Um vitorioso operário da palavra
Jorge Fernando dos Santos, porém, não esconde sua desilusão com a cultura brasileira.
Por João Gualberto Araújo*
A ascensão da classe C, propalada por aí como responsável por também alçar o Brasil a um novo patamar, não empolga Jorge Fernando dos Santos. O “agitador cultural”, como se define o homem de talentos múltiplos, é um dos raros cidadãos dos nossos dias blindados à ilusão dos números em multiplicação e dos que teimam em lamentar essa associação, que se pretende automática, entre desenvolvimento e mercado de consumo. “Quantidade não é sinônimo de qualidade”, ressalva o operário das palavras, que, como tal, tem por elas o respeito de empregá-las com as devidas doses de reflexão.
Uma professora um dia ensinou à turma deste repórter que quem pensa muito sofre. Os pensamentos de Jorge, na labuta diária com a pedra dura da palavra, o levaram à desilusão. Frustrado com a política cultural empreendida nas últimas décadas pelas gestões públicas locais e nacionais – inclusive as executadas pelos “partidos ditos de esquerda” –, é taxativo: “Falta conteúdo às pessoas. Não se prioriza a educação”. Na visão dele, é como se estivéssemos (ou estivessem) construindo paredes e tetos de uma casa sem a preocupação com o piso e os alicerces.
Fora as metáforas, o escritor, compositor, dramaturgo, jornalista e colaborador da revista eletrônica Dom Total não acredita que o “luxo” alcançado recentemente no país de consumirmos em massa bens intangíveis irá nos transformar necessariamente em cidadãos melhores, mais bem informados e donos do próprio nariz. Vivemos numa era de excessos, e ele, cujo sonho de menino era se tornar compositor, chega a reclamar da superexposição dos ouvidos: “na televisão, na internet... a gente sai de carro e é um ouvindo funk do lado, um outro com pagode atrás”.
Escrever para despertar
Numa época de hemorragia incontida de barulhos e cores, o autor de 40 livros – a maioria deles indicado para as estantes infanto-juvenis – não tem dúvida de que a literatura sai perdendo com vários gols de frente para os adversários. Ler um livro requer silêncio e introspecção em instantes de reserva do mundo dito real. Enfim, exatamente o contrário de tudo que nos impele a sociedade do espetáculo na esteira do projeto político de democratização do mercado consumidor.
O pessimismo confesso, pena de quem reflete, não contaminou o espírito criador, contudo. É a flama que parece imune aos percalços coletivos e individuais em mais de 30 anos de carreira. O sorriso fácil e convidativo também não camufla a contumácia do militante da educação e da cultura popular. Dia desses, Jorge foi convidado por uma editora a integrar uma coleção chamada Histórias para Dormir. Recusou. “Eu escrevo é pra acordar as pessoas, pô”.
Pois se o horizonte não é dos mais belos, é o impulso da criação que o move enquanto segue a fazer planos e colher frutos. Na quinta-feira (24), ele recebe, na Academia Mineira de Letras, menção honrosa no Prêmio Cidade de Belo Horizonte. O romance laureado é o ainda inédito “Condomínio Solidão”, que se passa no edifício JK. Honra que merece ser mencionada também é o fato de uma confraria de escritores, da qual Jorge fez parte, ter se obstruído ao projeto da Prefeitura de Belo Horizonte, por meio de sua Fundação de Cultura, de pôr um ponto final na premiação, a mais antiga do Brasil, de 1947. A ameaça se deu em 2012, e o grupo de autores foi bater à porta do prefeito Marcio Lacerda. A mobilização deu resultado: não só o concurso foi preservado como também os valores concedidos aos vencedores aumentaram.
Solidão premiada
“Condomínio Solidão” faz um mosaico da “fauna” que habita o mítico residencial do Centro de BH projetado por Niemeyer. Idosos, prostitutas, viciados, jornalistas e um verdureiro japonês do Mercado Central são alguns dos personagens que convivem num respeito que se confunde com indiferença e compartilham do mesmo espaço solitário na metrópole. O fio da meada do romance policial é um misterioso assassinato de um morador gay. Mistério, aliás, foi o período em que Jorge Fernando morou no condomínio-protagonista.
Ele reconhece que jamais voltou a ser tão disciplinado com a escrita depois que se cansou da redação de jornal diário. Melhor, foi um “cansaço mútuo”, como define. Acontece que, no JK, foi a primeira vez – e até agora única – que vivenciou algo que se assemelhasse a um bloqueio diante do branco da tela. Talvez a minicidade de concreto adivinhasse que suas entranhas estivessem sendo devassada em texto uma de suas unidades. Cobrou um preço pela ousadia ao morador novato. Mas o condomínio foi recompensado, imortalizado em livro premiado.
