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Grandes entrevistas

Coelho Neto

Entrevista conduzida por João do Rio, para a edição de seu livro: O momento literário. Rio de Janeiro: Garnier, 1904.

     Dez horas da manhã. O grande artista escreve. A sala forrada de cinza está atravancada de altas estantes, de largos divãs indianos, de vastas rocking-chairs de couro lavrado. Na secretária, um frasco de neurosina, um volume de Dumas, um pote de faiança com fumo rio-novo. Ao fundo, uma coleção de retratos de amigos. Muitos estão mortos. Os amigos que morrem levam para a sepultura um pedaço de nossa própria vida... A atmosfera morna é de inteira inquietação. Na rua, o mormaço do céu, afogado em nuvens, parece abater as árvores; na sala ouve-se apenas o imperceptível cicio da pena no papel de linho, enquanto um gato muito gordo, muito branco, muito peludo, lambe devagar uma das patas. Coelho Neto levanta-se normalmente às 5 da manhã, senta-se a escrever às 6, trabalha até às 2, vai para o duche frio, almoça e às 3 da tarde recomeça para só terminar quando se acendem na cidade as primeiras luzes. Há quatro horas já, impalpável e divina, a fantasia impele a sua pena de aço.

- Pode-se falar? O artista levanta a cabeça.

Oh! Tu? Entra... Aproveito e descanso um pouco. Estou a escrever agora uma peça para a companhia Lucinda e Christiano. A princípio foi um prazer. Mas eu tenho um juiz, o meu primeiro público, a minha mulher. Outro dia sentei-a naquela cadeira e fi-la ouvir um ato. Sabes a sua opinião? É uma peça perversa, que vai me criar uma porção de inimizades! Verdade é que não há nada de mais atual. Estudo aspectos de nossa sociedade ainda por estudar no teatro, e entre os quais o mundo dos decaídos e a célebre questão dos casamentos... Minha mulher obrigou-me a rasgar uma cena inteira, entre um velho, que é o elemento honesto, representativo do nosso antigo fundo moral e grupo moderno. Que tem o Sr. Paiva? – Ora, o que tenho! Não sabes que o Souza casou? – Bem, o que há nisso para tristezas? – Mas a primeira mulher está viva... Começa assim. Pois, rasguei a cena! Não imaginas como custa inutilizar um trabalho quando o sentimos vivo e exato. O meu público porém é inexorável. Senta-te, tomas café?

     Coelho Neto está de pijama branco, meias de seda, escarpins de pelica. Senta-se um instante.

Sabes que ainda não pensei no questionário? Há lá um ponto muito grave, - a pergunta sobre a influência do jornalismo.

- É dizer qualquer coisa: muito bom, muito mal, regular...

Sem explicações?

- Pois se é grave! Neto sorri.

Vamos ver o questionário. Deve estar numa destas gavetas.

     Procura-o. O papel branco em breve aparece dobrado em dois, e eu vejo que daquelas simples perguntas a imaginação de Coelho Neto fará surgir a maravilha e o encanto, Se é de pasmar o brilho, a cintilação do estilo no escritor, a faculdade da imagem, o poder evocador, o comentário agudo e a torrencial fantasia do seu claro espírito como se acentuam na conversa. Neto conversa irresistivelmente, caleidoscopicamente. A palavra vive no seu lábio com um poder formidável e consciente. Há momentos em que se tem, pela harmonia dos períodos, a rápida impressão dos malabaristas jogando bolas de metal de pesos diferentes, e cada frase sua em torno do assunto traz, numa palpitação de encantos, a constante visão dos cultos mortos e dos deuses. Coelho Neto é, de resto, de uma rude franqueza meridional.

Para a minha formação literária, começa ele, não contribuíram autores, contribuíram pessoas. Até hoje sofro a influência do primeiro período de minha vida no sertão. Foram as histórias, as lendas, os contos ouvidos em criança, histórias d negros cheias de pavores, lendas de caboclos palpitando encantamentos, contos de homens brancos, a fantasia do sol, o perfume das florestas, o sonho dos civilizados... Nunca mais essa mistura de idades e de raças deixou de predominar, e até hoje se faz sentir no meu ecletismo. A minha fantasia é o resultado da alma dos negros, dos caboclos e dos brancos. É do choque permanente ente esse fundo complexo e a cultura literária que decorre toda a minha obra, e daí Baladilhas, Rapsódias, livros de uma fatura absolutamente especial.

- Há entretanto, uma parte da sua obra...

Sim, a parte fescenina. É aí no Fruto proibido, que recomeço a ter a responsabilidade do meu trabalho. O amor pela lendas, pelo fantástico ficou porém. O livro que mais me impressionou foi As mil e uma noites. Depois toda a obra de Shakespeare, o Dom Quixote, os poetas gregos, Plutarco que releio constantemente...

- E os modernos?

Flaubert, o admirável Maupassant, Taine, que é a base de minha visão crítica, e os ingleses contemporâneos, com especialidade os dramaturgos.

