Vergílio Ferreira
Entrevista conduzida por Cremilda Araújo Medina, para compor seu livro: Viagem à Literatura Portuguesa contemporânea. Rio de Janeiro: Nórdica, 1983.
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Vivo aquém do ser natural e só aí sou natural ou aproveitável. É aí que faço livros. Para além, na zona do convívio, um desastre. O que se passa onde faço os livros não é convivente. E raro, afinal, o quero convivente. A verdade de um artista não é cotidiana e o artista tem de sê-lo. Daí os desencontros. (confissões de Vergílio Ferreira em seu diário Conta corrente, 1969)
Um ser murado. É só ver a forma como se posta para a fotografia. Nem antipatia nem simpatia. Apenas um ser em defesa, atrás de sua bem constituída e consciente muralha: “Quase todos os que contatam comigo sofrem uma decepção. E decepcionado eu sempre com a decepção deles. Nada a fazer”. Que decepção qual nada, o fato é que estamos diante de um escritor que tem em Portugal e na Europa fama semelhante a um Jorge Luis Borges na América. Aliás, Vergílio Ferreira só reconhece Borges na literatura latino-americana. Há 40 anos no ofício, sua prosa é muito bem definida na obra Estudos sobre Vergílio Ferreira. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda). Diz Helder Godinho da originalidade do autor.
“... consiste a meu ver fundamentalmente no fato de nunca ter abdicado do excesso de sentido que transborda de todo o humano e, sobretudo, na intensidade com sempre o perseguiu. (...) Essa procura de um sentido final, excessivo a todo cotidiano e que constitui a espinha dorsal verdadeiramente condutora de toda a obra de Vergílio Ferreira, vai-se explicitando de livro para livro (e, em todos, ela esteve sempre presente), até atingir nos últimos romances (Nítido nulo, Rápida a sombra, Signo sinal) uma expressão clara e definida.”
O ereto professor de liceu (sua constante profissão de sobrevivência) fala do percurso literário com naturalidade: “Escrever, acontece, Escrevi sempre. Versos, teatro, ensaio, romance...” Uma plaquete - Platonismo de Camões – iniciou-o no ensaio. No ano seguinte, já escrevia um romance. Vergílio Ferreira considera dois caminhos na aventura: o ensaio e a ficção. Tanto que continuou a alternar: em 1942, refletia sobre Eça de Queiroz e o Primo Basílio (Eça, para ele, é o primeiro expoente da literatura portuguesa, foi nele que ganhou força e estímulo quanto ao valor das palavras. Conversamos então sobre a os seus ascendentes, esse constante pesquisador do bons estilos cita dois modelos fundamentais – Fernão Lopes e o padre Antônio Vieira. Em tudo, a grande paixão: a palavra. E não escreve mais teatro porque a palavra não está no centro dessa expressão artística. Volta a Eça e se detém no valor conotativo da palavra em que este autor é exímio.
Todo o que envolve reflexão, autoconsciência, interessa sobremaneira a Vergílio Ferreira. Para ele, a teorização é simples extensão do interesse pela literatura. Embora seu perfil literário acuse mais títulos em ficção do que no ensaio, não há muita diferença segundo seu gosto. Mas que fique claro, extensão e não antecipação: a teoria não pode, de maneira nenhuma, tolher a espontaneidade. No momento em que cria, é preciso até mesmo esquecer as reflexões teóricas para que o impulso instintivo não seja entravado. Vergílio reconhece que sua formação está eivada de estímulos filosóficos alemães, que lhe vieram por meio da França. Existencialismo e Heidegger vivem na gênese de seu pensamento, na forma de encarar o mundo. Atualmente se volta para a lingüística como campo de estudo.
“Sim, sou europeu”. O escritor não tem pejo de se assumir como nitidamente europeu. Pois admite que a Europa está velha, sem maiores perspectivas, mas não tem nenhum encantamento pelo que há de vir da América. Examinando o que está acontecendo na literatura latino—americana, sobretudo na hispano-americana (como fazem questão de chamá-la os portugueses), Ferreira se detém em Borges. “Veja esse artista é europeu, estruturalmente europeu, fortemente europeu, intelectualmente europeu.” Ao advertir-lhe, em contraposição, que Borges é também muito portenho e, portanto, muito americano, Vergílio Ferreira argumenta com ênfase: “Ele reelabora a matéria americana com a Europa.” (Borges europeu é tabu para o escritor. Ponto final. É oportuno observar que o escritor argentino foi a chave para a fluência desta entrevista. Só quando Vergílio ficou sabendo que eu havia introduzido Borges no Brasil, por meio da edição de Ficções, na editora Globo, de Porto Alegre, nos fins dos anos 60, é que se entregou mais à vontade ao diálogo).
O autor de Rápida, a sombra é daqueles que não podem ser considerados como espontaneístas na arte. E o confessa: “A intelectualização da arte tem menos a ver com uma espontânea realização estética do que uma filtragem pela rede intelectual.” O romance, nesse sentido, é o ponto máximo de expressão. Joyce encontrou um limite, o novo romance do século XX. Segundo Ferreira, inultrapassável. Sem falsas modéstias (aliás, hipocrisia não faz parte do repertório desse duro e irônico escritor), considera que sua obra “tocou o limite, mas não chegou a atingi-lo. O que significa que a angústia à procura do máximo persiste. Suas personagens a-históricas continuam a se mover tanto na busca existencial, quanto na pesquisa da estrutura, da arrumação dos elementos ficcionais na montagem do romance.
