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Grandes entrevistas

 

Rubens Figueiredo

Entrevista conduzida por Marcos Pasche e Roberto Lota, publicada no jornal Rascunho, de Curitiba, em fevereiro de 2011.


Em Passageiro do fim do dia, aparecem referências ao petróleo, ao Banco Central Americano, ao pertencimento por meio de bens materiais, às filas de pontos de ônibus e a inúmeros outros fatores que identificam o tempo presente. O senhor ambiciona fazer também uma crônica da época atual?
Não pensei em crônica. Pensei que seria possível questionar, investigar e conhecer aspectos importantes do quadro histórico atual por meio dos recursos oferecidos por um romance. Tomei o cuidado de não mencionar datas nem nomes de lugares reais. Não porque eu pretendesse conferir um cunho universal ao livro. Ao contrário: eu queria que os aspectos concretos e particulares pudessem ser percebidos como partes de uma experiência familiar, vivida e bastante generalizada (mas não universal, nem fora de um tempo). A saber: a experiência de estarmos submetidos a um processo social que precisa a todo custo manter-se oculto. Um processo que reforça cotidianamente a idéia de que os diversos aspectos da vida mais corriqueira são fatos avulsos e descoordenados, vazios de qualquer sentido que não seu fim mais imediato. Também por isso me veio em algum momento a idéia de incluir o Darwin no romance. Eu procurava um meio de o livro incorporar uma dimensão histórica com um alcance mais remoto, mais abrangente. O livro velho e meio vagabundo sobre o Darwin que o protagonista lê no ônibus podia permitir que eu evocasse o colonialismo, a escravidão — pois o Darwin fez relatos sobre isso quando contou sua visita ao Brasil. É bem verdade que ele foi muito, muito menos severo quando se tratava de injustiças flagrantes que presenciou em colônias britânicas. De todo modo, a própria teoria de Darwin foi bastante oportuna para o colonialismo inglês: a longo prazo, um substituto da religião para legitimar a desigualdade social. Com isso meu romance poderia também, em alguma medida, discutir o papel da ciência num contexto de relações desiguais de poder. Por esse caminho, a ciência vinha se unir à justiça, à medicina, à educação, à economia, à arte, à publicidade, aos meios de comunicação, ao trabalho, enfim, a um vasto arsenal de fatores que valem por instrumentos de uma opressão cotidiana e repetida, até um aparente embotamento de suas vítimas. Desse modo, os personagens do romance muitas vezes se sentem perseguidos, acossados, para onde quer que se voltem.

A certa altura de Passageiro…, o narrador diz: “Assim, através das sextas-feiras, as semanas corriam sem parar, uma a uma, para dentro de outras semanas”. Considerando a aceleração da narrativa, manifestada pela ausência de divisão por capítulos, pode-se dizer que o livro também foi escrito de forma célere, absorvendo a pressa contemporânea, ou isso é apenas uma estratégia do autor, que finge contaminar a sua obra de elementos a serem criticados?
Escrevi devagar. Conforme escrevia, e à medida que minha visão de conjunto do livro se definia melhor, achei que seria contraproducente dividir o texto em capítulos. Tentei compor o livro por meio do acúmulo de detalhes à primeira vista triviais. Evitei uni-los por meio de uma intriga, evitei uma estrutura calcada na construção de um mistério seguido de um desvelamento. Em vez de montar um encadeamento, uma trama, minha expectativa era criar para o leitor um ambiente em que dados isolados e banais, retemperados por um certo tipo de linguagem, revelassem aos poucos a presença de algo que abrange todos aqueles dados e os integra. Tentei fazer um romance que trata da desigualdade social, dos mecanismos que a ocultam ou a justificam, que a produzem e a reproduzem. Tentei explorar as imensas dificuldades e complicações que acompanham qualquer esforço para não nos sujeitarmos a tais mecanismos. Achei que esse podia ser o conteúdo subjacente à tensão que eu pretendia imprimir à narrativa. Uma opressão que atua de forma contínua até nas coisas mais miúdas.

