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Grandes entrevistas
                             Miguel Torga
Conduzida por Cremilda de Araújo Medina, publicada originalmente no Diário de Lisboa, de 25/11/1949 e republicada em seu livro: Viagem à literatura portuguesa contemporânea. Rio de Janeiro:Nórdica, 1983.

Apresentação:
      É difícil chegar a Miguel Torga. Ou ao dr. Aldolfo Rocha, que atende em um velho consultório, em Coimbra, com a especialidade anunciada na placa: médico de ouvidos, nariz e garganta. Há muitas versões sobre o temperamento do velho poeta, mas todos são unânimes de que não dá entrevista. Portanto, ninguém estimulou a tentativa de acesso ao autor de Bichos. Nada como ser persistente no delicado itinerário da busca dos artistas. Após alguns contatos telefônicos, eis que, a um mês de trabalho, Torga decide ceder e marcar a entrevista em Coimbra.
   No primeiro momento, as explicações. Por que tão arredio a entrevistas? Torga justifica: os jornalistas estão sempre atrás do incidental, dos fatos mais aparentes, superficiais, dos aspectos sensacionalistas do homem, não do escritor. Não que não compreenda que essa é a perspectiva do jornalista, mas o que o irrita é o desconhecimento da obra do artista. Não Lêem seus livros e querem, por simples curiosidade, ver como é o homem, como se comporta. Afinal, Miguel Torga tem plena consciência de que o que tem a dizer está dito em seus poemas, contos ou ensaios.
     Isolamento, alienação do momento português presente? Só quem não conhece seus textos pode caluniá-lo de egocêntrico. Sempre foi um homem que interferiu no momento certo e nunca se escondeu durante o período da ditadura. Pelo contrário, faz questão de insistir com ênfase, se expôs muito. (Torga em seu consultório, abre um grande armário de livros – as edições de mais de 50 anos de produção literária – e vai com a mão certa à obra que procura). Nada como provar com texto inquirindo sobre a posição do artista no sistema:
    - O espírito criador é, por natureza, heterodoxo e dinâmico. E é justamente por isso que ele é um tambor de destaque em todas as tiranias. Vendo com desespero que não conseguem fazê-lo vegetar no caldo de cultura morno e temperado onde geram as mediocridades, perseguem-no sem dó nem piedade. Mas ele é ágil e sutil: escapa-se por entre os dedos da mão que o estrangula, e pelo vão das grades que o prendem.
     Perguntaram-lhe ainda nesse distante 1949, numa campanha eleitoral em que fazia parte das oposições: e pensa que será desta vez que entre nós o artista se libertará?
    - Pelo menos vai em bom caminho. Quando do outro simulacro de eleições, disse-lhe que vinte anos de ditadura não tinha abalado o espírito de liberdade do nosso povo e que, se fosse necessário, recomeçaríamos o calvário. Assim aconteceu, como se vê. A oposição continua viva e inabalável, mais aguerrida ainda, porque nestes três anos só houve motivos para cada um redobrar as suas convicções. Longe de compreender e de tolerar, o governo só violentou e tripudiou. Pisou mais o povo, ofendeu e desrespeitou a inteligência, esvaziou de conteúdo as legendas da sua propaganda. Por isso, as fileiras dos seus adversários viram-se ainda mais engrossada.
      Foi então cobrado: como escritor, votaria contra a situação?
     - Contra a atual situação, como escritor que quer ser livre; e pelo candidato da oposição, como cidadão que quer ter direitos e obrigações. E creia que sem nenhuma ilusão quanto ao Eldorado do futuro. Os escritores portugueses não ignoram que a herança é má e que será preciso muito esforço e muita abnegação para arrumar a casa. Mas, visionários que são, acreditam na melhoria constante do homem e sabem que para esse aperfeiçoamento se dê, é necessário que haja experiências, mudanças, tentativas, recomeços.
       Torga termina de ler este texto de 1949, publicado no Diário de Lisboa a interrogação: Eu isolado do mundo à minha volta? Sempre fui muito participante. Miguel Torga atesta, com outros textos reunidos em Fogo preso, que nunca se valeu de uma linguagem indireta, alegórica, para interpelar o poder. Qual a atitude do artista diante da sociedade? Disse-o também de público nos anos 40: “A atitude de todo artista verdadeiro não pode ser neste momento senão de inteira e franca comunhão com a grande massa dos país. Os artistas não constituem uma classe. São livres e mágicos servidores de quem tem a verdade e a história pelo seu lado. Ora, a verdade e a história estão, como sempre estiveram, do lado do povo.”