- Quanto a Portugal?

Todos os clássicos. Eça de Queiroz... Eu estudo com grande amor a língua portuguesa, mas sou pela liberdade, fujo aos estudos propriamente chamados clássico-gramaticais. As línguas evoluem, e eu admito, como necessidade de representação de idéias, o estrangeirismo. Tenho a respeito da palavra uma teoria: a palavra falada é a palavra viva, livre, solta de todas as cadeias, capaz de por se só definir, pintar, colorir; a palavra escrita é a palavra agrilhoada, morta. Sem a expressão imediata. A primeira tem a intenção que é tudo e a inflexão que é a realidade da intenção. Toma por exemplo a palavra Deus. Deus tem uma cor no juramento solene, outra no auge do pavor, outra na ironia, tem todas as cambiantes do sentimento, graças a inflexão e, às vezes, apesar de sagrada, falta-lhe moralidade, como quando uma rapariga, comida de beijos pelo amante, murmura trêmula – Meu Deus! A palavra escrita vive do adjetivo, que é a sua inflexão. Daí a grande necessidade de disciplinar o vocabulário.

     Coelho Neto é no Brasil o que Rudyar Kipling é na Inglaterra, - o homem que joga com maior número de vocábulos. Alguém já lhe calculou o léxico em 20.000 palavras.

A questão não é de vocabulário; é de disciplina. Os russos têm uma porção de dicionários de soldados e para nada lhes serve o possuí-los. Eu consegui disciplinar o vocabulário. Dada uma certa impressão, concluída uma idéia, posso sentar-me e escrever. A idéia sai vestida e os termos exatos juntam-se no perfeito reflexo da impressão. Estou a tomar uns ares dogmáticos... Perdoa. È quase uma confissão. Vem desse esforço, que foi a pouco e pouco desbastando do meu estilo os guisos de muitos adjetivos para substituí-los por um só, exato, o emprego de certos termos populares como sarrilho e de palavras desejosas de dar a idéia mais onomatopaica do fato, como buchorno com a significação de mormaço – dois substantivos vítimas em tempo de crítica... Acusam-me de preciosismo, meu caro amigo. Não sabem eles que o artista é o resultado de mil influências desencontradas...

- Qual dos seus volumes prefere?

O Pelo amor!. Não se admire. Prefiro o Pelo amor! por uma questão de momento. Ainda naquele tempo julgava-me capaz de alguma coisa no Brasil. Foi uma batalha perdida, mas de que lembro com saudades, como certos generais velhos recordam nostálgicos as derrotas. Em todo o caso foi uma perda que acentuou a cisão e determinou uma corrente literária.

- Mas só o Pelo amor!?

E no romance Inverno em flor. A verdade é que, enquanto escrevo, sinto um grande prazer e depois fico assustado com os defeitos. Tenho um processo de trabalho constante. Só as novelas foram acabadas e retocadas antes de serem entregues aos editores. O resto da minha obra tem sido escrito dia a dia para os jornais. Assim fiz a Capital Federal, o Rei fantasma, o Turbilhão.

- Mas é impossível!

É a verdade. Devo muito à “Gazeta” e ao “País”, que receberam os meus primeiros ensaios. A crítica, quando foram dados à luz alguns volumes meus com intervalo apenas de dias, gritou contra o que ela chamava mercenarismo. Não sou infelizmente conhecido nem do público nem da crítica. O público não sabe a capacidade do meu trabalho, a crítica ignora porque trabalho tanto. A publicação do Rajah de Pendjab levantou então uma celeuma. Não sabem eles que, subordinado o estilo à concepção, a pena trabalha quase mecanicamente, não querem recordar que muitas obras primas foram escritas em dias como o Hamlet, de Shakespeare e principalmente recusam compreender a necessidade de um escritor que resolve viver apenas da própria pena. Não conheces a história do Rajah? Eu entrava na Gazeta precisando de dinheiro e encontro o Araújo zangado. Por que? Tinham perdido um novo e sensacional folhetim. Não se incomode doutor, faço-o eu. Qual! Tens muitas psicologias... Faço um sem psicologias! Fomos dali tomar um sorvete. Então fazes? O príncipe encantado serve? Também é um título velho. O rajah seja, o Rajah de pendjab. Para depois de amanhã? Para depois. E a reclame foi feita para um romancista francês, de que a Gazeta deu um retrato reproduzindo a cara do Humphreys...

Rimos os dois alguns instantes. Coelho Neto continua:

A crítica não fala só da abundância de atavios, do mercenarismo com que confunde a realização imediata de uma idéia acabada, fala também do número dos meus volumes.

      Neste país, onde se tem, não a preguiça mental, mas a preguiça física que inibe de escrever, o Sr. Coelho neto tem cerca de trinta volumes. Pois, não senhor. Coelho Neto tem acabados 50 volumes.

- Cinqüenta?

