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Grandes Entrevistas

Ezra Poud

 

Extraído de COWLEY, Malcolm. Escritores em ação. R.Janeiro: Paz e Terra, 1968. (Entrevistado por Donald Hall)

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Ezra Pound, nasceu numa região então pouco explorada de Idaho, em 30 de outubro de 1885, foi educado na Universidade da Pennsylvania e no Hamilton College. Seu primeiro livro de versos foi publicado em Veneza, no ano de 1908 e, desde então, ele lançou mais de noventa volumes de poesia, crítica  e traduções - particularmente tradução de versos.

 

Quando jovem, Pound viveu primeiro em Londres e, depois, em Paris, em princípios da década 1920.  Mais tarde, transferiu-se para Rapallo, na Itálía, onde permaneceu até que a guerra o desalojasse de lá.  Na juventude, foi, durante muitos anos, editor estrangeiro da revista Poetry. 

 

Durante anos, preocupou-se intensamente com os sistemas monetários nacionais, por ele considerados como a pedra angular de toda a ordem social.  Durante a Segunda Guerra Mundial, viveu na Itália, proferindo palestras pelo rádio denunciando a participação americana na guerra contra o Eixo.  Uma das notas mais negras na história americana foi o tratamento que Pound recebeu ao ser feito prisioneiro de guerra, na primavera de 1945.  No "Centro de Adestramento Militar" americano, em Pisa, foi ele encerrado numa jaula feita de tiras de metal de pistas de aterragem de aviões, de piso de concreto, tendo somente cobertores por cama, bem como uma lâmpada incessantemente acesa. Decorridas três semanas, sofreu um colapso nervoso, acompanhado de amnésia parcial e claustrofobia. Ao todo, foi mantido em prisão estritamente solitária mais de seis meses, tendo sofrido, durante esse tempo, repetidos ataques de histeria e terror. Depois disso, foi levado para Washington, julgado por traição e considerado louco. Após quatorze meses de permanência no Hospital Saint Elizabeth, retornou, em 1958, para a Itália, onde agora reside em companhia de sua filha.

 

O principal trabalho poético de Pound, Os cantos, começou a aparecer em 1917, sendo que a última parte do mesmo, Thrones, foi publicado em 1959.  Seus poemas mais curtos foram reunidos no volume intitulado Personae (l926, edição aumentada em 1950). Love poems oí ancient Egypt, uma tradução, foi publicado em 1962 e, From Confucius to Cummings, uma antologia de versos editada por Marcella Spann, em 1963.

 

Desde seu retôrno à Itália, Ezra Pound tem passado a maior parte do tempo no Tirol, no Castelo Brunnenberg, juntamente com sua esposa, sua filha Mary, seu genro, o Príncipe Boris de Rachewiltz, e seus netos. As montanhas, porém, nesse recanto campestre, são frias no inverno, e Mr. Pound gosta do sol. O entrevistador estava prestes a deixar a Inglaterra com destino a Merano, em lins de fevereiro, quando um telegrama o deteve à porta: "Merano bloqueada pela neve.  Venha para Roma."

 

Pound estava sozinho em Roma, ocupando um aposento no apartamento de um seu velho amigo chamado Ugo Dadone. Era comêço de março, e o tempo estava excepcionalmente quente. As janelas e venezianas do quarto de Pound estavam escancaradas para os ruídos da Via Angelo Poliziano. O entrevistador sentou-se numa ampla poltrona, enquanto Pound passava, irrequieto, de uma poltrona para o sofá e, deste, de novo para a poltrona. Viam-se, no quarto de Pound duas valises e três livros: os Cantos, de Faber, um Confúcio, e a edição de Chaucer, de Robinson, que ele estava novamente relendo.