       Torga confidencia: disse coisas terríveis a Salazar. Como, por exemplo, de que a luta seria ganha por aquele que vivesse mais. O poeta era mais jovem e reconhece a malícia do argumento. No fundo, porém, o que ele se julga é, acima de tudo, um resistente. Trás consigo a saga de um resistente, velho transmontano que fez das pedras do caminho a própria fortaleza. Hoje, aos 75 anos, vê Portugal como uma grande confusão. Claro, a liberdade é uma conquista irrefutável. Todo o resto é simples questão de tempo para construir. Oito anos de revolução são muito pouco. Nós, segundo Torga, vivemos um tempo curto, apressado. A história vai mais devagar.
      E o Brasil? Miguel Torga começa por amolecer. Sua expressão se abranda. Não está mais em posição de defesa, quer saber de notícias da terra em que viveu um período precioso de sua juventude. (Um tio, que tinha uma fazenda em Minas Gerais, o recebeu para trabalhar no campo. Foram tempos duros, de sol a sol, mas guardou fortes lembranças dos poucos anos que viveu aqui. Voltou a São Paulo em um congresso, na década de 50, e da ligação com o Brasil saiu um livro, Traço de união.) Torga quer saber como vai a situação da liberdade de expressão no Brasil. Ouvia-se falar, em Portugal, naquele momento, da produção do filme Pra frente Brasil, de Roberto Farias. O poeta pondera: “As ditaduras concedem liberdade de forma muita lenta. São terríveis na destruição das lideranças política e na destruição do sistema educacional.” Lembra ele que a escola primária, no fim do século XIX, era, em Portugal, uma instituição muito sólida e muito avançada. Tudo isso se perdeu com a ditadura.
     Ainda falando do Brasil, Torga não esquece duas pessoas que lhe são muito caras afetivamente. Guilhermino César (atualmente professor de literatura brasileira na Universidade Federal do Rio Grande do Sul), que deu curso em Coimbra e também é um importante poeta (mineiro), tornou-se grande amigo de Torga. De Érico Veríssimo, que também conheceu de perto, guarda boas lembranças. (A esta altura, o porte ascético do poeta transmontano mostra sinais evidentes de ternura, imagem contraditória à que corre em Portugal).
       Causa espanto um escritor que começou a publicar em 1928, que tem uma obra considerável em poesia, ficção, ensaio e teatro, nunca ter suas obras publicadas por uma grande editora. Os portugueses respondem ao mistério com um traço do caráter de Torga: ele próprio edita seus livros, cuida da distribuição e controla tudo. Há até os que apontam certa mesquinhez em dois comportamentos típicos: nunca oferece livros, nem sequer autógrafos. Mas o poeta desmentiu, no contato direto, essa acusação – deu de presente três livros. Quanto ao problema da editora, já que não faltaram nem faltam atualmente inúmeras ofertas, Miguel Torga diz que não haveria editor no mundo que o aturasse. Faz emendas permanentemente em provas e em livros publicados. Então, vale a pena ter uma gráfica, em Coimbra, acostumada com ele e contendo apenas letreiros de titulo, autor e cidade onde edita. São também famosas as histórias do tempo da censura. Se uma parte da edição era apreendida, havia a outra, em posse do escritor, escondida em algum lugar, que logo circularia.
      O que mais preza nesse caos político que o rodeia? A grande liberdade interior. Sente-se um homem coerente consigo mesmo. Em 1977, quando foi a Bruxelas receber o Grande Prêmio Internacional de Poesia, deu uma entrevista (fato inédito para Portugal) a um jornalista belga. Nesse momento, enfatizou sua dupla vida de médico e escritor: “Exerço a medicina desde 1933 e tenho consultório em Coimbra. Nasci numa das províncias mais pobres de Portugal. Aos 13 anos, o meu pai, segundo uma tradição bastante arraigada no meu país, mandou-me, sozinho, para o Brasil. Naquele país vivia um tio meu que dirigia uma fazenda, mas ignorava se ele era vivo ou não vivo. Fui e encontrei-o. Trabalhei, durante cinco anos, nessa exploração agrícola e, depois, regressei a Portugal. Fiz o meu liceu em três anos e, a seguir, os estudos médicos. Procurei sempre ser um homem completo. O interesse que sempre tenho concedido aos meus concidadãos, quer como concidadãos, quer como doentes, fez com que me sentisse sempre mais próximo dos homens”.
