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Grandes entrevistas

Roland Barthes

 

Entrevista conduzida pelo filósofo Bernard-Henri Lévy, publicada em Le Nouvel Observateur, de 10/01/1977 e republicada no livro BARTHES, Roland. O grão da voz. Lisboa, 1982, de onde foi extraída. 

 

Pai do estruturalismo e da semiologia literárias, Roland Barthes acaba de entrar no Collège de France, após Michel Foucault e Pierre Boulez. Com O Grau Zero da Escrita e Mitologias, Roland Barthes afirmava-se desde os anos 50 como um dos pensadores mais originais da geração que sucedia à de Sartre e Camus. Comentador de Brecht e, sobretudo, dos clássicos - Michelet, Sade, Fourier, Balzac ou mesmo Pierre Louys -, Barthes descobriu novos métodos de explicação literária e filosófica que fizeram escola. Durante muito tempo professor nos Hautes Études, com alma de pedagogo mas naturalmente reservado, aceitou confiar-se a Bernard-Henri Lévy no momento em que ia pronunciar a lição inaugural da cadeira de semiologia literária que lhe foi atribuída.

 

- Vemo-lo pouco, Roland Barthes, e ouvimo-lo raramente: à parte os seus livros, não se sabe quase nada de si ...

 

Se considerarmos que isso é verdade, é porque não gosto de entrevistas. Elas fazem-me sentir entalado entre dois perigos: ou enuncio posições de uma forma impessoal e dou a idéia de me tomar por um “pensador”; ou então digo constantemente “eu” e faço-me acusar de egotismo.

- No entanto você fala de si em Roland Barthes por Ele Próprio. Mas, prolixo sobre a infância e adolescência, permanece estranhamente silencioso sobre o que se segue, o Barthes da maturidade, o que chegou à escrita e à notoriedade ...

 

É que, tal como toda a gente, creio eu, recordo-me muito bem da minha infância e da minha juventude, sei datá-la e conheço-lhe os pontos de referência. E em seguida, pelo contrário, passa-se esta coisa curiosa: não me lembro de mais nada, não consigo datar, datar-me. Como se só tivesse memória da origem, como se a adolescência constituísse o tempo exemplar, único, da memória. Sim, é isso: passada a adolescência, vejo a minha vida como um imenso presente, impossível de dividir, de pôr em perspectiva.

 

- O que quer dizer que, à letra, você não tem “biografia”...

 

Não tenho biografia. Ou, mais exatamente, a partir da primeira linha que escrevi, deixo de me ver, deixo de ser uma imagem para mim mesmo. Não consigo imaginar-me, fixar-me em imagens.

 

Dai a ausência, no seu Roland Barthes por Ele Próprio de fotografias suas em adulto?

 

Não só não as há aí, como eu não possuo quase nenhuma. O livro de que fala está aliás dividido por uma linha inflexível. Não conto nada da minha juventude; essa juventude, coloquei-a em fotografias, pois é exatamente a idade, o tempo da memória, das imagens. E em seguida, pelo contrário, não digo mais nada em imagens, porque não as tenho, e tudo passa pela escrita.

 

- Esse corte, é também o da doença. Eles são em todo o caso contemporâneos...

 

Não se deve falar de “doença” a meu respeito, deve-se dizer “tuberculose”. Porque na época, antes da quimicoterapia, a tuberculose era um verdadeiro tipo de vida, um modo de existência, eu quase diria uma escolha. Podia-se mesmo, no extremo, imaginar uma conversão a essa vida, um pouco como Hans Castorp, sabe, em A Montanha Mágica, de Thomas Mann ... Um tuberculoso podia muito seriamente encarar, e eu próprio o fiz, a idéia de toda uma vida no sanatório ou numa profissão parasanatorial...

 

- Uma vida fora do tempo? Subtraída aos aca­sos do tempo?

 

Digamos, pelo menos, um tipo de vida que não deixa de ter relação com a idéia monástica. O sabor de uma vida regrada, com estritas limitações de horários, como num mosteiro. Fenômeno perturbador que me perse­gue ainda hoje em dia, e ao qual conto voltar este ano no meu curso no College.

 

- Fala-se sempre da doença como de qualquer coisa que mutila, entrava ou amputa. Raramente do que ela traz, positivamente, até à prática da escrita...

 

- Efetivamente. No que me diz respeito, não me custaram muito a suportar esses cinco ou seis anos fora do mundo: tinha sem dúvida tendências caracteriais para “a interioridade”, para o exercício solitário da leitura. O que é que eles me deram? Uma forma de cultura, seguramente. A experiência de um “viver em conjunto” que se caracterizava por uma excitação intensa das amizades, a garantia de ter os amigos ao pé de si, sempre, de nunca estar separado deles. E também, bastante mais tarde, a sensação estranha de ser perpetuamente cinco ou seis anos mais novo do que sou na realidade.

