um pampa roncolho de estimação e puxava a fila de sete mulas, cujas bruacas estavam carregadas de carne-seca, rapadura, fumo de rolo e tecidos finos.

Eu cantarolava a antiga moda de minha infância, montado no baio Navio, logo atrás dos dois ajudantes que seguiam a pé no controle das mulas. O arreio do corcel era um socado sul-de-minas de cor preta, barrigueira dupla e peitoral cravejado de prata que rebrilhava à luz do entardecer.

Era a primeira vez que nossa comitiva visitava Morro do Calvário, lugar perdido nas lonjuras do sertão mineiro do qual ouvi muitas notícias.

Nosso objetivo era conquistar freguesia na região, competindo com os mascates sírios e libaneses que por ali passavam vez ou outra, cheios de salamaleques, desde os tempos da antiga Estrada Real que ligou Diamantina a Parati, no Rio de Janeiro.

Do alto da sela, em plena marcha, contemplei o lugarejo aos pés da colina depois do muro de pedras que ladeava a estrada vermelha de chão batido.

Quatro ruas tortas com casas caiadas davam numa praça irregular calçada com seixos redondos. Chamava a atenção no meio da praça uma igreja branca de portais azuis com uma única torre, tendo à frente duas palmeiras imperiais que de tão altas pareciam espetar o céu.

Perto da matriz funcionava uma torrefação e a chaminé cuspia fumaça escura, que impregnava o ar com o forte aroma do café que estava sendo torrado.

Na parte mais baixa do terreno, o Ribeirão das Mortes serpenteava barrento, ao longo do vale, até sumir de vista nos rumos do São Francisco, aos pés da serra de contrafortes azuis enevoados.

Um bando de maritacas voou sobre nossas cabeças, fazendo intensa algazarra. Não demoramos a alcançar a rua principal e um vira-lata magricelo veio ao nosso encontro, anunciando a chegada da comitiva com latidos esganiçados. Num dos primeiros casebres, um rádio sintonizado em ondas curtas dava notícias da guerra na Europa.

Poucos meses atrás, cedendo às pressões populares e aos apelos do governo americano, o presidente Vargas havia mandado para a Itália os primeiros pracinhas brasileiros e isso, com certeza, havia aumentado a audiência do noticiário.

Na janela seguinte, um homem moreno com um pito de palha num canto da boca respondeu ao meu cumprimento de boa-tarde com um leve aceno de cabeça.

Pouco à frente, uma jovem clara de cabelos castanhos encaracolados debruçou na janela para espiar a chegada da tropa. Era pouco mais que menina, mas os olhos negros e brilhantes iguais a jabuticabas lhe davam um aspecto maduro, como se estivesse viçosa para o amor.

Ela observava a comitiva como se tratasse de uma grande novidade. Algo inusitado, igual a um circo ou parque de diversões, visitantes que geralmente atiçam a imaginação e despertam fantasias infantis até mesmo em adultos mais carrancudos.

Nessa hora, experimentei uma estranha sensação. Com todo o meu tempo de viagem pelo sertão dos Gerais, não me lembrava de ter visto semblante tão formoso, de sobrancelhas grossas e lábios carnudos, cor de amora madura. Recordei o sorriso da artista de cinema que uma vez admirei numa folhinha, na barbearia onde cortava cabelo, na Itabira do Mato Dentro de minha infância.

Ao chegar diante da janela da linda moça, puxei a rédea e fiz o baio estancar a marcha. Tirei da cabeça o chapéu cinza de abas largas manchadas de suor e saudei a donzela, que por timidez ou recato engoliu metade da frase, dizendo apenas a palavra tarde.

Qual é a sua graça?, perguntei.

Gláucia Maria de Moura, ela respondeu.

Leôncio Duarte, seu menor criado... Se não for incômodo, será que a moça me arranjava um pouco d’água? A garganta, de tão seca, tem gosto de poeira.

Meu pedido escondia o desejo de estreitar relação. Mais que água para saciar a sede, eu desejava mesmo era desfrutar a atenção da moradora, cujo modo acabrunhado me deixou admirado. Afinal, que alma cristã negaria água a um viajante num dia quente como aquele?

A moça sumiu dentro da casa e não tardou a sair pela porta lateral. Desceu os sete degraus de pedra com pés descalços e formosos, trazendo consigo uma bilha de barro e uma caneca de alumínio muito areada que gentilmente me estendeu.

Apoiei o chapéu no arção da sela e inclinei-me sobre a montaria. Ao levar a mão para pegar a caneca d’água, acariciei os dedos de seda da boa samaritana e lancei um rabo de olho sobre seus seios redondos apertados no decote do vestido azul. Vi a pele branca arrepiar como se o meu olhar comprido lhe fizesse cócegas.

A tropa havia parado logo à frente, à sombra de um pé de jatobá.

O negro de canelas finas e encardidas, que era o mais velho dos dois almocreves, não demorou a interromper-me o flerte. Aproximou-se da moça e perguntou se ela não arranjaria água também para ele e o companheiro de lida, que estavam ambos muito cansados.

Virei na boca a caneca e sorvi toda a água, quase num único gole. Enxuguei o bigode com as costas da mão e devolvi a vasilha à gentil moradora, que a estendeu ao tropeiro, enchendo-a logo a seguir.

O ajudante, um mulato alto e forte com o rosto luzidio de suor, também se aproximou para saciar a sede.

No mesmo instante, chegou à janela da casa um homem moreno e atarracado, de bigode fino e cabelos grisalhos, com o branco dos olhos da cor de enxofre.

O que se passa, Gláucia Maria?

A moça explicou que estava servindo água aos tropeiros que haviam acabado de chegar ao lugarejo.

Sem perder o jeito, que não sou filho de pai assustado, apresentei-me ao velho e fui logo explicando que aquela era a primeira vez que trazia mercadorias para vender em Morro do Calvário.

Que tipo de mercadorias?, ele quis saber, franzindo o cenho com os polegares atrás do suspensório.

Um pouco de tudo, respondi prontamente. De fumo goiano do bom a tecidos finos, inclusive cortes de linho 120.

O dono da casa se apresentou. Era o coronel Arlindo de Moura, pai da linda moça. Para nosso alívio, ele afirmou que a tropa era bem-vinda ao lugarejo onde certamente encontraria freguesia honesta.

_____________

Capítulos anteriores

Próximo capitulo: 4 - Ascânio Benevides - 27/07/2008