Viana Moog
Entrevista conduzida por Homero Senna, publicada originalmente na Revista d' O Jornal, em 28/10/1945 e republicada no livro SENNA, Homero. República das letras. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996, de onde foi extraída.
Apresentação:
A eleição do Sr. Viana Moog para a cadeira de Alcides Maia na Academia Brasileira colocou outra vez em foco o nome do autor de Eça de Queirós e o Século XIX. É que, não tendo sido feita grande publicidade da candidatura, sua vitória surpreendeu todos quantos não o supunham guloso de imortalidade, nem com o prestígio bastante para forçar as portas da ilustra Companhia. Mas a eleição foi até das mais expressivas, pois saiu vencedor logo no primeiro escrutínio, com um número de votos que mitos veteranos das letras e dos prélios acadêmicos não têm conseguido. No fundo, mais um tento lavrado por esse escritor cuja carreira literária se assinala por sucessivos êxitos de venda e opinião.
Não há muito, em entrevista concedida a um jornalista de São Paulo, recordou que sua primeira produção a aparecer em letra de forma foi um artigo publicado no jornal “5 de abril”, de Novo Hamburgo, sobre as candidaturas dos Srs. Getúlio Vargas e João Neves da Fontoura, respectivamente à presidência do Rio Grande do Sul, na sucessão do Sr. Borges de Medeiros. O jornalismo político não haveria de ser, no entanto, seu gênero predileto, muito embora mais tarde, em 1936, voltasse a ele, como diretor “Folha do Povo”, de Porto Alegre.
Nascido no município de São Leopoldo, em outubro de 1906, ali mesmo aprendeu as primeiras letras, indo fazer o curso secundário no Ginásio Júlio de Castilhos, na capital do Estado, entre 1918 e 1923. Destinado, de início, à carreira das armas, afim de matricular-se na Escola Militar viajou para o Rio; mas não conseguindo inscrição, regressou a Porto Alegre, onde resolveu cursar a Faculdade de Direito, nela ingressando em 1925. No ano seguinte, prestou concurso para agente fiscal do imposto de consumo, cargo que exerceu durante todo o curso acadêmico e exerce ainda hoje, agora na Capital Federal. (1)
Obedecendo ao imperativo de uma necessidade inconsciente e inelutável - são palavras suas - por volta de 1927 comecei a escrever. Felizmente - continua - tudo o que então produzi permanece inédito, nos arquivos de alguns amigos, ou na vala comum dos cestos de papéis. Eram cartas, em que eu fazia literatura contra os outros.
De 1925 a 1934 não publicou senão pequenos artigos na imprensa gaúcha, mas em compensação entregou-se com afinco à leitura das obras essenciais de todos os povos que trouxeram à cultura humana uma contribuição apreciável, e sobretudo de seus autores prediletos, que são Cervantes, Voltaire, Ibsen, Eça e Machado de Assis. Mesmo nesse período, porém, o político não se separou de todo do homem de letras, pois meteu-se o Sr. Viana Moog em ambas as revoluções que em 30 e 32 tão fundamente abalaram a vida nacional. Em conseqüência, aliás, de sua participação nesta última, viu-se de um momento para outro transferido para o Amazonas, onde escreveu, então, seu primeiro livro, os Heróis da Decadência, publicado a primeira vez pela Editora Guanabara, desta capital, numa edição toda truncada, que o autor mais tarde repudiou, mas que assim mesmo constituiu, segundo o depoimento insuspeito de Agripino Grieco, "uma estréia invulgar das nossas letras".(2)
O mais interessante é que a idéia desse livro atravessou-lhe o espírito quando andava preocupado com coisa muito diferente, ou seja, com O Ciclo do Ouro Negro, sugestivo depoimento sobre a realidade amazônica, e que já estava quase terminado quando resolveu escrever seu brilhante ensaio sobre o humorismo, o qual acabou vindo a lume primeiro.
Voltando, em 1936, aos pagos natais, ingressou outra vez no jornalismo e, reunindo em volume sua produção dessa época para o diário que então dirigia na capital gaúcha, em 1937 apareciam as Novas cartas persas, inspiradas no célebre livro de Montesquieu.