 

Você escrevia?

 

Pelo menos lia imenso, foi aliás durante a minha segunda estadia no sanatório que li Michelet integralmente, por exemplo. Em contrapartida, escrevia pouco. Muito simplesmente dois artigos, um sobre o Diário de Gide e o outro sobre O Estrangeiro, de Camus, que foi o germe de O Grau Zero da Escrita.

 

- Conheceu Gide?

 

Não, não o conheci. Vi-o uma vez de longe, na cervearia “Lutétia”: comia uma pera e lia um livro. Não o conheci portanto; mas, como para muitos adolescentes da época, havia mil coisas que faziam com que eu me interessasse por ele.

 

- Por exemplo?

 

Era protestante. Tocava piano. Falava do desejo. Escrevia.

 

- Que significa, para si, ser protestante?

 

É difícil de responder. Porque quando já não se tem fé, só fica a marca, a imagem. E a imagem, são os outros que a têm. Eles é que poderão dizer se tenho o “ar” protestante.

 

- Quero dizer: o que é que você tirou disso, uma vez mais, para a sua aprendizagem?

 

Em rigor poderia dizer, com a maior prudência, que uma adolescência protestante pode dar um certo gosto ou uma certa perversão da interioridade, da linguagem interior, aquela que o sujeito mantém constantemente consigo mesmo. E depois, ser protestante, é, não o esqueça, não ter a menor idéia do que é um padre ou uma fórmula... Mas deve-se deixar isso aos sociólogos das mentalidades, se o protestantismo francês ainda os interessa.

 

- Dizem-no sobretudo “hedonista”. É um mal entendido?

 

O hedonismo é “mal”. Mal visto. Mal compreendido. É incrível o que tal palavra pode ter de pejorativo! Ninguém, ninguém no mundo, ousa assumi-la. É uma palavra “Obscena”.

 

Mas você, assume-a?

 

Talvez fosse preferível encontrar uma palavra nova. Porque, se o hedonismo é uma filosofia, os textos que a fundam são excepcionalmente frágeis. Não há textos. Quase não há uma tradição. Deste modo é muito difícil colocarmo-nos aí, onde os textos são tão inconsistentes,e a tradição tão escassa.          .

 

- Há contudo o epicurismo.

 

Sim, mas desde há muito censurado...

 

- Você tem uma “moral”...

 

Digamos, uma moral da relação afetiva. Mas não posso dizer nada dela, de tanto que teria para dizer. Como diz O provérbio chinês: “o lugar mais sombrio é sempre que está debaixo da lâmpada”.

 

- Uma coisa de que nunca fala: a sexualidade...

 

Falo, de preferência, de sensualidade.

 

- Para dizer a verdade, você fala, por vezes, de sexualidade, mas para lhe minimizar a importância. Vejamos esta frase, por exemplo, tirada de um dos seus livros: “O problema formador para mim foi menos o sexo que o dinheiro”...

 

Queria dizer com isso que nunca sofri verdadeiramente o interdito sexual, ainda que ele pesasse, há quarenta anos, muito mais do que atualmente. Confesso francamente que chego a espantar-me com a indignação de alguns contra a dominação da normalidade. Não nego essa dominação, é claro, mas há interstícios.

 

- Por que milagre é que lhe escapou?

 

Não lhe escapei. Simplesmente, em mim existiu sempre primado do estado amoroso. E, consequentemente, à noção do “interdito”, daquilo que é interdito, substituiu-se sempre a do “recusado”, daquilo que é recusado. O que me fazia sofrer não era ser interdito mas ser recusado, o que é completamente diferente.

 

- Continuemos na “sensualidade”. Você fala de literatura, de música ou de ópera, de uma comida, de uma viagem ou de uma língua, com uma felicidade igual como se fossem prazeres iguais...

 

Nem sempre. A música e a ópera, por exemplo, são ainda assim muito diferentes. Gosto de ouvir música e ouço muita. Mas o verdadeiro investimento, para mim, é fazê-la: outrora cantar, hoje decifrar ao piano. A ópera, é outra coisa. É, digamos, uma festa, uma festa da voz; sou-lhe sensível mas não sou fanático.

 

- É também um “espectáculo”.

 

Sim, mas devo dizer que não é assim, sob esse ângulo, que pessoalmente, a consumo. Há sem dúvida dois tipos de apreciadores de ópera: gosta-se de ópera ou a partir da música, ou a partir da própria ópera, e eu faço parte dos primeiros. Há, para mim, dois momentos em que a saboreio e esses momentos são descontínuos: por um lado, a surpresa imediata da encenação que faz de mim uma espécie de voyeur; por outro lado, o prazer interiorizado da música e da voz: é aí, apenas nesse segundo tempo, que posso fechar os olhos e fruir o prazer musical.