Sim, e a todos prezo, sim 50! Bastava que em cada um houvesse uma página digna para que os publicasse.

    Levanta-se maquinalmente para mostrar-me as lista dos volumes a aparecer. Nesse momento febril, como o olhar brilhante, o lábio grosso, cheio de juventude e de esforço, é impossível deixar de admirá-lo.

Sou um tropista do trabalho, a bête de somme do franceses – quero, e mourejo como um servo da gleba... Ah! Meu amigo, o artista não é o zoilo das confeitarias à cata de jantar. Preciso de um relativo conforto, preciso rodear os meus filhos de bem estar. Trabalho! Creio que só a tenacidade e o querer têm obstado a minha morte. Hei de ir até o fim com o prazer de ter pago sempre as minha dividas...

    Ficamos um tempo calados. Neto mostra-me as provas dos seus livros, agora editados em Portugal – A treva, Água de juventa, Mistério do Natal, Pastoral. Que extraordinária atividade! Que prodigioso cérebro!

- E quanto a escolas, a lutas?

Não há nada. Vejo no Brasil uma coisa curiosa: dois grupos, um muito pequeno, dos que podem; outro, enorme, dos que não podem. Lembram-me a história da princesa Parizat nas Mil e uma noites. No alto da montanha havia três talismãs: a árvore que canta, o pássaro que fala e a água amarela. Quem subisse até lá seria possuidor de todos os três, mas o caminho era aspérrimo e as pedras faziam um estranho clamor. Quem atendesse ao chamado das pedras em pedras se transformava. Só a princesa chegou ao pico da montanha. O clamor das pedras é aqui o nefelibatismo, o ocultismo, o criticismo, o torcido, o escabujamento, o histerismo... Acho, entretanto, que chagaremos a ter uma Escola Brasileira, não o indianismo, mas a idéia brasileira, o costume brasileiro, numa língua que terá a clareza do Eça, e a maneira francesa na mais plástica de todas as línguas – a língua portuguesa. Par aisso, é preciso antes de tudo o prestígio oficial. A transformação far-se-á violentamente, porque somos um povo de explosões. No dia em que a proteção oficial for uma realidade, o público admirará a arte no teatro e no romance, como se encaminhou para a Avenida, e o artista, tendo se deitado num grabato se deitará num leito de púrpura.

- Falei-lhe da literatura dos estados.

O Euclides da Cunha já dividiu magistralmente o norte e o sul. É incontestável. Daquí para alguns anos teremos duas literaturas distintas: a dos trovadores do norte, a dos troveiros ao sul. O norte não é belicoso. Um profundo lirismo vive na sua alma, e tanto as alegrias com as dores são sempre postas em canto. Daquele pedaço de terra o sol nunca de todo se arreda, porque, a luz foge, fica o calor acalentando o solo, as árvores e os céus. Os homens vivem com os elementos, são dispersivos e crêem nas divindades. No sul, ao contrário, a terra fria faz a concentração, a luta, e os elementos estrangeiros vão se acentuando. O norte é virgem e bravio; ao sul, os homens de músculos brancos e cabelos de metal vão escorraçando a raça primitiva. O norte, para onde emigram os pretos, os caboclos e os descendentes deles, será o reservatório fatal da grande poesia natural do Brasil. Prevejo no futuro, o Rio como um grande celeiro e a divisão da literatura em duas literaturas distintas – a do sertão e a da campina...

    Eu interrompi sincero: Como é difícil ser cético ao lado do corifeu da esperança!... Havia na sala confortável o encanto das nobres emoções. Neto parou.

Falemos então do jornalismo, já que é preciso. O jornalismo foi sempre, no Brasil, político. Cansado o público, a mania politiqueira foi atenuada pelos processos industriais. O jornal deixou de ser a urna para ser...

- Para ser?

... uma oficina. Tem sido para a nossa literatura um grande bem relativamente. Como nunca teve audácia para educar, aceita um trabalho, não pelo gênio do autor, mas sempre de acordo com o agrado público. Às vezes é perverso. A decadência do teatro é devida exclusivamente ao jornal e aos próprios escritores dramáticos jornalistas. O público é um animal que se educa. A princípio ia aos teatros bons. Veio o anúncio, o balcão dominou, começaram os incentivos para o trololó. Hoje o público está acostumado e não quer outra coisa. Quanto a literatura que publicamos nos jornais, lembra os livros impressos no tempo do Santo Ofício. Não têm o visto da inquisição, mas têm o visto do redator-chefe.

- Uma última pergunta: é religioso?

Muito. Não sei se creio em Deus Cristo, se em Deus-natureza, mas creio no princípio imanente da divindade. E por isto, talvez seja neste país um dos raros homens que esperam...

Tornou-se a sentar-se, pôs-se a escrever. Pela janela aberta entrava o dia abafado e só o gato impassível, muito gordo, muito branco, muito peludo, olhava os céus com um perturbado olhar de sua verde pupila cor de topázio verde...
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