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Grandes entrevistas

FRANÇOISE SAGAN

Entrevista conduzida por Blair Fuller e Robert Silvers, publicada no livro Escritores em ação: as famosas entrevistas à “Paris Reviw”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

 

Françoise Sagan vive, agora, num pequeno e moderno apartamento próprio, no rés-do-chão, situado na Rue de Grenelle, onde se acha vivamente ocupada a escrever o script de um filme, algumas canções líricas e uma nova novela. Mas quando foi entrevistada, em princípios da primavera passada, pouco antes da publicação de Un certain sourire, morava do outro lado da cidade, no apartamento de seus pais, no Boulevard Malesherbes, numa vizinhança que é um baluarte da burguesia francesa abastada. Recebeu os entrevistadores na sala-de-estar confortàvelmente mobiliada, fez com que se sentassem em grandes poltronas, perto da lareira de mármore, e ofereceu-lhes uísque de uma garrafa de quartilho que era, indubitàvelmente, de certo modo, sua contribuição pessoal à despensa da casa. Suas maneiras são tímidas, mas tranqüilas e amáveis, e seu rosto de garoto se contrai fàcilmente num sorriso atraente, um tanto reservado. Usava um simples suéter preto e saia cer de cinza. Se ela é uma moça frívola, a única indicação disso eram seus sapatos de salto alto, elegantemente trabalhado em couro cinza. Fala com voz alta, mas tranqüila e, evidentemente, não lhe agrada ser entrevistada, ou que lhe peçam que formule o que constitui, para ela, sua maneira natural de encarar seus escritos. É sincera e prestativa, mas perguntas pomposas ou intricadas, ou acerca de sua vida pessoal, ou o que poderia ser interpretado como um desafio ao seu trabalho, tendem a produzir apenas um simples "oui" ou "non", ou "je ne sais pas... je ne sais pas du tout" e, a seguir, um sorriso divertido desconcertante.

 

- Como foi que começou a escrever Bon­jour tristesse, quando tinha apenas dezoito anos? Esperava que fosse publicado?

Pus-me simplesmente a escrever. Tinha vivo desejo de  escrever e algum tempo livre. Disse, comigo mesma: "Esta é a espécie de empresa a que poucas, pouquíssimas ga­rotas da minha idade se entregam; jamais serei capaz de terminá-la." Eu não estava pensando em "literatura" e problemas literários, mas a respeito de mim mesma, e se teria a força de vontade necessária.

-  A senhorita o abandonava e, depois, o tomava de novo?

Não, eu desejava ardentemente terminá-lo: jamais desejei tanto qualquer outra coisa. Enquanto eu o estava escrevendo, pensei que talvez houvesse oportunidade de ser ele publicado. Finalmente, quando estava terminado, pensei que a coisa era irrealizável. Eu estava surpresa com o livro e comigo mesma.

 

- A senhorita desejava escrever havia já muito tempo?

Sim. Eu lera uma porção de histórias. Parecia­me impossível não desejar escrever uma. Ao invés de partir para o Chile com um bando de gangsters, a gente fica em Paris e escreve um romance. Isso me parece constituir a grande aventura.

- Com que rapidez foi seu trabalho escrito? Já havia pensado na história anteriormente?

Quanto a Bon jour tristesse, tudo começou com a idéia de um personagem, a moça, mas nada aconteceu realmente enquanto não empunhei a pena. Eu tinha de começar a escrever para ter idéias. Escrevi Bon jour tristesse em dois ou três meses, trabalhando duas ou três horas por dia. Un certain sourire foi diferente. Fiz numerosas anotações e, depois, pensei no livro pelo espaço de dois anos. Quando comecei a escrever, novamente durante duas horas por dia, a coisa foi muito depressa. Quando a gente se decide a escrever de acordo com um determinado plano de trabalho e se atém a ele, escreve muito depressa. Pelo menos, isso ocorre comigo.

- Gasta muito tempo revendo o estilo?

Muito pouco.

- Então o trabalho nas duas novelas não tomou, ao todo, mais que cinco ou seis meses?

Sim (sorrindo), é uma boa maneira de se ganhar a vida.

- A senhorita diz que o importante, no começo, é ter um personagem?

