"O cinema vai matar o romace. O papel que este desempenhou, e de alguma forma ainda vem desempenhando, tende a ser exercido agora por aquele. Ao contrário do que se supunha, o cinema faz hoje muito mais concorrência ao romance do que ao teatro. O gênero literário que fez a glória de tantos escritores já começa a ser o que em linguagem sociológica se chama uma 'sobrevivência'. E se ainda vem resistindo à nova arte, é porque os meios técnicos necessários para escrever um romance estão ao alcance de qualquer indivíduo, ao passo que o cinema exige uma complicadíssima organização industrial. Trata-se de uma vitória da técnica. O romance foi criado para satsifazer a determinadas necessidades intelectuais, emotivas e de compreensão da vida em seus valores eternos, que o homem possui, e é, em última análise, uma história que se conta. É claro que não tem apenas a finalidade de distrair, mas também a de permitir que recriemos a nossa vida. que vivamos mil existências diferentes e nos enriqueçamos com isso de uma experiência que de outra forma não poderíamos ter. Apresentando uma superioridade sobre a vida real, a dos heróis dos romances não irreversível como a nossa, mas, ao contrário, capaz de voltar a qualquer instante ao que era antes, bastando para tanto que retrocedamos algumas páginas. Mas desde que, com o desenvolvimento da técnica, se descobriu um meio melhor, mais objetivo e convincente, de se contar aquela história que algumas das nossas necessidades reclamam, é evidente que o processo antigo tende a desaparecer. Sobreviverá, provalvelmente, uma forma de romance mais intelectualizado, mais literário, mais artístico, mas o romance, como história que se conta, é gênero fadado a desaparecer. Todo progresso que se vem notando na arte do cinema é no sentido de permitir que este se apodere dos meios de expressão do romance. Aliás, quase todas as conquistas do romance pós-naturalista já foram aproveitadas pelo cinema: a técnica contrapontiana, análise dos pensamentos, mesmo inconscientes, dos personagens etc. Por sua vez, os romancistas se deixaram influenciar pelos processos cinematográficos, e dois exemplos disso temos no Brasil na obra de Oswald de Andrade, quase toda composta em quadros isolados, e na de Otávio de Faria, escritor que é, aliás, um grande conhecedor de cinema, tendo feito parte, mesmo, de um clube de entendidos dessa arte que houve outrora aqui, o Chaplin Clube, e que me parece construir seus romances partindo de uma concepção cinematográfica".
Fonte: SENA, Homero. República das letras. R.Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.