Vergílio Ferreira se assume como o escritor português que introduziu o romance-ensaio que prefere chamá-lo de “romance-problema”. Implacável, descarta o que considera o “romance-espetáculo”, da linha de Tolstoi e Balzac e muito freqüente no romance latino-americano contemporâneo. Dostoievsky está na gênese do “romance-problema”, para ele muito mais expressivo de questões existenciais. Joyce representa certo cruzamento dos problemas apresentados na estória, por Kafka, e nos diálogos, por André Malraux. Joyce conseguiu fundir o problema no próprio processo de realização do romance.
E a poesia? “Faço parte dos que escrevem poesia através da prosa. Ando agora a me entreter com versos. Dizem que de velho se volta a menino. Talvez seja por isso que dei para fazer uns versos ultimamente.” Vergílio Ferreira se recompõe desta breve recaída no confessional e volta ao seu tom sério: “De qualquer maneira, é mais prático ser poeta do que romancista”. O poeta não se compromete tanto com a disciplina do trabalho. Seu estilo, tão acabado, deve merecer muito investimento... ? “Não, não reescrevo. Penso muito ante de escrever. Nem como Flaubert, que andava semanas à caça de um adjetivo, nem como outros que são uma torneira aberta à inspiração, como Agustina Bessa Luis. Eu elaboro mentalmente o que escrevo e não reescrevo.” O essencial, já se sabe através de inúmeros estudos críticos tanto em Portugal como na Europa e mesmo no Brasil, é que Vergílio Ferreira persegue a ambiguidade, a plurivalência dos significados, o valor de cada palavra e ainda dos próprios sons.
No quadro da literatura portuguesa contemporânea, chama a si a condição de marginal. Escreveu com todas as letras em seu diário: “É fatigante sentirmo-nos a girafa do jardim zoológico. Mas é esse o dever de quem foi promovido a curiosidade.” Vergílio lembra que começou no grupo do neo-realismo, porque foi essa a literatura que encontrou de cara na juventude. Depois, o cominho individual superou a problemática que , no seu entender, é reduzida no reo-realismo . Preocupava-o mais no destino humano, a vida, a morte, no que esses temas têm de mais desafiantes. Claro, indentifica outros escritores que se libertaram ou nunca se submeteram às linhas mestras do neo-realismo, como Maria Judite Carvalho, Almeida Faria (Que foi seu aluno). Quanto a Agustina Bessa Luis; essa correu paralela à sua criação. “Eu fiquei isolado no romance-problema.”
Vergílio Ferreira, como todos os escritores portugueses, mantém seus laços íntimos com a literatura brasileira. Primeira trata-se de uma experiência afetiva, inspiradora nos primeiros anos de leitura. Érico Veríssimo seria o exemplo típico dessa fase de encantamento. E como ele, Graciliano Ramos, Jorge Amado, José Lins do Rego. Muito mais tarde, após leituras variadas, opções artísticas de grandes escritores, terminou por sistematizar numa seleção que agora não se constrange em manifestar. Há os autores brasileiros que Vergílio ama. Érico Veríssimo. Há os que admira. Guimarães Rosa. E há os que ama e admira. Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles. Além dessa classificação com apenas alguns nomes não se atreve a ser mais explícito para não ser injusto. Se existe quem não goste de falar de arte é este romancista de poucas, mas expressivas palavras:”Como é detestável falar de arte para o grande público. Detestável mesmo vivê-la em grandes grupos. A arte é um ato solitário, uma questão a resolver entre nós e nós. Como todos os excesso de ser. A arte é um excesso de nós.” (Conta corrente, 1973)
Foi mesmo necessário um diário (Conta corrente), que vem publicando em volumes, para se perceber o perfil mais aproximado do escritor: “Que significa escrever livros? Entusiasmar-se com isso? A sensação de a vida está cumprida. (...) Tudo em mim está a mais – mas, sobretudo, a mais na própria vida. É flagrante a evidência de que saldamos dois mil anos de cultura; e é viva a impressão de que a arte que fazemos é uma caquética velharia – de que a própria arte em si poderá vir a ser”. A consciência aguda dos impasses culturais (político e econômico) da Europa é o principal eixo em que oscilam o ânimo e desânimo de Vergílio Ferreira. De repente, o peso desses dois mil anos de cultura e seu futuro obscuro despertam esperanças nos olhos do artista, e ele continua a crer na sua Europa. “Ser histórico é destacar-se e estar marcado para a sobreviência (...) Uma das coisas mais sobreviventes da Civilização Ocidental é a Cloaca Máxima.”
De resto, este homem que tem a coragem de dizer – “a verdade é que, quando me encontro bem na frente, reconheço-me intragável – consegue transformar em arte toda a sua dificuldade de conviver. “Um romance é um biombo – a gente despe-se por trás.” Ou a arte é um excesso de nós. Uma fatalidade. Por isso, não é possível lidar apenas com biombo, onde, na literatura, ele se despe:
“Toda a vida vivi no provisório. (...) O dia-a-dia, entretido no instante do dia-a-dia. E, no entanto, a arte. É a única fidelidade. A pequena luta comigo para alcançar o inalcançável.” (Conta corrente, 1973)
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