      A propósito, houve uma rápida interrupção no encontro de Coimbra. O dr. Adolfo Rocha conversou com uma humilde paciente que veio consultá-lo a respeito da receita que tinha na mão. Com o máximo de delicadeza e até mesmo carinho fez questão, a dúvida foi esclarecida. Retomando o assunto, Torga faz questão de dar seu justo perfil, o de um homem de coragem (que se arriscou o máximo no tempo de Salazar e chegou a ser preso), e, acima de tudo, de um resistente. No fundo, ele está plenamente integrado com as personagens a quem deu vida na poesia ou na ficção: “Homens inteiros, saibrosos, altos, espadaúdos, que olham de frente e têm no rosto as mesmas rugas da terra. Cobrem-se com varinos, mantas e mais roupas de serrobeco ou de colmo. Aos vinte anos, quando não aos dez, depois da vida militar, alguns emigraram para o Brasil. Os que ficam, cavam a vida inteira. E quando morrem, deitam-se no caixão com a serenidade de quem chega honradamente ao fim de um longo e trabalhoso dia”. (Um reino maravilhoso, conferência de Torga, em 1943). A opção monástica em Coimbra, é, segundo o escritor, a tentativa de “ser todos”. Assim se define e assim dá conta de quem é. Quanto aos outros escritores em Portugal, recusa-se a falar. Não sabe, não quer saber. Só sabe de si próprio. Neste sentido, numa despedida bem mais afetiva que aos primeiros instantes de contato, denota curiosidade sobre a sintonia ou não das versões sobre ele e aquela que no final predominou. Sente-se contente, realizado ao desmanchar a imagem de inacessível: recebeu-me para a entrevista, esclarece, porque encontrou outra pessoa resistente... Manifesta, então, certa preocupação: que não leve para o Brasil uma má impressão de Coimbra. Afinal, uma viagem especial para encontrá-lo. O alto e ascético poeta se despede com um abraço e sai do consultório rapidamente para um tratamento de fisioterapia marcado aquela hora. Mas volta da escada. Quis achar mais um livro – o que fala do Brasil – para dar de presente. Traço de união (1955), começa assim: “Portugal devia fazer com o Brasil o que certos autores exigentes fazem com os livros que escrevem: refundir sempre que possível a versão original”.                                                                      
Entrevista:                                                                                                     
A sua opinião sobre o atual momento político português?                        
É a de todos os escritores que não estão emprenhados na conservação de sombras prepotentes.
– Sombras?
Pois. O que é tudo isto senão um pesadelo que é preciso sacudir? A realidade que lhe deu corpo já morreu há muito na Itália e na Alemanha, condenada pelo consenso universal. E os epígonos são sempre cinzas, por mais vida que aparentem. O fascismo português, do fim da guerra para cá, lembra-me sempre um ultra-romantismo político: já todos a quererem naturalismo e verdade, e ele ainda no “Vai alta a lua na mansão da Morte”...
– Os artistas continuam então rebeldes e progressivos?
É a função deles. O bom de Camões, que é sempre um exemplo em tudo, deixou o Velho do Restelo a gemer na praia e seguiu viagem ocmo os descobridores. O espírito criador é, por sua natureza, heterodoxo e dinâmico. E é justamente por isso que ele é um tambor de festa em todas as tiranias. Vendo com desespero que não conseguem fazê-lo vegetar no caldo de cultura morno e temperado onde geram as mediocridade, perseguem-no sem dó nem piedade. Mas ele é ágil e sutil: escapase por entre os dedos da mão que o estrangula e pelo vão das grades que o prendem.
– E pensa que será desta vez que entre nós ele se libertará?