Alguns de seus personagens são distanciados da realidade, coletiva e/ou particular. Muitos deles, inclusive, não vociferam contra as adversidades em que se encontram. Nesse caso, este distanciamento ocorre por autodefesa ou alienação?
Tentei investigar no romance a maneira como a desigualdade social cria distâncias tão grandes que dificultam ou impedem a compreensão das estratégias de resistência e de sobrevivência, distâncias que podem fazer a massa trabalhadora surgir como um enigma para o observador externo. Achei que vistas as coisas bem de perto, e de ângulos que talvez só um romance possa encontrar, seria possível perceber, no olhar do observador, a presença da suposição de uma superioridade (e de uma inferioridade), e também perceber como isso atua na manutenção desse regime de desigualdade. O pressuposto de superioridade é uma arma do observador para se defender daquilo que ele julga ser uma ameaça. Mas manter esse pressuposto tem um custo, gera uma tensão que pode nem sempre ser suportável. Investigar o papel desse tipo de mediação no modo de perceber as relações sociais me pareceu que poderia dar mais alcance ao meu livro. Que poderia dar vida e familiaridade a uma situação em que já não é possível responder apenas sim ou não, certo ou errado.

O senhor atua como professor e tradutor, o que, dada a sua formação (em português-russo), aponta para uma convergência, se não natural, pelo menos comum. Já que o ofício de escritor não requer curso acadêmico, o que o motivou a se lançar à escrita? O escritor nasceu antes, durante ou depois da formação do acadêmico?
Peço desculpas, mas não sei o que responder.

O senhor estabelece para si uma rotina padronizada de trabalho?
Não.

Como se deu a sua formação como leitor, a sua alfabetização literária? Qual o contato mais marcante com os livros neste início?
Outra pergunta que me traz dificuldade. Pois não me lembro…

Numa entrevista, o senhor afirmou que admirava a escrita de Graciliano Ramos. De que modo o seu perfil estético se influencia ou recebe a contribuição do cânone literário nacional?
Desculpe. Não sei responder.

O seu trabalho como tradutor traz, de maneira voluntária ou inconsciente, para sua prosa a estética de autores estrangeiros?
Traduzo livros há 20 anos. Em função do vigente quadro de dominação econômica e cultural, quase todos são de autores americanos e ingleses contemporâneos. Nos últimos anos, porém, tive oportunidade de traduzir também livros russos do século 19. O contraste não poderia ser mais chocante. Os autores russos do século 19 viviam sob o regime autocrático dos tsares, em que vigorava a censura e a repressão violenta aos movimentos de contestação. Mas é em suas obras que encontro liberdade de pensamento, audácia de composição artística e de questionamento social, além de um esforço ferrenho para construir uma larga via de acesso capaz de integrar suas obras à dinâmica da sociedade. Já nos autores americanos e ingleses contemporâneos que traduzi nesses 20 anos, o que sinto de forma predominante e constrangedora é a presença incessante de um temor ou pelo menos de uma timidez de questionar, criticar e investigar a fundo, com desenvoltura, as fontes e os mecanismos que geram as relações desiguais de poder. Talvez pese aí o fato de que tais autores são beneficiários diretos, e em escala nunca vista, desse padrão de relações. Portanto, no que se refere ao que traduzi, as contribuições mais importantes vieram quase todas dos autores russos. Neles, toda e qualquer questão tida como estética jamais se dissocia de uma perspectiva consciente e explícita em face da história e das relações sociais.

Em João Cabral de Melo Neto, o vocábulo “pedra” denota uma educação específica. Apesar da singularidade da sua obra, o vocábulo “Pedro” (cognato à pedra) aparece com recorrência, seja no protagonista do novo romance seja em praticamente todos os textos de Contos de Pedro. Tal recorrência indica alguma especificidade de sua ideologia artística?
Acho que não. Foi só um nome, uma sonoridade que não criava cacofonias.