 

- No fundo, você parece dizer simultaneamente que a ópera não é a música e que é da música que, no entanto, você gosta na ópera?

 

Sim, e é mesmo por essa razão que creio não ser um amante de ópera... Este Verão, por exemplo, fui a Bayreuth pela primeira vez e passei lá oito dias. Era apaixonante mas, durante esses oito dias, aborreci-me de música! porque não havia mais nenhum concerto para além da ópera.

 

- Gosta de viagens, independentemente deste ou daquele atrativo particular?

 

Antigamente muito, presentemente um pouco menos. Há uma época em que, quando tinha quatro dias e algum dinheiro, partia. Para países de eleição que varia­vam ao sabor dos anos. Gostei da Holanda, depois da Itália, em seguida de Marrocos. Recentemente, do Japão ...

 

-  Imagino que também ao sabor do que lá encontrava ...

 

Sem dúvida. Mas nunca tive uma paixão pelos monumentos, vestígios e testemunhos culturais, exceto pela pintura, na Holanda. Quando viajo, o que me interessa mais são os retalhos de arte de viver que posso captar à passagem. A sensação de mergulhar num mundo fácil e opaco (para o turista, tudo é fácil). Não o mergulho canalha mas a imersão voluptuosa numa língua, por exemplo, de que só percebo os sons. É uma coisa que repousa imenso, não compreender uma língua. Elimina toda a vulgaridade, toda a estupidez, toda a agressão.

 

- No fundo, concebe as viagens como uma forma de etnografia distraída e inspirada ...

 

É um pouco isso. Uma cidade como Tóquio, por exemplo, constitui por si só uma prodigiosa matéria etnográfica. Fui lá com a paixão de um etnólogo.

 

- Essa atitude, suponho, transforma-se nas relações humanas?


Responderei claramente: a viagem é também para mim uma aventura, uma série de aventuras possíveis, e de aventuras de uma grande intensidade. Está evidentemente ligada a uma espécie de alerta amoroso.

 

- Há uma viagem de que não fala, uma das mais recentes porém ...

 

Sim, eu sei, a China. Passei lá três semanas. De uma forma organizada como sempre, e segundo o esquema clássico. Embora tenhamos tido atenções um pouco especiais.

 

- E, no regresso, não escreveu quase nada. Porquê?

 

Escrevi pouco, mas olhei e escutei tudo com a maior atenção e a maior intensidade. Dito isto, ipara escrever, é preciso outra coisa, é preciso um sabor qualquer que se junta ao ouvido e ao olhar, e que eu não encontrei.

 

- Na China, no entanto, não faltam “signos”!

 

É verdade, evidentemente. Mas o seu gracejo não é inútil: dá. bem a entender que os signos só me interessam se me seduzem ou me irritam. Nunca me interessam em si, é preciso que eu tenha o desejo de os ler. Não sou um hermeneuta.

 

- E, desse modo, podia trazer de Pequim apenas um artigo sobre o “neutro”...

 

De fato, não encontrei lá nenhuma possibilidade de investimento de ordem amorosa. Por razões contingentes, admito. E talvez estruturais: penso nomeadamente no moralismo do regime.

 

- Fala de “retalhos de arte de viver” a arte de viver, é também a maneira de se alimentar, a alimentação como fato cultural.

 

Enquanto fato cultural, a alimentação significa pelo menos três coisas para mim. Primeiramente, o prestígio ou o gosto do modelo maternal, a comida da mãe tal como ela a faz e a concebe: isso, é a comida de que eu gosto. Em segundo lugar, a partir disso, aprecio as incursões, as digressões pelo novo, pelo insólito: nunca resisto à atração de um prato que me apresentam como novo. E por fim, em terceiro lugar, há um aspecto ao qual sou particularmente sensível, é a convivência, ligada ato de comer em conjunto, mas com ia condição de que essa convivência seja muito reduzida: desde que ela se alarga em excesso, a refeição aborrece-me e já não gosto de comer ou então, ao contrário, como muito para me distrair.

- Não me respondeu completamente há pouco. Que pretende ao certo quando escreve que o dinheiro, mais que o sexo, foi o problema formador da sua existência?

 

Isto, simplesmente, que tive uma infância e uma adolescência pobres. Que nos acontecia frequentemente não ter o que comer. Que era preciso, por exemplo, ir, durante três dias, comprar um pouco de pasta de fígado ou algumas batatas a uma mercearia da rua de Seine. A vida era verdadeiramente ritmada pelas datas de pagamento, em que era preciso pagar a renda. E eu tinha o espetáculo quotidiano do trabalho duro da minha mãe, que fazia encadernação, não estando nada talhada para isso. A pobreza, na época, tinha um con­torno existencial que talvez não tenha já, em França, no mesmo grau...