O escritor estava indiscutivelmente em maré de produção, tanto assim que logo no ano seguinte aparecia o seu Eça de Queiroz e os século XX, que conta hoje várias edições e uma vez por todas o consagrou como um dos nossos mais destros ensaístas. A seguir, em 1939, a atenção dos meios literários daqui e dos Estados era despertada por outra novidade que do Sul nos mandava o Sr. Viana Moog. Tratava-se, dessa vez, de um romance, cujo entrecho passou logo a ser assunto obrigatório de comentário nas rodinhas dos cafés intelectualizados da cidade. Era. Um rio imita o Reno, contra o qual energicamente protestou a Embaixada alemã, que chegou, mesmo, a solicitar do governo a apreensão do livro. Com tal publicidade, mil exemplares das duas primeiras edições se esgotaram como que por encanto, e tiragens sucessivas foram feitas desse romance, que fixa aspectos da colonização alemã no Rio Grande do Sul. A literatura em meu Estado natal - disse o Sr. Moog na entrevista a que acima nos referimos – durante largo tempo não foi mais do que uma fórmula de expansão do narcisismo gaúcho pelas façanhas farroupilhas." Reagindo contra essa tendência, soube ele extrair, da realidade que estava ao alcance dos olhos de todo o mundo, assunto para um dos mais vigorosos romances da moderna literatura brasileira, que é também, um eloqüente depoimento sobre o perigo da infiltração germânica nos Estados meridionais do Brasil.
De posse do prêmio que por esse livro lhe concedeu, no ano do seu aparecimento, a Fundação Graça Aranha, entregou-se a seguir à confecção de uma biografia de Maurício de Nassau, da qual, porém, para alegria dos historiadores e sociólogos que se consideram donos do assunto, logo desistiu, dada a dificuldade de reunir a indispensável documentação.
A convite da Casa do Estudante do Brasil, em 1942 proferiu no salão da Biblioteca do Palácio Itamarati sua conferência sobre Uma Interpretação da Literatura Brasileira, muito discutida. De uma viagem que logo depois empreendeu aos Estados Unidos, trouxe um volume de impressões a que deu o título de U.S.A. – uma civilização passada a limpo, que continua inédito. (3) Além desse, anuncia para breve novo romance: Uma Jangada para Ulisses. (4)
O mais jovem dos acadêmicos me recebe com a camaradagem e a afabilidade que são traços característicos de sua pessoa. Tínhamos marcado o encontro no escritório da Livraria do Globo, e foi ali, na presença do diretor da sucursal - Maurício Rosenblatt - que começamos a conversar. De início, peço-lhe que me fale das razões que fizeram com que se tornasse escritor, e a propósito diz-me:
Tornei-me escritor por aberratio ictus, se é que se pode empregar no meu caso esta expressão. Digo isto porque minha vocação sempre foi a política, e tinham cunho político os primeiros artigos que escrevi para a imprensa gaúcha. Acontece, porém, que, exatamente por força dessa vocação política, meti-me nas revoluções de 30 e 32. Em conseqüência de minha participação, nesta ultima, fui, em desacordo com os regulamentos, transferido, como fiscal do imposto de consumo, de Porto Alegre para o Amazonas. Vindo a saber da transferência, eu, que tinha na capital do meu Estado uma excelente situação, não quis seguir. Fui, então, preso e deportado.
- Mas, a julgar pelo que disse no discurso de agradecimento ao banquete que lhe ofereceram outro dia seus colegas do Imposto de Consumo, essa viagem acabou sendo-lhe benéfica...
Sem dúvida, pois além de revelar-me a Amazônia, e portanto uma região das mais interessantes do Brasil, revelou-me outro lado de mim mesmo, ou, se você quiser, o escritor.
- Como?