Pelo menos vai em bom caminho. Quando do outro simulacro de eleições, disse-lhe que 20 anos de ditadura não tinha abalado o espírito de liberdade do nosso povo, e que se fosse necessário recomeçaríamos o calvário. Assim aconteceu, como se vê. A oposição continua viva e inabalável, mais aguerrida ainda, porque nestes três anos só houve motivos para cada um redobrar assuas convicções. Longe de compreender e de tolerar, o Governo só violentou e tripudiou. Pisou mais o povo, ofendeu e desrespeitou a inteligência, esvaziou de conteúdo as legendas da sua propaganda. Por isso, as fileiras dos seus adversários viram-se ainda mais engrossadas. De maneira que por este caminho...
– Portanto, inteiramente confiante na vitória?
Sim. Para já, com eleições livres; para o futuro, com a evidência de que não há dique que resista aos rios todos de Portugal.
– Fé?
Certeza. O tempo só trabalha a favor do futuro. E o futuro somos nós. O mal é não se ver na oposição a parte consciente e permanente da Nação. Julgam-nos um bando de lunáticos e de traidores, quando na verdade representamos a única coisa que presta num país: o anseio, a inquietação, a vontade constante de caminhar.
– É então por uma solução inteiramente nova do caso português?
Sou pelo movimento, pela variedade, pelo jogo de contrastes, por tudo o que não seja monotonia.
E acredita que será possível em Portugal uma renovação assim?
É preciso ter confiança no homem, e, no caso particular, no homem português. Não andar todos os dias a humilhá-lo com restrições cívicas. É urgente salvá-lo e nome duma certeza fraternal nas suas virtualidades de cidadão. Descrer dum português acessível à razão, à lógica, à demonstração, parece-me uma falta de amor e de patriotismo.
E a desordem? E o perigo de certos caminhos?
Em primeiro lugar, começa a ser uma crueldade andar todos os dias a chamar-nos desordeiros, a nós que temos tido a paciência de marcar passo metidos na ordem há tanto tempo. A esse respeito, eu até ia por uma conclusão contrária: que há em nós uma vocação colegial que é necessário combater. Quanto ao perigo de certos caminhos... Eu sou por todas as experiências sociais que o homem queira fazer livremente. Não se deve pôr entraves de nenhuma espécie às tentativas que um povo consciente faça para melhorar o seu corpo e a sua alma. Não foi certamente sem remover o marasmo econômico e mental em que viviam que certos paises, pequenos ou grandes, conseguiram o bem social que gozam.
- Mas dizem que o nosso povo não tem essa consciência política...
Porque ninguém lha deu, nem quer dar. Com ludibrios constantes, a açaimes cada vez mais apertados, é que ele não a arranja. Por uma lado, pede-se-lhe que vote. Que é o seu dever, que é o seu direito. Por outro, ri-se-lhe na cara publicando resultados eleitorais que o fazem corar, ou pregando publicamente que o sufrágio é uma estupidez social.
- O problema vem de longe...
Pois vem. Mas com uma pequena diferença: no tempo da República havia pelo menos respeito pelo principio em si. E isto, parecendo que não, é meio caminho andado. Ninguém pode dignificar uma coisa em que não acredita. Os outros, com todos os seus defeitos, davam pelo menos mais esperança... lógica. E é justamente sobre uma base lógica que o país, enjoado de sofismas, pretende construir. Queremos uma democracia consciente, igualitária, onde cada indivíduo só não tenha liberdade de prejudicar o semelhante. Esse individuo terá sempre alguma coisa de pessoal e de sagrado a dizer na causa comum. Será essa qualidade insofismável da sua opinião a força da sua humanidade e as sua alegria de viver.
- Como escritor vota então contra tudo o que está?
Voto eu e vota toda a gente que quer ter dignidade na sua terra. Toda a gente que não possa, em consciência. Eleger um candidato que já se deixou nomear várias vezes.
- Em conclusão...
Contra a atual situação, como escritor que quer ser livre; e pelo candidato da oposição, como cidadão que quer ter os direitos e obrigações. E creia que sem nenhuma ilusão quanto ao Eldorado do futuro. Os escritores portugueses não ignoram que a herança é má, e que será preciso muito esforço e muita abnegação para arrumar a casa. Mas, visionários que são, acreditam na melhoria constante do homem, e sabem que, para que esse aperfeiçoamento se dê, é necessário que haja experiências, mudanças, tentativas e recomeços.

- Onde escrevo?

- Crítica literária

- Política

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