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Conselho literário
Sergio Rodrigues

"Meu conselho-padrão, que muita gente acha que é piada mas é sério, costuma ser o seguinte: desista se for capaz. O mundo da literatura parece charmoso e tal, mas a verdade é que o jogo é muito duro e nem sempre leal, as recompensas são fugidias e as chances de fracasso - não só comercial, mas estético mesmo - estão todas contra você. Agora, se depois de considerar tudo isso o sujeito ainda for incapaz de desistir do seu plano maluco, então é escritor mesmo, e nesse caso todos os conselhos se tornam fúteis. Cada um tem que encontrar seu próprio caminho. Ler muito, ler tudo, e não ter pressa demais de publicar talvez sejam recomendações úteis. Arranjar um jeito de sustentar seu “vício” também me parece um bom toque. A menos que seja rico de berço ou de baú, um escritor deve ter outra profissão, sob pena de ser levado pela ânsia do profissionalismo a vender seus escritos cedo demais, tornar-se um marqueteiro juramentado ou sair à caça de bocadas estatais - e nada disso é muito saudável para aquilo que realmente importa, isto é, o texto".

Fonte:http://colunistas.ig.com.br/sergiorodrigues/2009/06/19/desista-se-for-capaz/

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Sergio Rodrigues, agora colunista da revista Veja, alargou seus conselhos numa série de apresentações:

Conselhos literários fundamentais (I)
Odeie o conforto. Se estiver concentrado demais na história que está escrevendo, ligue a TV, entre num bate-papo virtual. Caso as palavras continuem a lhe jorrar dos dedos, ponha uma música, desligue o ar condicionado, abra a janela para o berreiro de freios, buzinas e motores. Sinta-se incomodado: retarde ao limite do desastre – ou mesmo, havendo disposição e necessidade para tanto, além dele – a hora de ir ao banheiro. Morra de sede, chegue a passar fome. Brigue com a sua mãe. Mande confeccionar para sua cadeira de escritório XTZO-3000 (com amortecedor inteligente) um magnífico assento de tachinhas medievais. Boicote-se: se escrever umas tantas páginas-telas que lhe agradem em particular, dê um jeito de perdê-las, negando-se como um tonto a salvar o arquivo ao fechá-lo. E então esprema a memória para reproduzi-las igualzinho, vírgula a vírgula, exceto por uma palavra que já não achará mais e cuja ausência, se tudo der certo, vai torturá-lo por horas e horas de trabalho ou trabalho nenhum, pois não se pode chamar de trabalho o tumulto de pensamento que o tomará então, o céu a estridular como se fosse partir ao meio e o computador berrando mais do que a cidade e a TV juntas jamais sonharam berrar. Nesse momento, se as instruções tiverem sido seguidas corretamente, a linguagem estará passando por você depressa demais para ser captada, zunindo, turbilhão de luz no hiperespaço. Você terá se infiltrado, como um espião ou um vírus, no coração da máquina que move um mundo de palavras sem tempo de fazer sentido. É horrível. Avance a mão, colha uma ao léu, e então comece

Conselhos literários fundamentais (II)
Nunca aceite conselhos, com exceção deste: nunca aceite conselhos. A abertura da exceção destina-se a evitar um curto-circuito lógico que precipitaria o pensamento em abismos semelhantes ao do célebre “paradoxo do mentiroso” de Epimênides ou Eubulides, aquele que diz: “Estou mentindo agora”. Caso aceite este conselho, você vai descobrir que ter aberto tal exceção equivalerá a reconhecer – questão de honestidade intelectual – o princípio de que conselhos podem ser úteis e que, sendo assim, a determinação de nunca aceitá-los é uma estupidez. Um caminho que parece menos traumático é recusar o conselho de nunca aceitar conselhos e permanecer livre para aceitar os conselhos que quiser, repudiando os demais. No entanto, a arbitrariedade dessa discriminação, confundindo-lhe a alma, tenderá a encaminhá-lo para a aceitação do conselho bom ao lado do ruim, qualquer um, na verdade, menos este, o de nunca aceitar conselhos. Aceite todos, portanto, inclusive este, eis o que seria meu principal conselho, se eu não estivesse mentindo agora.

 

Conselhos literários fundamentais (III)
Esqueça o famoso conselho: um escritor não precisa escrever sobre o que “conhece bem”. Quase todo mundo, ao escrever sobre o que conhece bem, produz platitudes que o leitor também conhece bem, antes mesmo de ler. Invente, se der na veneta, um mundo pré-colombiano inteiro, mapas e tudo, com nórdicos e ibéricos que a história não registrou se imiscuindo entre os incas, onde uma princesa chamada Aya, cujo amor pelo louro Thür foi condenado por seu pai, o imperador Tapa-Quichuchu, entra nua e magnífica numa banheira de enguias elétricas enquanto na rua o povo comemora a chegada de um novo ciclo lunar fornicando desavergonhadamente pelos cantos, ao som de trompas de chifre e tambores de lhama. Então, no meio daquela zorra, pare um minuto e dê a alguém, um personagem qualquer, um traço seu: a dor de cabeça da noite passada, por exemplo. Um jeito de andar ou falar. Em histórias menos épicas, pode ser a preferência por uma marca de cerveja. Basta: essa gota de verdade pessoal, essa mísera pincelada no formidável painel, num fenômeno alquímico ainda pouco elucidado, torna de repente lancinante o suicídio da bela Aya, imprescindíveis as enguias, trompas, bacanal, América pré-colombiana de araque ou o que quer que se urda com razoável esmero e que por obra daquele detalhe pífio, daquela gota de experiência, vibra agora tão vivo quanto a vida que temos diante do nariz, só que mais excitante. Ou pelo menos é nesse sentido que você encaminha suas preces