Ora, desde que desembarquei em Manaus e, por dever do ofício ou por simples curiosidade, passei a viajar pelo Estado, comecei a sentir-me inclinado a escrever alguma coisa sobre aquele mundo novo com o qual estava travando relações. Aliás, é conhecida a fascinação que o Inferno Verde exerce sobre os viajantes nacionais e estrangeiros: veja Euclides, Inglês de Sousa, Tavares Bastos, Alberto Rangel, Gastão Cruls... Sem falar em Wallace e Humboldt. Também eu, portanto, não pude deixar de pagar meu tributo ao sentimento cósmico que inspira aquela região, que, como uma vez já disse, a gente não sabe direito se é o primeiro ou o último capítulo do Gênese... Comecei, então, a escrever, para um jornal de Porto Alegre, uma série de artigos sobre a realidade amazônica, artigos esses que vieram a constituir mais tarde o meu livro O Ciclo do Ouro Negro. (5) Qual não foi, porém, minha surpresa quando, por cartas recebidas do Rio Grande, fui informado de que meus artigos estavam agradando ... Continuei, porque aquele era um novo meio de ganhar dinheiro e eu não me achava, em absoluto, em boa situação financeira no Amazonas, e quando dei por mim estava feito escritor.
- Quais as pessoas que maior influência exerceram em sua formação intelectual?
Dos amigos, devo citar em primeiro lugar Lindolfo Collor, por quem tive sempre grande admiração. Na campanha presidencial de 1923, no Rio Grande, achava seus artigos a suprema sabedoria. Anos mais tarde, prendeu-nos uma grande amizade, que durou até os últimos dias de vida do ilustre homem público. E essa ligação mais íntima só fez crescer em mim a admiração pelo seu talento e caráter. Era um homem de bem, em toda a extensão da palavra, com perfeita compreensão dos problemas brasileiros e forrado de invulgar cultura humanística. Dos professores do tempo de ginásio em Porto Alegre, não posso deixar de referir o padre Werner von Müller, jesuíta e nobre alemão que lecionava filosofia e foi o formador de inúmeras gerações no Rio Grande. E, recuando um pouco mais, lembro-me dos anos que passei no colégio de Canoas, de dois irmãos salesianos, o Irmão João e o Irmão Bernardo, cujos nomes ficaram para sempre associados em minha memória, talvez pelo enorme contraste que havia entre o temperamento de ambos, pois enquanto um parecia São Tertuliano, o outro sugeria antes São Cipriano. Está claro que eu, na época, não fazia essas comparações, limitava-me a querer bem ao primeiro e a temer o segundo, mas com o correr da vida suas figuras ficaram para mim ligadas aos nomes dos dois apologistas acima citados, que aliás encarnam perfeitamente o eterno dualismo da religião católica, um representando a parte autoritária, amedrontadora, punitiva do Catolicismo, espécie de Savonarola brandindo sempre contra as gentes pecadoras a ameaça da destruição total, das fogueiras eternas; e o outro a cordura, a bondade, a compreensão das fraquezas humanas, o perdão.
- Interrompe-se por um instante, como que retomando o fio dessas recordações, para logo a seguir acrescentar:
Naturalmente influíram também sobre mim os escritores que constituíam, nos meus tempos de ginasiano e acadêmico de Direito, o grupo dos novos de Porto Alegre: Teodomiro Tostes, Vargas Neto, Darci Azambuja, Moisés Velinho, João Pinto da Silva, Augusto Meyer, gente que eu, de início, admirava de longe... Depois vim a conhecer intimamente vários deles, e, através da amizade que ainda hoje me prende a todos, hão de ter influído de algum modo em minha formação. Aquele, porém, dos escritores gaúchos com quem mais tenho convivido é Érico Veríssimo, e a este não saberei dizer o que devo, sendo certo, porém, que todos nós lhe somos devedores de um enorme serviço: foi Érico quem, acabando com a lenda romântica do intelectual boêmio, sujo e faminto, valorizou no Rio Grande a profissão de escritor. Érico foi dos primeiros romancistas no Brasil a tirar de seus livros edições de dez e vinte mil exemplares e com isso mostrou que também em nosso país, senão agora pelo menos num futuro não muito distante, será possível ao escritor viver exclusivamente da pena. (6)