Nos momentos sociais da noite - jantar no Crispi's, um passeio entre as cenas de seu passado, sorvete num café - Pound caminhava com o vigor arrogante de um rapaz.  Com seu grande chapéu, sua sólida bengala, seu cachecol amarelo em torno do pescoço e seu sobretudo, que ele arrastava como uma capa, era de novo o leão do Quartier Latin.  Súbito, o seu talento para o arremedo se manifestou, e uma gargalhada agitou suas barbas grisalhas.

Durante as horas da entrevista, que durou três dias, ele falou cansadamente, e as perguntas, às vezes, o deixavam exausto. Pela manhã, quando o entrevistador voltava, Mr. Pound mostrava-se ansioso por rever as falhas da véspera.

- O senhor já se encontra quase no final dos Cantos, e isso me faz cogitar acerca do começo dos mesmos.  Em 1916, o senhor escreveu uma carta, na qual falou em tentar escrever uma versão de Andreas Divus em ritmos de Seafarer.  Isso parece ser uma referência ao Canto 1. Acaso

Acho que comecei os Cantos ali por 1904.  Eu tinha vários planos, começando em 1904 ou 1905. O problema consistia em conseguir uma forma - algo bastante elástico que se adaptasse ao material necessário. Teria de ser uma forma que não excluísse o que quer que fosse simplesmente por não se adaptar aos poemas. Nos primeiros esboços, um rascunho do atual Canto primeiro era terceiro. Evidentemente, a gente não possui um belo e pequeno mapa como aquele que a Idade Média tinha do Céu. Somente numa forma musical caberia tal material, e o universo confuciano, tal como o vejo, é um universo de tensões e reações recíprocas,

 

- Seu interesse por Confúcio começou em 1904?

 

Não, a primeira coisa era esta: seis séculos não haviam sido rotulados. Era uma questão de lidar com material que não se encontrava na Divina Comédia. Victor Hugo fez uma Légende des Siècles que não era uma computação, mas apenas pedaços de história ligados entre si. O problema consistia em construir-se um circulo de referência – conduzir-se o espírito moderno até o espírito medieval, com inundação sobre inundação de cultura clássica despejada sobre ele desde a Renascença. Tratava-se da psique, se quiser. Tinha-se de abordar nosso próprio tema.

 

- Já deve fazer trinta anos que o senhor  escreveu qualquer poesia, afora os Cantos, com exceção dos poemas de Alfred Venison. Por que isso?

 

Cheguei ao ponto em que, à parte algum ligeiro impulso ocasional, o que eu tinha para dizer se adaptava plano ao geral. Joguei muito trabalho fora, pois a gente se sente atraída por um personagem histórico e, depois, verifica que ele não funciona dentro da forma, não encerra um valor necessário. Tenho tentado tornar históricos os Cantos (veja G. Giovannini, na parte de referência da história com a tragédia. Dois artigos, com espaço de dez anos, em certo periódico filológico, que não são fonte de material, mas importantes), mas não ficção. O material que se quer introduzir nem sempre se adapta. Se a pedra não é bastante rija para manter a forma, tem de ser desprezada.

- Quando o senhor, agora, escreve um Canto, de que maneira o planeja? Segue um curso especial de leitura para cada um deles?

Não se está, necessariamente, a ler. Trabalha-se, creio eu, no que a vída nos proporciona. Nada sei acerca de método. O o que é mais importante que o como.

 

- Não obstante, quando o senhor era jovem, seu interesse pela poesia se concentrava na forma. Seu profissionalismo, bem corno sua dedicação à técnica, tornou se proverbial. Nos últimos trinta anos, o senhor trocou seu interesse pela forma por um interesse pelo conteúdo. Essa mudança se baseou em algum princípio?