Um personagem, ou uns poucos personagens, e talvez uma idéia para as cenas da metade do livro, mas isso tudo se modifica enquanto a gente escreve. Para mim, escrever é uma questão de encontrar certo ritmo. Comparo-o ao ritmo do jazz. A maior parte do tempo, a vida é uma espécie de progressão rítmica de três personagens. Se a gente diz a si próprio que a vida é assim, sente-se que a coisa é menos arbitrária.

- Para traçar seus personagens, a senhorita lança mão de pessoas conhecidas?

Tenho tentado isto com muito empenho, mas jamais encontrei qualquer semelhança entre as pessoas que conheço e os personagens de minhas novelas. Ao retratar as pessoas, não busco exatidão. Procuro dar a tipos imaginários uma espécie de veracidade. Eu morreria de tédio se fosse colocar em minhas novelas as pessoas que conheço. Parece-me que há duas espécies de impostura: as atitudes postiças que as pessoas adotam entre si e a máscara que certos escritores colocam na face da realidade.

- Então acha que constitui uma forma de embuste lançar mão diretamente da realidade?

Certamente. A arte deve colher a realidade de surpresa. Isso requer aqueles momentos que são para nós simplesmente um momento, mais um momento, mais outro momento e, arbitrariamente, os transforma numa série especial de momentos ligados entre si por uma grande emoção. A arte, parece-me, não deveria inculcar o "real" como sendo uma preocupação. Nada é mais irreal que certos romances chamados "realistas" - e que não passam de pesadelos. É possível conseguir-se num romance certa verdade sensorial - o verdadeiro sentimento de um personagem - eis tudo. A ilusão da arte, por certo, é fazer com que se acredite que a grande literatura é muito ligada à vida, mas exatamente o oposto é que é verdadeiro. A vida é amada; a literatura, formal.

- Há, na vida, certas atividades dotadas de formas altamente desenvolvidas, como, por exemplo corridas de cavalo. Acaso os jóqueis são menos reais devido a isso?

Pessoas possuídas por fortes paixões por suas atividades, como os jóqueis parecem ser, não me dão a impressão de serem muito reais. Parecem, não raro, personagens de romances, mas sem romances, como The flying dutchman

 

- Seus personagens permanecem em sua mente, depois de terminado o livro? Que espécie de juízo faz a respeito deles?

Quando o livro está terminado, perco imediatamente interesse pelos personagens. E jamais faço juízos morais. S6 o que eu diria é que uma pessoa era engraçada, ou alegre, ou, sobretudo, uma chata. Formar juízos a favor ou contra meus personagens, enfastia-me grandemente, não me interessa de modo algum. A única moralidade para um romancista é moralidade de sua estética. Eu escrevo os livros, eles chegam a um final - e isso é tudo o que me interessa.

- Quando terminou Bon jour tristesse, acaso ele passou por muitas revisões por parte de algum preparador de originais?

Diversas sugestões de ordem geral foram feitas quanto ao meu primeiro livro. Houve, por exemplo, muitas versões da parte final e, numa delas, Anne não morria. Finalmente, ficou resolvido que o livro seria mais vigoroso na versão em que ela morria.

- Acaso aprendeu algo com as críticas publicadas a respeito do livro?

Quando os artigos eram agradáveis, eu os lia do começo ao fim. Jamais aprendi coisa alguma com eles, mas ficava perplexa diante de sua imaginação e fecundidade. Viam, no livro, intenções que jamais tive.

- Como se sente agora acerca de Bon jour tristesse?

Gosto mais de Un certain sourire, porque foi mais difícil. Mas acho Bon jour tristesse divertido, pois recorda certa fase de minha vida. E eu não mudaria uma única palavra. O que está feito, está feito.  

- Por que diz que Un certain sourire é um livro mais difícil?

Porque eu não tinha os mesmos trunfos ao escrever o segundo livro: nada de ambiente de verão à beira-mar, nenhuma trama que chegasse ingenuamente a um clímax, nada do cinismo alegre de Cécile. E, além disso, foi difícil simplesmente porque era o segundo livro.

- Foi-lhe difícil passar da primeira pessoa de Bon jour tristesse para a narrativa na terceira pessoa em Un certain sourire?               .

Sim, é mais difícil e exige maior disciplina. Mas eu não encararia tal dificuldade como certos escritores, ao que parece, fazem.  

- Quais os escritores franceses que admira e acha que são importantes?