O policial ambientado no JK é um dos feitos recentes do escritor. “Alguém tem que ficar no gol”, romance infanto-juvenil que tem a final da Copa de 50 como pano de fundo, ficou em 2º lugar no concorridíssimo prêmio Barco a Vapor, da SM Edições, que decidiu publicar o livro. O futebol também é o tema central de “Cordel da Bola que Rola – Histórias e Lendas do Futebol”, que está em vias de sair pela editora Paulus. Com o cordel, ele marcou outro golaço neste ano. Também publicado pela Paulus, “Ave Viola – Cordel da Viola Caipira” recebeu o prêmio Rozini de Excelência da Viola Caipira. A iniciativa é voltada para violeiros, mas contempla também obras literárias que tratam do instrumento de dez cordas que desbravou o Brasil dos povos tupi-guarani pelas mãos dos missionários jesuítas e acabou por se tornar símbolo maior da música do interior.
Patinhos feios
O belo-horizontino de 57 anos atentou para o gênero de origem nordestina como projeto de trabalho durante uma visita à feira do livro de Bolonha, na Itália. Percebeu que o reconhecimento à vertente popular da poesia tem mais reconhecimento no exterior do que no Brasil. “Ave Viola” une dois “patinhos feios” da cultura popular brasileira, discriminados por associação à tradição oral, iletrada e de berço essencialmente popular. Tanto a viola quanto o cordel vêm se desacorrentando das amarras de origem e desembarcando nas rodoviárias das grandes cidades e já rodeando as universidades.
E a obra aposta nisso. A proposta nasceu da encomenda do ator Saulo Laranjeira para o projeto “Nos Braços da Viola”, da TV Brasil. Mas a inspiração foi além e rendeu um livro a custa de poucas sentadas diante do computador. Com belas ilustrações de Denise Nascimento, “Ave Viola” foi selecionado para integrar o kit da Secretaria de Educação de Belo Horizonte.
O casamento entre música e literatura, que sintetiza a carreira de Jorge, é sua principal empreitada para o ano que vem e nasceu de outra percepção: falta livro didático para atender à obrigatoriedade do ensino musical nas escolas. Em 2005, ele lançou o não menos conceituado “ABC da MPB”, que “mastigou” para a meninada os principais gêneros populares do Brasil e veio acompanhado de um CD ilustrativo com dez canções, todas com letras dele. Agora, prepara “A Mágica da Música”, em parceria com o compositor de Rio Acima Eugênio Britto. O objetivo do trabalho será aproximar a criança e o adolescente da música brasileira boa (rótulo que está acima das preferências) por meio de uma linguagem adequada.
O importante é ler
Adequação, inclusive, é a palavra-chave para que as demais conquistem a atenção dos mais novos num tempo de quase hiperestesia epidêmica. O autor de “O Rei da Rua”, “Palmeira Seca” e “O Menino e a Rolinha” se recorda de ler na escola, ainda menino, clássicos de Machado de Assis e José de Alencar, por exemplo, e entende que “verdes mares bravios da minha terra natal onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba” pode não ser sentença lá muito atraente para a geração do Kinect e do tablet.
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De quando lançou sua primeira obra, em 1984, até hoje, o mercado editorial aprendeu a se comunicar melhor com o leitor em formação e, nessa picada, floresceu prosperou. Jorge tenta seguir as mesmas pistas de boa adequação e, sempre que fala em palestras para crianças e adolescentes incentiva: “Leiam qualquer coisa. O importante é ler”. Daí que não embarcou na onda dos detratores do fenômeno Harry Potter. Bárbara, sua filha, foi uma das leitoras que cresceram junto com o bruxinho herói. Hoje estuda Letras.
Não é todo mundo que pode ter um pai compositor de 40 parceiros e autor de 40 livros, que participa de feiras aqui e alhures e arrebanha prêmios a cada leva de novos leitorezinhos. Mas um conto puxa outro, e com livro pode ser a mesma coisa. Como não ter esperança de ajudar a construir uma pátria com homens e livros? Para que, na desesperança, perseverar na militância e, por meio da “melhor música popular do mundo”, querer ajudar a educar as crianças com a palavra mais adequada? “Quero dar a minha modesta contribuição”, justifica o operário incansável.
*João Gualberto Araújo Júnior é jornalista, economista e compositor bissexto
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