 

Creio que já abordei isso. A técnica é o teste da sinceridade. Se a coisa não é digna de técnica para ser dita é de valor inferior. Tudo deve ser encarado corno exercício Richter, em seu Tratado sobre a harmonia, como o senhor sabe, diz: "Há os princípios de harmonia e contraponto; ele nada têm que ver com composição, que é uma atividade inteiramente à parte." A afirmação, que alguém fez, de que não se podia escrever certas formas de canzoni provençais em inglês, é falsa.  A questão de saber se isso era aconselhável ou não, era outro assunto. Quando não havia o critério da lin- guagem natural sem inversão, tais formas eram naturais, e elas as realizavam como música.  Em inglês, a música é de natureza limitada. Tem-se a perfeição francesa de Chaucer, a  perfeição italiana de Shakespeare - e temos Campion e Lawes. Não creio que eu tenha chegado a pensar nessa espécie de forma antes de me deparar com os coros de Trachiniae. Não sei se cheguei, na verdade, a algo, mas aquilo me pareceu um prolongamento das gamas. Pode ter sido uma ilusão. Estivemos sempre interessados na mudança de intensidade na união de motz et son, do mundo e da melodia

 

- Acaso a composição dos Cantos exaure, agora, todo o seu interesse técnico, ou o seu trabalho de traduções, com, o da Trachiniae, a que o senhor se referiu, satisfaz sua necessidade de trabalho?

 

A gente vê que um trabalho deve ser feito e entrega-se a ele.  As Trachiniae provêm da leitura das peças Fenollosa Noh para a nova edição, bem como do fato de eu desejar ver o que aconteceria a uma peça grega, dado o mesmo meio e a esperança de que ela fosse encenada pela companhia Minorou. A visão de Cathay em grego, assemelhando- se à poesia, estimulou as tendências contrárias.

 

- Acha que o verso livre seja, particularmente, uma forma americana?  Estou pensando no que William Carlos Williams provavelmente faz e no verso iâmbíco em inglês.

 

Agrada-me a frase de Eliot: "Verso algum é livre para quem deseja fazer um bom trabalho." Penso que os melhores versos livres provêm de uma tentativa no sentido de se voltar a um metro quantitativo. Creio que os mesmos podem ser não ingleses, sem que sejam, especificamente, americanos.  Lembro-me de Cocteau a tocar bateria, numa jazz band, como se se tratasse de um problema matemático muito difícil.

Digo-lhe o que me parece ser uma forma americana: os parênteses empregados por james. Percebe-se que a pessoa com quem se está falando não deu os passos diferentes, e a gente se volta para elas. Na verdade, os parênteses de James aumentaram, hoje, imensamente.  Eis aí algo que julgo positivamente americano.  A luta que alguém tem, quando conhece outro indivíduo que possui muita experiência, para encontrar o ponto em que ambas as experiências se toquem, a fim de que eles saibam acerca do que estão falando.

 

- Sua obra encerra grande âmbito de experiência, bem como de forma. Qual lhe parece a maior qualidade que um poeta possa ter? Trata-se de algo formal ou de uma qualidade de pensamento?

 

Não sei se se pode colocar as qualidade necessárias em ordem hierárquica, mas ele deve possuir uma curiosidade constante, o que, naturalmente, não faz dele um escri- tor, mas, se não possuir isso, murchará. E a questão de fazer algo a respeito depende de uma energia persistente. Um homem como Agassiz jamais se sente enfadado, jamais se sente cansado. A passagem desde a recepção do estímulo aos registro, à correlação, é o que toma toda a energia de uma existência.

 

- Acha que o mundo moderno mudou as maneiras em que a poesia pode ser escrita?

 

Há uma grande competição, como jamais houve antes. Tomemos, por exemplo, o lado sério de Disney, o lado confuciano de Disney.  Isso se deve ao fato de ele ter-se valido de um elemento moral, como o faz em Perri, aquele filme do esquilo, onde a gente tem os valores da coragem e ternura afirmados de um modo que toda a gente pode com- preender.  Há aí um gênio absoluto. Tem-se uma correlação maior da natureza do que a que se teve desde o tempo Alexandre, o Grande. Alexandre ordenava aos pescadores que se encontrassem entre os peixes algo interessante, específico, deviam comunicá-lo a Aristóteles.  E, com tal correlação,a ictiologia foi levada ao ponto científico em que permaneceu durante dois mil anos. Hoje, o homem conseguiu com a câmera uma enorme correlação entre os indivíduos. Essa capacidade de estabelecer contato constitui tremendo desafio à literatura. Suscite a questão daquilo que precisa ser feito e que é supérfluo.