 

- Tanto mais que pertencia a uma família burguesa, pelo menos no que diz respeito às origens.

 

Uma família burguesa mas empobrecida e completamente sem dinheiro. Daí um efeito simbólico redobrando a pobreza real. A consciência de uma descida material de classe, mesmo que o meio familiar tenha sabido preservar uma arte de viver. Recordo-me, por exemplo, de que havia sempre pequenos dramas no recomeço das aulas. Não tinha os fatos que eram necessários. Não tinha dinheiro na altura dos peditórios coletivos. Não tinha com que pagar os livros da escola. São pequenos fenõmenos, está a ver, que marcam duravelmente, que nos tornam mais tarde gastadores.

 

- É aí  que remonta a sua aversão a respeito da “pequena burguesia”, como diz frequentemente nos seus livros?

 

É verdade utilizei muito essa palavra; agora faço-o menos; é que acontece fatigarmo-mos da nossa própria linguagem. Em todo o caso é inegável: há na pequena burguesia uma espécie de elemento ético e/ou estético que me fascina e me desagrada. Mas será isto original? Está já em Flaubert. Quem é que ousa assumir ser um pequeno burguês? Histórica e politicamente, a pequena burguesia é a chave do século. É a classe que ascende; em todo o caso, é ela a classe que se vê. A burguesia e o proletariado tornaram-se abstrações: ela em contrapartida, está por todo o lado, vê-se por todo o lado, mesmo nos burgueses e nos proletários, quando ainda os há.

 

- Já não acredita no proletariado, na sua missão histórica e em tudo o que daí decorre politicamente?

 

Digo que houve uma época em que o proletariado se via mas que essa época findou. Em França, era o tempo em que ele era trabalhado pelo anarco-sindicalismo e a tradição proudhoniana; mas, hoje em dia, o marxismo e o sindicalismo regular substituíram essa tradição.

 

- Alguma vez foi marxista?

 

“Ser marxista”: o que é que quer dizer o verbo “ser” nessa expressão? Disse um dia: “cheguei” ao marxismo bastante tardiamente, e graças a um amigo querido, entretanto morto, que era trotskista. De modo que cheguei ao marxismo sem nunca ter militado, e através de um filão dissidente que não tinha nada a ver com o que já então se chamava estalinismo. Digamos que li Marx, Lenine, Trotski. Não tudo, claro, mas li. E, desde há um certo tempo, não reli, salvo, aqui e ali um texto de Marx.

 

- Lê um texto de Marx como um texto de Michelet de Sade ou de Flaubert? Como puro sistema de signos, gerador de pura fruição?

 

Marx poderia ser lido dessa maneira mas não Lenine nem mesmo Trotski. Contudo, não creio que se possa ter com Marx apenas a relação que se tem com um escritor. Não se pode abstrair-se dos efeitos políticos, das inscrições ulteriores pelas quais a texto existe  concretamente.

 

- É de certa maneira a funcionamento de pessoas como Lardreau, Jambet au Glucksmann ...

 

Canheço Glucksmann, trabalhamos junto e gosto do que ele faz. Quanta a L'ange, não o li mas falaram-me dele. Compreende: passo o tempo a sentir-me próximo dessas posições e a afastar-me delas para uma distância incalculável. Par razões de estilo suponho, não de estilo de escrita mas de estilo geral...

 

- Quero dizer que, contrariamente a tantos outros, você não. tem atrás de si “itinerário político”...

 

É verdade que, no meu discurso escrito, não há discurso político no sentido temático da palavra: não trato de temas diretamente políticos, de “posições” políticas. E isso. porque não consigo ser excitado pela política e na época atual um discurso que não é excitado não se ouve, pura e simplesmente. Há um grau decibélico a atingir, um limar a ultrapassar para que ele seja ouvido. E esse limiar, eu não o alcanço.

 

- Você parece lamentá-lo.

 

A política, não é forçosamente falar, pode também ser escutar. Falta-nos talvez uma prática da escuta política.

 

- No fundo, se fosse precisa defini-lo, a etiqueta de “intelectual de esquerda” calaria, por uma vez, bastante bem.

 

Caberia à esquerda dizer se me considera entre as seus intelectuais. Por mim, aceito, na condição de entender a esquerda não como uma idéia mas como uma sensi­bilidade obstinada. Na meu caso: um fundo inalterável de anarquismo, no sentido mais etimológico da palavra.

 

- Uma recusa do poder?

 

Digamos que uma sensibilidade extrema relativamente à sua ubiquidade - está em todo o lado. - e à sua resistência - é perpétuo. Nunca se fatiga, prossegue, como um calendário. O poder, é plural. Sinta também que a minha guerra, não. é com o poder, mas com os poderes, onde quer que eles estejam. É talvez par isso. que sou mais “esquerdista” do que “de esquerda”; o que confunde as coisas é que, do esquerdismo, não tenho o “estilo”.