Conselhos literários fundamentais (IV)
Busque no ritmo das pedrinhas portuguesas a exata ondulação de um capítulo. Abra o dicionário ao acaso para encontrar o adjetivo preciso. Conte o número de carros azuis que avista da janela no prazo de cinco horas para decidir quantas vezes um personagem deprimido tenta se matar antes de ter sucesso. Desventre croissants para estudar camadas de sentido. Aposte contra a máquina no futebol do Playstation o destino – ganhou, apogeu, Fitzgerald; perdeu, decadência, Faulkner – de um protagonista ególatra, seja ele astro do rock ou imperador da borracha na Manaus do século 19. Estude doutamente a borra do café, procure ancestrais desígnios pétreos nas dobras do lençol pós-insônia, contemple o ar invisível, sonde as próprias fezes. Faça cada dia de chuva puxar uma pétala do malmequer, e assim, passados sete meses, decida o desenlace romântico de herói e mocinha. Para questões de estilo, prefira roletas e dados.

Conselhos literários fundamentais (V)

Não precisa ser a primeira preocupação do escritor ao se sentar diante do suporte físico ou etéreo em que gravará suas palavras, mas em algum momento do processo é recomendável que ele tenha em mente a questão do texto que se fagocita contra o texto que se degusta aos poucos, em fatias finas, como um carpaccio. A oposição estabelecida por Andrônico de Rodes, o primeiro editor de Aristóteles, e ampliada por diversos pensadores, dos quais Montaigne não será um dos menos ilustres, vive desde o Modernismo uma crise de cognição. Hoje, quando se refere à questão do texto que se fagocita contra o texto que se degusta aos poucos, em fatias finas, como um carpaccio, o crítico erudito tende a pensá-los como dois países autônomos. Talvez influenciado pela famosa oposição entre intelecto ativo e intelecto passivo proposta pelo Estagirita que Andrônico seguia, imagina cada um desses territórios entregue a seus próprios habitantes, com autores de livros para fagocitar atendendo à demanda de leitores fagocitadores, e produtores de carpaccio à dos apreciadores de fatias finas. Equilíbrio que não deixa de ser precário, como atestam as guerras diplomáticas entre as nações antípodas, mas é, de todo modo, reconfortante. Se retomarmos o fragmento original, porém, veremos que alguma coisa se perdeu desde a intuição fulgurante do obscuro peripatético: “Histórias comidas com vagar alimentam o intelecto, histórias engolidas de uma vez alimentam a alma”. Ora, o que se perdeu é algo que, ao lançar na arena uma oposição de outro nível epistemológico e moral, descola o humilde Andrônico do campo aristotélico da moderação: o fato bastante óbvio de que o bom leitor (fiquemos em bom, para não invocar um ideal platônico) precisa nutrir tanto cabeça quanto alma, e portanto não se satisfará com uma coisa só. É provável que se torne então um leitor voraz e eclético, do tipo que intercala livros para fagocitar com livros para degustar aos poucos, em fatias finas, como um carpaccio. Mas também pode ser que, não contente com tal arranjo, passe a procurar escritores que revezem como ele os dois estilos, brincando de gangorra com carpaccios e fagocitoses, numa alternância que será o motor da própria escrita, às vezes com bruscas inversões dentro da mesma frase ou, pensando bem, da mesma palavra. O leitor verá que esses escritores não são fáceis de encontrar, mas procurá-los é preciso. O que você tem a fazer é lutar com todas as forças para ser um deles.

Conselhos literários fundamentais (VI)

Não tenha preguiça de reescrever. O escritor que não reescreve o que acabou de escrever, mesmo que por pura mania, mesmo que para deixar o texto indiscutivelmente pior, não merece ser chamado de escritor. Será, no máximo, um excretor a sujar de palavras fisiológicas em estado bruto um mundo que não precisa de sua contribuição para se assemelhar a um aterro sanitário de símbolos. Se escrever dez linhas, reescreva-as dez vezes em dez horas, e mais dez vezes a cada dez horas dos dez dias seguintes: corte, amplie, pregue, serre, lixe, solde, cole, mude tempos verbais e a ordem dos parágrafos, exercite a sinonímia e a intolerância. (Este conselho, por exemplo, foi reescrito ao longo de nove meses de trabalho diário. Em sua primeira versão, dizia: nunca reescreva o que acabou de escrever.) E caso ocorra a circunstância nada improvável de retornar nesse processo de edição a um texto muito semelhante ao original, ou mesmo idêntico a ele, saiba que a sensação de tempo perdido será uma ilusão e que o fruto da reescritura, como o Quixote de Pierre Menard, terá por trás das mesmas palavras uma densidade incomparavelmente superior. Claro que também é preciso reconhecer o momento de parar de reescrever, aquele ponto a partir do qual, como nas cirurgias plásticas em série, qualquer nova mexida só pode resultar em desastre, mas isso não é tão difícil: ele costuma vir acompanhado do impulso de golpear repetidamente o cristal líquido com o teclado para ver qual quebra primeiro.

 

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