 

- Talvez constitua, também, uma oportunidade, Quando o senhor era jovem, e até mesmo através dos Cantos, mudou, repetidamente, seu estilo poético. Jamais contentou em fixar-se em parte alguma. Acaso buscava, co cientemente, expandir seu estilo?  Acaso o artista precisa estar sempre em movimento?

 

Acho que o artista tem de estar em movimento. A gente está tentando traduzir a vida de um modo que não aborreça, anotando o que vê.

 

- Pergunto a mim mesmo o que pensa o Senhor dos movimentos contemporâneos.  Não tenho visto observações suas a respeito de poetas mais novos que Cummings, exceto Bunting e Zukovsky.  Outras coisas devem tê-lo ocupado, creio eu.

 

Não se pode ler tudo.  Eu estava procurando encontrar inumeráveis fatos históricos, e não se pode enxergar pela parte de trás da cabeça. Não creio que exista qualquer registro de homem capaz de criticar indivíduos que vieram depois dele.É uma pura questão da quantidade de leitura que um homem possa realizar.

 

Não sei se se trata de algo seu ou de uma gema que ele recolheu, mas, de qualquer modo, uma das coisas que Frost disse em Londres, ali por 1912, foi: "Sumário da prece: "Oh, Deus, dê atenção a mim." E essa é a maneira de nos aproximarmos de escritores mais jovens - e não, precisamente, da divindade! - e, em geral, temos de limitar nossas leituras aos poetas jovens que nos são recomendados, pelo menos, por outro poeta jovem, como fiador... Claro que uma rotina dessa espécie poderia conduzir a uma conspiração, mas, de qualquer modo... Quanto a criticar os mais jovens, não se tem tempo de fazer um juízo comparativo.  As pessoas em quem a gente se apóia não se medem entre si. Vejo, agora, um movimento, mas ... Quanto às condições gerais, há, indubitàvelmente, algo de vivificante.  E Cal (Robert) Lowell é muito bom.

 

- Durante toda sua vida, o senhor deu conselhos aos jovens.  Tem, agora, algo de especial para dizer-lhes?

 

Sim: que aumentem sua curiosidade e não lancem mão de truques.  A mera anotação de uma dor de barriga, ou o simples despejar de uma lata de lixo, não bastam.  O jornal estudantil Punchbowl, da Universidade da Pennsylvania, tinha como lema: "Qualquer cretino de uma figa pode ser espontâneo."

 

- O senhor escreveu, certa vez, que tinha quatro sugestões úteis provenientes de predecessores literários, que eram Thomas Hardy, William Butler Yeats, Ford Madox Ford e Robert Bridges. Quais eram essas sugestões?

 

A de Bridges era a mais simples: uma advertência contra os homófonos.  A de Hardy referia-se ao grau em que ele se concentrava no tema, e não na maneira de dizer

as coisas. A de Ford referia-se, em geral, à limpidez da linguagem.  E o senihor dliz que Yeats era o quarto?  Bem, Yeats, ali por 1908, tinha escrito simples poemas líricos, nos quais não se afastava da ordem natural das palavras.

 

- O senhor foi secretário de Yeats em 1913 e 1914.  Que espécie de coisas fazia para ele?

 

Meu trabalho consistia quase que só em ler em voz alta.  Dawn in Britain, de Doughty, e coisas assim.  E discutir com ele.  Os irlandeses gostam da contradição.  Ele ten­tou aprender esgríma aos quarenta e cinco anos, o que foi divertido.  Esgrimia o florete como uma baleia. Dava, às vezes, a impressão de ser ainda mais idiota do que eu.