- Acha que um “estilo” ou uma recusa de “estilo” é suficiente para fundar uma política?

 

Ao nível do sujeito uma política funda-se existencialmente. Por exemplo, o poder, não é apenas o que opri­me, o que é opressor, é também o que é repressor:  sempre que sou reprimido é porque existe, algures, poder.

 

- E hoje, em 1977, não é reprimido?

 

Sou reprimido mas não chego a ficar indignado. Até aqui, a sensibilidade de esquerda determinava-se relativamente a cristalizadores que não eram programas mas grandes temas: o anticlericalismo antes de 1914, o pacifismo entre as duas guerras, a Resistência em seguida, depois ainda a guerra da Argélia... Hoje em dia, pela primeira vez, já não há nada disso: há Giscard, que é ainda assim um fraco cristalizador, ou um “Programa comum” que, mesma sendo bom, tenha difi­culdade em ver como é que poderia mobilizar uma sensibilidade. É o que é novo para mim na situação atual: já não vejo a pedra de toque.

 

- Daí o fato de ter aceitado o convite de Giscard para almoçar?

 

Isso é outra coisa. Fi-lo par curiosidade, por gosto de escutar, um pouco como um caçador de mitos numa emboscada. E um caçador de mitos, camo sabe, deve andar par toda o lado...

 

- Que esperava desse almoço?

 

Saber se havia em Giscard uma outra linguagem possível para além da de homem de Estado. Para isso, evidentemente, era precisa poder escutá-lo a titulo privado. Tive efetivamente a impressão de se tratar de alguém que sabia manter sobre a sua experiência um discurso segundo, um discurso reflexivo. O interes­sante, para mim, era captar uma “dissociação” de linguagens. Quanto ao conteúdo, tratava-se evidentemente de uma filosofia política articulada sobre uma cultura completamente diferente da de um intelectual de esquerda.

- O personagem seduziu-o?

 

Sim, na medida em que me pareceu ver funcionar um grande burguês bem sucedido.

 

- De que falaram?

 

Foi sobretudo ele que falou. Talvez tenha ficado decepcionado - ou pelo contrário contente - por ter de matizar a sua imagem: mas nós fizemo-lo falar muito mais do que falamos nós próprios.

 

À esquerda, esse almoço foi muitas vezes mal aceite ...

 

Eu sei. Há, mesmo na esquerda pessoas que substituem a análise difícil pela indignação fácil: era shocking, incorreto; isso não se faz, tocar no inimigo, comer com ele; é preciso continuar puro. Isso faz parte das “boas maneiras” da esquerda.

 

- Nunca sentiu a tentação de retomar as Mitologias de há vinte anos, alargando o trabalho à esquerda, às novas mitologias da esquerda?

 

- E evidente que em vinte anos a situação mudou. Houve o Maio 68, que libertou, abriu a linguagem da esquerda, embora correndo o risco de lhe dar uma certa arrogância. Sobretudo, num país em que 49% das pessoas votaram na esquerda, seria de admirar que não tivesse havido um deslizar, uma mudança da mitologia social: os mitos acompanham os números. Então, porque é que estou à espera para descrever essa mitologia? Não o farei nunca se a própria esquerda não apoiar o empreendimento: o Nouvel Observateur, por exemplo ...

 

- Vejamos uma mitologia entre outras: é evidente para si que Giscard seja “o inimigo”?

 

Aqueles que ele representa, os homens que estão por trás dele e que o empurraram para onde ele está, sim. Mas há uma dialética da história que faz com que um dia talvez ele seja menos nosso inimigo do que qualquer outro...

 

- No fundo se você tem uma política, é, um pouco como a moral provisória de Descartes, uma política constantemente provisória, minimal, minimalista ...

A noção de posição minimal interessa-me e parece-me muitas vezes a menos injusta. Para mim, o minimal em política, o que é absolutamente intratável, é o problema do fascismo. Pertenço a uma geração que soube o que ele era e que não o esqueceu. A esse respeito, meu comprometimento seria total e imediato

 

- Isso significa que aquém dessa barreira, fixada afinal bastante alto, as coisas são equivalentes e as escolhas políticas indiferentes?

Esta barreira não está tão alto como isso. Em primeiro lugar porque o fascismo inclui muitas coisas;  para assentar idéias, especifico que é fascista, para mim todo o regime que, não só impede de dizer, mas sobretudo obriga a dizer. Em seguida porque essa é a tentação constante do poder, é natural nele, é o que regressa mal acabou de ser expulso. A barreira depressa é ultrapassada...

 

- Um minimalista político pode ainda desejar, querer a revolução?

