A tarefa do escritor de ficção se diferencia da tarefa do antropólogo em apenas um ponto: enquanto este último pesquisa as culturas e as pessoas sem saber muito bem aonde e como vai chegar a algum resultado, que em muito pode se distanciar do que ele supunha verdadeiro, aquele (o escritor) não sabe absolutamente nada do que vai encontrar (nem como vai encontrar) nos terrenos que também deseja – por que não dizer? – pesquisar. O antropólogo sabe alguma coisa prévia de sua aventura ao desconhecido. O escritor mal sabe quem é ele próprio; como poderia desconfiar de quem sejam as pessoas e as situações que acontecerão diante das suas mãos estarrecidas? O antropólogo tem métodos científicos prévios e posteriores que, na falha de qualquer fato pretendido ou esperado, ajudam-no a prosseguir, ainda que tartamudeando. O escritor, pobre dele, só dispõe da metodologia de sua própria alma, que, com efeito, é o terreno mais inexplorado que ele já poderia ter algum dia pisado em sua vida. Ambos são pesquisadores. Mas o antropólogo tem um mínimo (um mínimo!) de controle sobre seu objeto de pesquisa. Já o escritor... Ademais é muito difícil e quiçá impossível falarmos sobre a escrita de ficção sem que, em algum momento, lancemos mão da própria ficção como justificadora e embasadora teórica de si mesma. Na crônica Mysterium, cuja epígrafe roubei, Lygia fala que se trata de passar de um trilho de trem ao outro várias vezes ao longo da jornada. Pula-se, aleatoriamente, do trilho da verdade ao trilho da ilusão, de onde se dá novo salto àquele, e daí ao primeiro... Et cétera. Sim, porque realidade e ilusão, em nós, escritores, andam paralelamente, como trilhos de trem; e nós bem que podemos ousar o risco de pular de um para o outro sem deixar maiores esclarecimentos a quem quiser de nós uma explicação “lógica”. Quem quiser a lógica sobre as culturas e pessoas exploradas por alguém que as expõe está equivocado se buscar um escritor. Que busque um antropólogo – ainda assim com grande margem de se deparar com a frustração naquilo que idealizava achar. É um fato. Que busque um anatomista. Provavelmente ele terá maiores chances de fornecer dados incontestáveis. (Será?)
Fonte: Depoimento obtido junto ao autor em 02/04/2009
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