- O assunto viera a propósito e indago, então, de Viana Moog se, na sua opinião, deve o escritor preocupar-se com o sucesso popular, de venda e difusão, que seus livros possam alcançar, e com as conseqüentes vantagens econômicas que isso lhe possa trazer, ou se acha que o mais importante é a opinião de alguns poucos entendidos. A resposta não se faz esperar:
É evidente que o escritor deve preocupar-se com o sucesso popular de seus livros. Nada mais natural, pois quem escreve está transmitindo uma mensagem e é perfeitamente compreensível o desejo de que essa mensagem atinja um número cada vez maior de leitores, mesmo porque pode até destinar-se a modificar a opinião do público a respeito de determinados assuntos. O que acho condenável é o escritor que, de caso pensado, procura agradar ao povo, corteja a popularidade fácil, faz concessões ao gosto momentâneo das massas. Aliás, aí, precisamente, é que o escritor se distingue do escriba. Este é o que acompanha sempre a volubilidade do grande público, o que se aluga, o que não tem convicções, o que põe sua habilidade e seu virtuosismo a serviço não de sua chama interior, mas dos interesses do momento. Que o escritor, sem trair sua missão, procure ganhar o mais possível com o que produz, parece-me coisa perfeitamente normal. O intelectual, para ter liberdade, deve ser economicamente emancipado. Ora, um dos caminhos para isso é procurar auferir com seus livros boas somas de direitos autorais. Faço questão de deixar bem claro, porém, que abomino o escriba. Tenho que o mandamento nº 1 do escritor deve ser o seguinte: conservar-se fiel a si mesmo, às suas verdades interiores, sem cortejar a crítica nem o público.
- Mas como conciliar as duas coisas: o aplauso dos críticos e o favor do público?
Não sei, nem acho que haja fórmulas para isso. É coisa que às vezes acontece, e quando se dá, a coincidência deve ser interpretada como um sinal de que a mensagem encontrou acústica e de que os tempos estão maduros para aquilo que o escritor pressentiu antes dos demais. Mas observe que quando não há essa acústica, nem sempre o escritor é que está errado. Há verdades que os tempos sufocam, e isso faz com que muitos escritores tenham o destino de Inês de Castro, que só depois de morta foi rainha...
- Como explica o súbito prestígio que o folhetim voltou a ter?
Não sei... Talvez o fato corresponda ao desejo do povo de fugir aos horrores da guerra, de voltar às coisas amenas e boas da vida. (7) A ficção sempre foi para o homem uma porta para a evasão, para o sonho. Ora, não sei de época em que possa ter havido maior desejo de evasão do que a atual. Não é impossível, também, que o folhetim tenha renascido por constituir um refúgio, uma defesa contra a crescente mecanização da vida. Vivemos na época da máquina, da velocidade, da bomba atômica. O folhetim é uma janela aberta através da qual se vê um pedaço de céu. Exatamente como os desenhos animados, que tanto sucesso alcançam também hoje em dia.
- Mas tais livros, na sua maioria best sellers americanos traduzidos às carreiras, não podem ser nocivos ao público?
Talvez, por serem em geral literatura de segunda ordem. Mas repare que não duram e têm, portanto, uma influência muito efêmera. Da mesma maneira como inundam os balcões e as vitrinas das livrarias, quando lançados, logo desaparecem das mostras e dos catálogos. E desaparecem para nunca mais voltar. Quem é, por exemplo, que vê hoje nas livrarias um exemplar sequer de... E o vento levou? Morreu ... Não resistiu ao tempo, isto é, à passagem de dois ou três anos ... No entanto, meu velho, Balzac e Dostoievski, Stendhal e Dickens se vendem sempre. Estes sim, são os permanentes, os que ficam, os que o público procura todos os dias. Ao passo que os outros... Resumo com o pensamento de Goethe: "O que deslumbra vive um instante; o que é verdadeiramente bom permanece intacto para a posteridade."