 

É curioso: a revolução é para toda a gente uma imagem agradável e é no entanto uma realidade certamente terrível. Repare que a revolução poderia continuar a ser uma imagem, e poder-se-ia desejar essa imagem, militar por essa imagem. Mas não é apenas uma Imagem há encarnações da revolução. E é isso, está a ver, que complica o problema... As sociedades onde a revolução triunfou, chamar-lhes-ia de boa vontade sociedades “decepcionantes”. Elas são o lugar de uma decepção maior que somos muitos a sofrer. Essas sociedades são decepcionantes porque o Estado não enfra­queceu... No meu caso seria demagógico falar de revolução, mas de boa vontade falaria de subversão. É, para mim, uma palavra mais clara do que a palavra revolução. Significa: vir por debaixo para sabotar as coisas, desviá-las, levá-las para um sítio diferente daquele em que as esperam.

 

- O “liberalismo” não é também uma posição minimal afinal bastante conveniente?

 

Há dois liberalismos. Um liberalismo que está quase sempre, subterraneamente, autoritário, paterna1ista, do lado da boa consciência. E depois um liberalismo mais ético que político; e por isso conviria encontrar-lhe um novo nome. Algo como uma suspensão profunda do julgamento. Um não-racismo integral aplicado a qualquer tipo de objeto ou de sujeito. Um não-racismo integral que iria, digamos, na direção do zen.

 

-É uma idéia de intelectual?

 

É seguramente uma idéia de intelectual.

 

- Houve um tempo em que os intelectuais se consideravam, se pensavam como o “sal da terra”...

 

Eu diria pela minha parte que eles são antes o resíduo da sociedade. O resíduo no sentido estrito, quer dizer o que não serve para nada a menos que seja recuperado. Há regimes que se esforçam justamente por recuperar esses resíduos que nós somos. Mas, no fundamental, um resíduo não serve para nada. Num cerro sentido, os intelectuais não servem  para nada.

 

- Que entende por “resíduo”?

 

O resíduo orgânico prova o trajeto da matéria que conduz a ele. O resíduo humano, por exemplo, prova o trajeto nutritivo. Pois bem, o intelectual, prova um trajeto histórico de que ele é de algum modo o resíduo. Ele cristaliza, sob a forma de resíduo, pulsões, desejos, complicações, bloqueamentos que pertencem provavel­mente a toda a sociedade. Os otimistas dizem que o intelectual é uma “testemunha”. Eu diria antes que ele é apenas um “traço”.

 

- Ele é portanto, a seu ver, totalmente inútil.

 

Inútil mas perigoso: qualquer regime forte o quer pôr na ordem. O seu perigo é de ordem simbólica; tratam-no como uma doença vigiada, um suplemento que incomoda mas que se preserva para fixar num espaço controlado as fantasias e as exuberâncias da linguagem.

 

-Quanto a si, de que trajeto é a resíduo?

 

Digamos simplesmente que sou sem dúvida o traço de um interesse histórico pela linguagem; e também o traço de múltiplos entusiasmos, modas, termos novos.

 

- Fala de moda: isso quer dizer novos ares? Isto é, lê os seus contemporâneos?

 

De fato, de uma maneira geral, leio pouco. Não é uma confidência: salta à vista nos meus textos. Tenho três maneiras de ler, três formas de leitura. A primeira consiste em olhar para um livro: recebo um livro, falam-me dele, então olho para ele; é um tipo de leitura muito importante e de que nunca se fala. Como Jules Romains que fazia elocubrações sobre a visão para­-óptica dos cegos, eu falaria de boa vontade, para este primeiro tipo de leitura, de uma informação para-acús­tica, uma informação fluída e pouco rigorosa mas que funciona mesmo assim. A minha segunda maneira de ler: quando tenho um trabalho para fazer, um curso, um artigo, um livro, então sim, leio livros, leio de uma ponta à outra, tirando notas, mas leio-os apenas em função do meu trabalho; eles aparecem no meu traba­lho. A terceira leitura, por fim, é a que faço à noite, quando regresso a casa. Então, leio geralmente clássicos...

 

- Não me respondeu...

 

Os meus “contemporâneos”? Arrumo-os quase todos na primeira categoria: «olho» para eles. Por quê? É difícil de dizer. Sem dúvida porque receio ser seduzido por uma matéria demasiado próxima, tão próxima que já não a poderia transformar. Tenho dificuldade em ver­me a transformar Foucault, Deleuze ou Sollers... Estão demasiado próximos. Surgem numa língua demasiado contemporânea.

 

- Há exceções?

