(Crítica a Camões épico devido à falta de psicologia dos personagens) “Acho que esperar a verdade psicológica em heróis emblemáticos é esperar o que não pode estar lá. Camões não estava minimamente preocupado com a verdade psicológica de Gama. Deixa muito claro que Gama é o instrumento, um instrumento poético, ao mesmo tempo em que foi um instrumento histórico. Ele diz: às musas – ou seja, a mim poeta – agradeça o nosso Gama o muito amor da Pátria que faz com que ele esteja a ser celebrado. Está a sugerir, portanto, que não é o Gama que é importante, é a celebração poética de Gama que lhe dá uma identidade. Quanto aos deuses, Camões também indica naquela passagem, que tem sido muitas vezes entendida como uma alusão à censura inquisitorial, mas que escusa de o ser – quando os deuses se dizem frutos da imaginação humana -, pode ser que seja um gesto à ortodoxia; por outro lado, é também uma profunda verdade que os deuses têm uma função metafórica da psicologia humana. Ora, o que Camões está a representar naquele embate entre Baco e Vênus, por um lado, e os vários aliados, por outro, são as potencialidades humanas e, portanto, nesse sentido, essa é a psicologia humana que está a ser coletivamente representadas através desses símbolos que são os deuses. Eu acho que a verdade psicológica dos Lusíadas é profunda, mas não é individualizada. Não se trata de um poema da época do romantismo, em que estamos à procura de uma verdade psicológica dos indivíduos, mas sim de estruturas de verdade psicológica, o que é diferente. E nesse sentido, quando Camões dá graças a Vênus, que é uma mistura de tudo, da Virgem Maria, da Vênus sagrada da Antiguidade e da Vênus prostituta, e põe tudo isso junto, ele está a dar as três faces da mulher. Ora, psicologicamente isto está certo, não é?”.
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/10/1987 – Nilo Scalzo e Teresa Montero Otondo |