Aqui Maurício Rosenblatt, que estava da sua mesa escutando, pede licença para um aparte, e, virando-se para mim, diz: “Com a prática que tenho como editor, posso explicar o fenômeno da seguinte maneira: o povo se atira aos best sellers por essas razões todas que o seu entrevistado acaba de enumerar: sede de aventuras, desejo de evasão, fuga do cotidiano etc. Mas, como em geral são livros destituídos de qualquer força simbólica, livros que apenas narram histórias, não ficam, e pouco tempo depois de aparecidos já ninguém pensa mais neles, porque de um modo geral só se incorporam à história literária dos povos os livros que criam símbolos: o D. Quixote, o Père Goriot, Os Irmãos Karamazov. Estes, em qualquer circunstância, são livros de venda garantida. Viana Moog aplaude as palavras do seu amigo, e observa:
- Está respondida sua pergunta. Parece, de fato, estranho que os Estados Unidos - país de vida tão intensa e agitada, sejam a pátria por excelência dos calhamaços, dos romances de oitocentas e mil páginas. Para mim, porém, o fato nada tem de extraordinário, e o digo sem intenção de fazer paradoxo: é que, exatamente por serem habitantes de uma terra de vida intensa e agitada, os americanos não têm tempo de ser breves. Por isso os romances que nos enviam nos dão essa impressão de abarrotamento. Precisamos não nos esquecer de que resumir é uma arte que demanda concentração, cristalização, decantação e filtração. Ora, todas essas palavras em ão são boas para povos amadurecidos e de vida pacata, capazes de repetir em literatura o processo das estalactites. Não para o americano, jovial e apressado
- Um dos trabalhos mais interessantes de Viana Moog é a sua conferência a que acima aludimos sobre Uma Interpretação da Literatura Brasileira, (8) na qual, fugindo por completo aos critérios da história da nossa literatura, lançou as bases de um novo sistema interpretativo, sem dúvida original e excelente como trouvaille, embora discutível. Segundo Viana Moog, o Brasil, longe de ser um continente de uma só expressão cultural, é antes um arquipélago de culturas, constituído por sete ilhas, cada qual com os seus traços diferenciais próprios, embora ligadas por laços comuns de formação social, étnica, política etc.: a Amazônia, o Nordeste, a Bahia, Minas, São Paulo, o Rio Grande do Sul e a metrópole, isto é, o Rio. O consagrado prosador gaúcho está convencido de que nessa divisão se encontra a chave de uma perfeita compreensão do Brasil, em todos os seus aspectos e valores, e pretende que de acordo com o seu método seja estudada não só a Literatura, mas também a História do nosso país. Para ele, o que caracteriza a Amazônia, primeira das ilhas do vasto arquipélago, na ordem geográfica, é a fascinação da terra; o Nordeste, a preocupação social; a Bahia, o eruditismo, de que Rui Barbosa é o padrão; Minas, o humanismo; São Paulo, o espírito bandeirante; o Rio Grande do Sul, a tendência a um tempo regional e universal dos gaúchos; e o grupo cultural da metrópole, o ceticismo e a ironia, que tiveram em Machado de Assis sua expressão mais alta. E a verdade é que o ágil conferencista soube tão bem alinhar os exemplos, que a gente chega ao fim da conferência convencido da excelência do novo método. Mas a quem quer que medite um instante sobre o critério esboçado, não escapará que é ele um tanto arbitrário e que há diversos escritores e dos maiores, que não se situam direito em nenhuma das ilhas culturais em que o Brasil foi dividido. Ora, como a conferência é de 1942, não seria impossível que seu autor já a tivesse emendado ou, mesmo, repudiado. Arguido a respeito, Viana Moog foi, porém, categórico:
Meu amigo, em relação às minhas obras, tenho sentimentos muito maternais: gosto de tudo quanto escrevi, o que é, aliás, explicável, uma vez que a maioria das minhas páginas não foi escrita por diletantismo ou interesse, mas por impulso inelutável. Além disso, atenuaram-me, às vezes, saudades do exílio, dias amargos de ostracismo... De nenhum de meus livros gosto, porém, tanto quanto da pequena conferência a que você acaba de referir-se, conferência que pretendo, mesmo, ampliar mais tarde num grosso volume...
- Mas não reconhece a arbitrariedade do critério seguido?