 

Algumas. Um livro, aqui ou ali, que me impressionou muito e que surgiu no meu trabalho. Mas, por um lado, é sempre um pouco por acaso. E, por outro, quando leio verdadeiramente um livro contemporâneo, lei-o sempre muito tardiamente, nunca no próprio momento em que me falam dele. No momento em que se fala, há demasiado barulho e, por isso, não tenho vontade de ler. Li o Nietzsche de Deleuze, por exempla ou o seu Anti-Édipo, mas ambos muito depois da sua publicação.

 

- E depois há Lacan ao qual, de qualquer das maneiras, você se refere muitas vezes.

 

Muitas vezes, não sei. Sobretudo, de fato, na altura em que trabalhava no “discurso amoroso”. Porque precisava de uma “«psicologia” e só a psicanálise é capaz de fornecer uma. Foi então aí, nesse ponto preciso, que muitas vezes encontrei Lacan.

- O lacanismo ou o “texto” lacaniano?

 

Os dois. O texto lacaniano interessa-me enquanto tal. É um texto que mobiliza.

 

- Por causa dos jogos de palavras?

 

Justamente não. São aquilo a que sou menos sensível. Vejo bem a que correspondem, mas aí perco a escuta. Do resto, pelo contrário, frequentemente gosto muito. Lacan é, no fundo, para retomar a tipologia nietzscheana, uma aliança bastante rara do “padre” e do “artista’.

- Há uma relação entre o tema do imaginário, central na sua obra, e o imaginário lacaniano?

 

Sim, é a mesma coisa mas sem dúvida que deformo o tema porque o isolo. Tenho a impressão de que o imaginário é um bocado o parente pobre da psicanálise. Entalado entre o real e o simbólico dir-se-ia que é depreciado, pelo menos pela vulgata psicanalítica. O meu próxima livro apresenta-se, pelo contrário, como uma afirmação do imaginária.

 

- E você, lê-se a si próprio? Quer dizer: relê-se ?

 

Nunca. Tenho demasiado receio. Quer de achar bem e de me dizer que não voltarei a fazê-lo. Quer, ao contrário, de achar mal, e lamentar tê-lo feito.

 

- Em contrapartida, sabe quem o lê? Para quem escreve?

 

Creio que se sabe sempre a quem, para quem se fala. Há sempre, no caso da fala, uma soma de alocutores definida, mesmo que seja heterogênea. Enquanto que o que faz a absoluta singularidade da escrita, é que ela é verdadeiramente o grau zero da alocução. O lugar existe mas está vazio. Nunca se sabe quem vai ocupar esse lugar, para quem se está a escrever.

 

- Tem, por vezes, a impressão de escrever para a posteridade?

 

Francamente não. Não posso imaginar que a minha obra ou as minhas obras sejam lidas após a minha morte. A letra, não o imagino.

 

- Você diz “obra”. Tem consciência de escrever uma “obra”?

 

Não. Aliás corrigi espontaneamente “obra” no singular por “obras” no plural: não tenho consciência de uma obra. Escrevo por impulsos. Através de uma mistura de obsessões, de continuidades e de desvios táticos.

 

- Há “obras” que se tenham constituído de outra maneira?

 

Talvez não. Não sei.

 

- O que é certo, em todo a caso, é que, como Valéry, você escreve muitas vezes “por encomenda”.

 

Muitas vezes sim; mas, na verdade, cada vez menos. Quando é uma encomenda de escrita, funciona bastante bem quer se trate de prefaciar um livro, apresentar um pintor, escrever um artigo... Em suma, qualquer objeto funciona bem se o que me pedem é a minha escrita. Quando se trata, pelo contrário, de uma encomenda de dissertação, de tratar um assunto, por exemplo já não funciona. E, quando sou levado a aceitar, acabo por me sentir muito infeliz ...

 

- Daí o caráter terrivelmente fragmentado do que escreve...

 

É como um declive. Tendo cada vez mais para o fragmento. De resto aprecio-lhe o sabor e creio na sua importância teórica. Ao ponto, aliás, de me sentir mal a escrever textos com sequência.  

 

- Mesmo fragmentado e submetido à contingência das encomendas, o seu trabalho é apesar de tudo percorrido, unificado por alguns grandes temas.

 

Há temas. O imaginário, por exemplo. O indireto. A doxa. Também o tema da anti-histeria, embora este tenha recentemente evoluído. Mas tenho razão em dizer que são temas.

 

- Quer dizer que não são “conceitos”, no sentido dos filósofos?

 

Não. São conceitos. Mas conceitos-metáforas, que funcionam como metáforas. Se as palavras de Nietzsche são corretas, se os conceitos têm, como ele diz, uma origem metafórica, então é nessa origem que eu me coloco. E os meus conceitos não têm, nessa medida, todo o rigor que os filósofos habitualmente lhes dão.

 

- O que choca nos seus livros, é menos a ausência de rigor do que o caráter selvagem das importações conceituais.