Apesar de não se limitar a isso, sua escrita apresenta forte abordagem social, aparecendo, seja no todo ou em partes, em O livro dos lobos, Contos de Pedro, Barco a seco e, agora, em Passageiro do fim do dia. O senhor acredita que a literatura ainda pode interferir na sociedade?
A questão não se esgota na possibilidade ou não de interferir na sociedade. Trata-se de não abdicar da nossa faculdade de questionar e de tentar conhecer o processo da construção das relações sociais. Um romance tem grande chance de se tornar irrelevante se não fizer valer seu poder de conhecer e de investigar o mundo histórico. Nas últimas décadas, boa parte da literatura mundial apostou na idéia de que só é possível ser crítico a sério concentrando-se na exploração da linguagem mesma, da construção em si. O legado de todo esse esforço me parece hoje decepcionante. Em vez de radicalidade, o que me parece prevalecer é uma falta de vitalidade, um acanhamento. Talvez seja exagero, mas hoje às vezes até pressinto nessa opção uma forma insidiosa de autocensura, ou no mínimo de conformismo. Não necessariamente por uma opção consciente do escritor. A rigor, formou-se em nosso tempo um ambiente em que nem precisamos de fato optar: a escolha principal já está dada de antemão, não pode ser de outro modo, já faz parte da própria natureza (voltamos aqui a Darwin). É o que ocorre com alguns personagens de meu livro, em certos momentos.

Qual a importância da ficção na vida cotidiana das pessoas?
Desculpe. Não sei responder.

Sendo o senhor hoje um escritor renomado e professor de escola pública, de ensino médio e tipicamente comum (que padece de problemas já banalizados), como concilia essas duas vertentes no seu cotidiano de docente? O contato com essa realidade faz com que a sua literatura também se incline para a formação de novos leitores?
Desculpe de novo. Não tenho resposta.

Apesar de ter o reconhecimento da crítica, ser publicado por uma das mais importantes editoras brasileiras, ter recebido alguns dos mais importantes prêmios literários do país, o senhor se mantém afastado dos bastidores literários. Isso é por um traço de personalidade ou é por uma reprovação aos holofotes, tão cobiçados até mesmo por intelectuais?
Desculpe, mais uma vez. Vocês vão ficar com raiva de mim…

Como sua obra se relaciona com as tendências narrativas atuais mais prezadas por críticos e autores? O senhor se vê pertencente a alguma linhagem literária?

Não sei como se relaciona. Não vejo por esse ângulo aquilo que escrevi. Talvez eu pudesse dizer que vejo meus livros envolvidos numa espécie de processo acelerado em que as perspectivas se alteram a todo instante. Com elas, as respostas e as perguntas se modificam também, incorporam novos termos e abandonam outros. Assim a própria literatura pode se mostrar com faces bem diferentes, nem todas bonitas ou defensáveis. Longe disso.

O senhor acompanha a literatura brasileira contemporânea? O que lhe chama a atenção na atual produção?
Me chama a atenção a dificuldade que temos para encontrar brechas por onde possamos tocar algum pouco mais fundo, mais vital, do regime social em vigor. Não necessariamente por insuficiência dos escritores, mas antes pelo poder acumulado e concentrado nos mecanismos de defesa desse regime.

Que tipo de literatura (ou quais autores) compõe a sua biblioteca afetiva?
Me desculpe de novo.

As novas tecnologias têm sido preconizadas por especialistas e pelo público em geral como causa e conseqüência de supostas transformações que atingem o campo da leitura e o da escrita. Estando o senhor dos dois lados da moeda, como o autor Rubens Figueiredo e o cidadão Rubens Batista Figueiredo se relacionam com tais tecnologias?
Complicou…

O mercado editorial brasileiro passa por uma profunda transformação nos últimos anos, com a chegada de grandes grupos estrangeiros. Há também uma quantidade muito expressiva de novos autores surgindo. Além disso, existem eventos literários (encontros, feiras, bienais, etc.) em todas as partes do país. Pode-se afirmar que há um ambiente mais favorável à literatura atualmente?

Caramba! Estou frito. Mais uma…

• O que o senhor espera alcançar com sua escrita?
Para essa pergunta tenho uma resposta: você está querendo saber demais!

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