O método que preconizei para o estudo da nossa literatura, como todo método, não esgota o assunto. Mesmo porque, como já disse Santo Tomás de Aquino, "a vida transborda do conceito". Com ele outra coisa não pretendi senão trazer um auxílio ao estudo das realidades brasileiras, que a meu ver são as das sete ilhas em que dividi o nosso país. Todos os sistemas são arbitrários. O meu, porém, na minha opinião é o que mais nos ajuda a compreender o Brasil. Não que eu tenha querido sitiar, bloquear a vida dentro dele. Ao contrário, pois não me esqueço de que os sistemáticos fracassam sempre na interpretação das coisas da vida, para cuja compreensão é preciso ter uma visão poética, goethiana dos fatos.
- Interrompe-se por um instante, mas logo prossegue:
O que me consola é que nenhum método é absoluto. Eu, nesse terreno como em qualquer outro, não pretendo fazer proselitismo. Mas também não tenho motivos para renegar o meu sistema. Pelo contrário, e o digo sem falsa modéstia, não sei de nada que nos dê uma visão melhor do Brasil. Os nossos problemas tornam-se claros, olhados através do sistema das ilhas culturais. Evidentemente, essa questão de método não passa, em última análise, de uma questão geométrica de ângulos. E se eu, de um ângulo de visão, posso dominar uma boa porção de determinada paisagem, embora não toda a paisagem, não devo concluir que o ângulo é mau...
- Não digo que o seu método seja mau - adianto. Apenas, tendo sido aplicado, de início, à nossa literatura, parece-me um tanto arbitrário porque há grandes figuras que não cabem direito em nenhuma das ilhas em que dividiu o Brasil. Onde colocarmos, por exemplo, José de Alencar?
Alencar é exatamente a exceção que confirma a regra. Não suponha que deixei de pensar nele quando escrevi a minha conferência e não me vi atrapalhado com sua figura que realmente transborda de todos os esquemas. Mas o fato não nos deve surpreender - o próprio nomadismo do autor de Iracema explicaria a circunstância de não caber ele em nenhuma das nossas ilhas culturais. Alencar é o homem-soma: tem de todas as culturas e é o precursor da grande literatura brasileira que imagino para o futuro, isto é, a literatura que, como disse no final de minha palestra, há de ser telúrica, como a da Amazônia; social, como a do Nordeste; erudita, como a da Bahia; humanística, como a de Minas; bandeirante, como a de São Paulo; a um tempo regional e universal, como a do Rio Grande, tudo isso temperado pela ironia do núcleo cultural da metrópole, para que seja, acima de tudo, como todos desejamos, profundamente humana e brasileira.
- Mas existem outros escritores nas mesmas condições: um Aluísio Azevedo, dos contemporâneos, um Manuel Bandeira...
- Sem dúvida. E precisamente por isso é que ando à procura do denominador comum dessas ilhas culturais ...
- Há também escritores de uma região que não apresentam os traços que você aponta como característicos da sua ilha. Na Bahia, por exemplo, cuja literatura, na sua opinião. é antes "uma literatura de eruditos, de humanistas, de diletantes", desconcerta o aparecimento de um Castro Alves, o qual, como você próprio observa, "parece mais um filho espiritual do Nordeste e particularmente do Recife do que propriamente da Bahia, como Tobias Barreto o é do eruditismo baiano”... E as dificuldades de classificação continuam em nossos dias. Jorge Amado, por exemplo, nada tem dos traços típicos que você descobre no baiano. Sua literatura é, mesmo, o contrário do eruditismo. Também ele não parece mais um filho espiritual do Nordeste? (9) Viana Moog levanta-se e seu corpanzil de meio-sangue alemão cresce diante de mim. Passeia agora pela sala, e, depois de pensar um pouco, observa com seu sotaque gaúcho:
- Não se esqueça de que os traços que dou como característicos das diversas ilhas são traços dominantes, não exclusivos. Quanto a Jorge Amado, por exemplo, você não o acha, como eu também, tão baiano quanto poderia desejar, de acordo com o meu critério. De fato, à primeira vista pode parecer antes um filho do Recife. Mas se o examinarmos com mais cuidado veremos que é até bem baiano, não só pela torrencialidade como pelo barroco de sua literatura. E também é baiano por ser menino prodígio.