 

Você diz “selvagem”. É correto. Observo uma espécie de lei pirata que reconhece mal a propriedade das origens. Não, de modo algum, por espírito de contestação. Mas por imediatez do desejo, por avidez de certa maneira. É por avidez que me apodero por vezes dos temas e das palavras dos outros. De resto, eu próprio nunca protesto quando me “tomam” qualquer coisa.

- De que modo que a sua unidade está menos nos temas que do lado de operações do tipo daquela de que fala? 

Exatamente. Movimentos e operações, de preferência a temas ou conceitos. Por exemplo, o “deslizar”. O deslizar das imagens. O deslizar do sentido das palavras. Ou ainda o recurso à etimologia. Ou ainda a deformação, a anamorfose dos conceitos. Toda uma série de recursos, de processos, cujo. nomenclatura eu talvez devesse ter tentado fazer em Roland Barthes por Roland Barthes.

 

- O que visam esses processos? E visam algum efeito, independentemente do seu puro exercício?

 

Procuro uma escrita que não paralise o outro. E que ao mesmo tempo não seja familiar. Ai reside toda a dificuldade: quereria chegar a uma escrita que não seja paralisante, sem que por isso se torne uma escrita “amigável”.

 

- Outrora, você dizia que procurava “grelha” para apreender, apropriar o real...

 

Não creio ter falado de uma “grelha”. Em todo o caso, se tenho uma grelha, esta só pode ser a literatura. Uma grelha que levo comigo um pouco por todo o lado. Mas creio que efeitos de levantamento do real, como diz um amigo meu, são possíveis sem “grelha”! Se digo isto, é porque este foi o problema da semiologia: inicialmente foi uma grelha e eu próprio tentei fazer dela uma grelha. Mas quando isso aconteceu ela deixou de suscitar o que quer que fosse. E fui obrigado a ir noutras direções, sem a renegar, bem entendido.

 

- As pessoas que não gostam de si falam, a propósito dos seus livros, de uma superstição, de uma sacralização da escrita...

 

A sacralização, não sou contra. Lacan disse recente­mente que os verdadeiros ateus são muito raros. Há sempre sagrado algures... Admitamos então que para mim tenha caído na escrita. Insisto: é muito difícil não sacralizar nada. Só conheço Sollers para o conseguir. E ainda assim não é certo. Ele tem talvez o seu segredo como Saint-Fond em Sade. Em todo o caso, no que me diz respeito, sacralizo seguramente. Sacralizo uma f'ruição, uma fruição de escrever.

 

- Dito isso, a linguagem é também a linguagem falada. A linguagem teatral por exemplo...

 

Tenho relações complicadas com o teatro. Como energia metafórica, conserva ainda hoje uma extrema importância para mim: vejo o teatro em todo o lado, na escrita, nas imagens, etc. Mas, quanto a ir ao teatro, ir ver teatro, já pouco me interessa, quase que já lá não vou. Digamos que continuo sensível à teatralização e que esta é uma operação no sentido que eu referia há pouco.

 

- Que encontra no caso da palavra pedagógica.

 

A relação docente-discente é outra coisa ainda. É uma relação contratual que é uma relação de desejo. Uma relação de desejo recíproco que implica a possibilidade da decepção e, portanto, da realização. Poderia dizer de forma provocatória: um contrato de prostituição.

 

- Entra este ano para o Collège de France. Pensa que isso alterará nalguma coisa a natu­reza desse laço pedagógico?

 

Não creio. Espero que não. De qualquer das maneiras, sempre tive, no quadro dos meus seminários, uma relação “idílica” com o ensino. Sempre me dirigi a sujeitos que me escolhem, que vêm para me escutar e a quem eu não sou imposto. Condições privilegiadas que são também, por definição, as de um curso no Collège.

 

- Com a reserva de que o seminário pressupõe o diálogo e o curso o solilóquio ...

 

Isso não tem forçosamente a importância que se julga. Há um lamentável preconceito que pretende que numa relação pedagógica tudo esteja naquele que fala e nada naquele que escuta. Enquanto que, na minha opinião, passam, passam-se tantas coisas de um lado como do outro. Não se deve censurar a escuta, em nome da palavra. Escutar pode ser uma fruição ativa.

 

- Isto é, não há uma relação de poder necessária e obrigatória?

 

Há a questão, bem entendido, do poder interior ao discurso, a qualquer discurso, de que eu falo na minha lição inaugural. Quanto ao resto não creio que haja urgência em suprimir o principio do curso em proveito de falsos diálogos que frequentemente se transformam em psicodramas. E pode perfeitamente pensar-se o solilóquio como uma espécie de teatro, no limite, fraudulento, fluído e incerto, em que se conduz um jogo sutil entre a palavra e a escuta. O solilóquio não é forçosamente magistral; pode ser “amoroso”.

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