Oh, não sei. Stendhal e Proust, por certo. Amo o mistério de suas narrativas e, de certa maneira, sinto, positivamente, necessidade deles. Depois de Proust, por exemplo, há certas coisas que, simplesmente, não se pode tornar a fazer. Ele marca para a gente os limites do nosso talento. Mostra-nos as possibilidades que residem na maneira de se tratar um personagem.

 

- Que é que lhe chama particularmente a atenção quanto aos personagens de Proust?

Talvez as coisas que a gente não sabe a respeito deles, tanto como aquelas que a gente sabe. Para mim, isso é literatura no melhor sentido possível: depois de todas as lentas e longas análises, a gente está longe de saber todos os pensamentos, fatos e facetas de Swann, por exemplo - e assim é que deveria ser. Não se tem desejo algum de indagar: "Quem era Swann?" Saber-se quem era Proust é mais do que suficiente. Não sei se isso está claro: o que quero dizer é que Swann pertence inteiramente a Proust, sendo impossíve1 imaginar-se um Swann balzaquiano, ao passo que bem se po­deria imaginar um Marsay proustiano.

- É possível que as novelas sejam escritas porque os novelistas imaginam a si próprios no papel de um novelista a escrever uma novela?

Não. A gente assume o papel do herói e, depois, procura "o novelista" que possa escrever sua história.

 

- E a gente sempre encontra o mesmo novelista?

 

Essencialmente, sim. De maneira bastante ampla, acho que a gente escreve e reescreve o mesmo livro. Quan­to a mim, conduzo um personagem de livro para livro e continuo com as mesmas idéias. Somente o ângulo de visão, o método, a iluminação se modificam. Falando de modo muito, tosco, parece-me que há duas espécies de romances - e eis aí a única escolha. Há os que escrevem simplesmente uma história e sacrificam muitíssimo ao narrá-la - como ocorre com os livros de Benjamin Constant, ao qual Bon jour tristesse e Un certain sourire se assemelhavam na construção. Há, ainda, aqueles livros que tentam discutir e explorar os caracteres e os acontecimentos do livro - un roman où l'on discute. As ciladas em ambos são evidentes: na narrativa simples parece, não raro, que as questões importantes são passadas por alto. Nos romances clássicos, mais longos, as digressões podem prejudicar a eficiência.

- Gostaria de escrever "un roman ou l' on discute"?

Sim, gostaria de escrevê-lo. Na verdade, estou agora planejando um romance com grande número de personagens - haverá três heroínas - e com tipos mais difusos e elásticos que Dominique e Cécile e os outros que aparecem nos dois primeiros livros. O romance que eu gostaria de escrever seria um em que o herói estivesse livre das exigências do enredo, livre do próprio romance e da autora.

 

- Até que ponto reconhece suas limitações e controla suas ambições?

Bem, essa é uma indagação bastante desagradável, não é? Reconheço limitações no sentido em que li Tolstoi, Dostoievski e Shakespeare. Eis aí a melhor resposta, penso eu. À parte isso, não penso em limitar-me.

- A senhorita ganhou, rapidamente, muito dinheiro. Isso modificou sua vida? Faz, acaso, alguma distinção entre escrever novelas por dinheiro e escrever seriamente, como certos americanos e franceses?

O êxito dos meus livros, certamente, modificou um tanto minha vida, pois disponho de muito dinheiro para gastar, se quiser, mas, quanto ao que se refere à minha situação na vida, não mudou muito. Hoje, tenho um automóvel, mas sempre comi filés. Os senhores sabem: ter-se uma porção de dinheiro no bolso é bom, mas não é tudo. A perspectiva de ganhar mais ou menos dinheiro jamais afetaria minha maneira de escrever: eu escrevo os livros e se, depois, o dinheiro aparecer, tant mieux.

 

Mlle. Sagan interrompeu a entrevista para dizer que precisava sair, a fim de trabalhar num programa de rádio. Desculpou-se e levantou-se para partir. Era difícil de acreditar, logo que ela parou de falar, que aquela jovem frágil e atraente havia, com um único livro, conquistado mais leitores que a maioria dos romancistas durante toda uma existência. Ela dava antes a impressão de uma estudante saindo às pressas para a Sorbonne, gritando para a mãe, do vestíbulo do apartamento: "Au revoir, maman. Je sors travailler mais je rentre de bonne heure."

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