- A conversa já ia longa, e senti que, se continuássemos naquele caminho, tão cedo não teria fim, pois a esquematização da literatura brasileira feita pelo meu entrevistado dá margem às maiores controvérsias. Além disso, havia outro assunto a respeito do qual gostaria de ouvi-lo: a Academia. Seria interessante saber por que motivo aquele escritor, que sempre pareceu tão despreocupado de glórias e fardões, de repente resolveu candidatar-se ao Petit-Trianon.
Por que me candidatei à Academia? Muito simples, meu amigo. Como lhe disse de início, minha vocação toda a vida foi a Política. Fiz-me escritor por acaso. E como político, muito naturalmente sempre desejei ser eleito para alguma coisa. Como não havia outro jeito, candidatei-me à Academia. Meu desejo talvez fosse disputar eleições para conselheiro municipal, no Rio Grande. Mas como isso era impossível,resolvi tentar a Academia.
- Tinha confiança no pleito?
Absoluta. Quando me inscrevi sabia que seria eleito. Digo isto não por vaidade, mas porque conhecia, de antemão, os votos com que podia contar. É preciso não esquecer que para a cadeira que hoje ocupo realizaram-se, depois da morte do meu antecessor, três eleições. Nas duas primeiras, a que não concorri, ninguém foi eleito. (10) Soube, então, que se formara um certo entendimento de que a cadeira deveria continuar com o Rio Grande. Senti, então, que minha oportunidade havia chegado e pelo que me diziam vários acadêmicos meus amigos, não tinha a menor razão para recear o pleito. Assim, quando soube do resultado, experimentei grande satisfação, mas não surpresa.
- Acha que a Academia vem cumprindo a finalidade para que foi criada?
Acho. A posição da Academia é como a da Igreja: nas horas de revolução, de inovações, ela parece reacionária, porque, tendo uma tradição e um passado a zelar, é levada, naturalmente, a tomar uma atitude de reserva, senão de defesa. Processada, porém, a decantação das idéias novas, é ela a primeira a vir buscar cá fora, para o seu seio, os representantes dessas idéias. Isso tem-se dado com todas as Academias, inclusive com a nossa, que, entre muitos outros revolucionários de 1922, conta hoje entre os seus membros, Manuel Bandeira. O mesmo ocorre com a Igreja. A Igreja dos sílabos, reacionária, ultramontana, é a mesma instituição que, no mundo legado pela Santa Aliança, com a encíclica Rerum Novarum, empunha o facho das transformações sociais. O que a Academia não pode ser é vanguardista. Sua função é estabelecer o equilíbrio na república das letras, como força conservadora das mais úteis e respeitáveis.
- Acha que os moços devem procurá-la, ou evitá-la?
Penso que devem bater às suas portas, e de aríete.
- Não receia a influência academizante?
Absolutamente. Antes de entrar para lá já me sentia acadêmico. "Acadêmico", porém, é palavra que se acha terrivelmente corrompida hoje em dia, porque associada sempre a beletrismo, torres de marfim, estilo rococó etc. Não preciso dizer que detesto tudo isso, mas também nada vejo em minha obra que não seja "acadêmico", no bom sentido. Ademais, não devemos esquecer que foi a Academia que deu foros de cidadania à literatura brasileira, elevando socialmente o escritor. Que eram os escritores brasileiros antes dela? Um grupo de boêmios sem maior importância social. Foi a Academia que os levou do botequim e da confeitaria para a atual dignidade de sua missão. Não há mal nenhum, porém, em que continue a ser criti cada e até atacada...
- Leva para a Academia algum plano de ação?
Levo: o de divulgar o livro brasileiro no estrangeiro, com o seu apoio. Hoje vivemos num mundo só. Os problemas econômicos e sociais do Brasil terão, assim, forçosamente, de ser resolvidos em função das soluções internacionais. É importante, por conseguinte, que nos compreendam lá fora e se desfaça a nuvem de espessa ignorância em que, para o estrangeiro, ainda está envolvido o Brasil. Ora, o livro é o melhor embaixador de uma cultura, de uma civilização. Precisamos, pois, verter para os idiomas estrangeiros, principalmente para o inglês, os nossos grandes livros, a fim de que os povos não só das Américas, mas também dos outros continentes, fiquem nos conhecendo e possam avaliar de que somos capazes. É isso o que vou propor à Academia, logo depois de tomar posse.
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Notas:
(1) De 1946 a 1950 serviu na Delegacia na Delegacia do Tesouro Brasileiro em Nova Iorque. Em 1950 foi representante do Brasil junto à Comissão de Questões Sociais da ONU, tendo nessa condição participado, em Nova Iorque e em Genebra, das reuniões da referida Comissão. Em 1952 foi eleito pelo Conselho Interamericano Cultural para representar o Brasil na Comissão de Ação Cultural da OEA, com sede no México, já tendo sido inclusive presidente desse Conselho.
(2) Em 1964 saiu nova edição, pela Editora Civilização Brasileira
(3) Publicou no entanto, talvez aproveitando as notas e apontamentos para esse livro - Bandeirantes e pioneiros (Paralelo entre duas clturas), de que saiu, em 1978, a 14ª edição, Civilização Brasileira.
(4) Editora Globo, Porto Alegre, 1959.
(5) Editora Globo. Porto Alegre. 1936: 2ª ed. Belém do Pará, Conselho Estadual de Cultura, 1975,
(6) Apesar do tempo decorrido, não se chegou, ainda, à situação vislumbrada pelo otimismo de Viana Moog: são até hoje muito pouco os escritores que, entre nós, conseguem viver exclusivamente da literatura.
(7) A entrevista é de 1945.
(8) Lida, no salão de conferências da Biblioteca do Ministério das Relações Exteriores, no dia 29 de outubro de 1942, e publicada no ano seguinte, pela Casa do Estudante do Brasil.
(9) A propósito, conviria lembrar a aguda observação de Afonso Arinos de Meio Franco: "Há, na Bahia, dois climas físicos que deram origem a dois ambientes sociais e a dois tipos psicológicos de baianos. (...) A antiga civilização do açúcar e do fumo, a costa junto à capital e o Recôncavo com seus pescadores e marinheiros, tudo aparece na velha cultura impregnada de sermões, discursos, arrazoados, odes, modinhas, quitutes, mulatas fornidas, mel grosso de engenho, talha dourada nos altares, mesas pesadas de jacarandá. E, de repente, mulheres alvas. de uma brancura segregacionista, suecas de casa-grande, flamengas dos sobrados tradicionais. Esta Bahia cálida e discursiva, florida e hospitaleira, dá-nos, em política, homens da cordialidade tocante dos Mangabeiras, de Luís Viana, de Pedro Calmon, de Nestor Duarte. de Nélson Carneiro, do próprio Jorge Amado, apesar das suas fases de racionalismo ideológico. A outra face da Bahia é o sertão, o sertão do boiadeiro e do faiscador, do barranqueiro e do barqueiro são-franciscano. É a Bahia que começa com a Casa da Torre e o bandeirismo, com os criadores da Jacobina e os andarilhos vestidos de couro que, em busca das minas de ouro e prata, cruzaram as ínvias lonjuras até às escarpas prateadas do Serro do Frio. Essa Bahia, mais ensolarada e áspera, é o solo cultural dos homens-cactos, dos poetas satíricos como Gregório de Matos; dos polemistas gramaticais, como o velho Carneiro; dos espadachins do foro, da imprensa e da tribuna, cujo símbolo mais possante é o formidável Rui" (A Escalada. p. 55). Também em relação a Minas Gerais já havia ele aconselhado a distinguir entre "o mineiro da antiga civilização mineradora e o outro, formado à sombra dos cafezais da Mata e do Sul". (Ibidem)
(10) Na eleição de 11/01/1945, foram candidatos: Maurício de Medeiros, Jorge de Lima e Valdemar de Vasconcelos, sem que qualquer deles obtivesse o número mínimo de votos necessários para eleger-se. Na 2ª eleição, aos 17/05/1945, foram candidatos Valdemar de Vasconcelos e o General Sousa Doca, repetindo-se o resultado da primeira. Finalmente na 3ª eleição, aos 20/09/1945 foi eleito Viana Moog, que teve como concorrentes os Srs. Valdemar de Vasconcelos, Jaques Raimundo e Basflio de Magalhães.
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