 

- Existe uma controvérsia acadêmica acerca de sua influência sobre Yeats. Acaso o senhor "colaborava" nos poemas que ele escrevia?  Cortou alguns dos poemas dele, como fêz com The Waste Land?

Não me lembro disso.  Tenho a certeza de que fiz objeções a determinadas expressões. Certa vez, em Rapallo, fiz todo o possível para impedir que ele imprimisse determinada coisa. Disse-lhe que aquilo não valia um caracol. Tudo o que ele fez foi imprimi-Ia, afirmando, no prefácio, que eu dissera que aquilo não valia um caracol.

Lembro-me do tempo em que Tagore se pôs a garatujar nas margens de suas provas tipográficas, e eles lhe disseram que aquilo era arte. A coisa constituiu um verdadeiro show em Paris. "Acaso isto é arte?" Ninguém se mostrava muito entusiasmado a respeito de tais garatujas, mas - claro - muita gente mentiu.

 

Quanto ao que se refere à mudança verifícada em Yeats, creio que Ford Madox Ford talvez possa ser um tanto responsável por ela. Yeats jamais aceitaria conselhos de Ford, mas acho que Fordie o ajudou, através de mim, no sentido de tentar fazer que ele adotasse uma maneira mais natural de escrever.

 

- Acaso alguém o ajudou tanto em seu trabalho quanto o senhor ajudou os outros?  Quero dizer: por meio de críticas ou cortes.

 

À parte Fordie, rolando indecorosamente pelo chão, agarrando a cabeça com as mãos e, certa feita, chegando mesmo a gemer, não creio que alguém me tenha ajudado quanto aos meus manuscritos. Os trabalhos de Ford pareciam, então, muito desleixados, mas ele conduziu a luta contra os arcaísmos terciários.

 

- O senhor viveu estreitamente ligado a artistas visuais - Gaudier-Brzeska e Wvndham Lewis no movimento vorticista e, mais tarde, a Picabia, Picasso, e Brancusi.  Acaso isso teve algo que ver com o senhor como escritor?

 

Não creio. Olhávamos os quadros nas galerias e é possível que talvez houvéssemos encontrado algo. O poema The came of chess revela a influência da arte moderna abstrata, mas o vorticismo, do meu ponto-de-vista, era uma renovação do sentido da construção. A cor morrera, e Manet e os impressionistas ressuscitaram-na.  Depois, o que eu chamaria senso de forma, se achava empanado, e o vorticismo, diferente do cubismo, foi uma tentativa no sentido de reviver o senso da forma - a forma que se tinha em De prospettive ingendi, de Piero della Francesca, seu tratado acerca das proporções e da composição. Comecei com a idéia das formas comparativas, antes de partir dos Estados Unidos. Um colega chamado Poole escreveu um livro sobre composição.  Quando cheguei a Londres, tinha algo na cabeça, e já ouvira falar de Catulo antes de ter ouvido falar na moderna poesia francesa. Há um bocado de biografia que talvez pudesse ser retificada.

 

- Tenho pensado nas suas atividades literárias na América, antes de o senhor vir para a Europa. A propósito: quando foi que veio pela primeira vez para cá?

 

Em 1898. Aos doze anos de idade. Com minha tia-avó.

 

- Já lia, nessa época, poesia francesa?

 

Não. Creio que estava lendo a Elegy in a Country Churchyard ou coisa semelhante.  Não, não estava lendo os poetas franceses. Iria começar a estudar latim no ano seguinte.

 

- Entrou para o college aos quinze anos, não foi?

 

Para livrar-me da convocação na Academia Militar.

 

- De que modo começou a ser poeta?

 

Meu avô, por um lado, costumava corresponder-se em verso com o presidente do banco local.  Minha avó e seus irmãos, por outro, costumavam corresponder-se, em verso, em suas cartas. Tinha-se como assente que toda gente deveria escrever versos.

 

- Apreendeu algo, em seus estudos universitários, que o tenha ajudado como poeta?  Creio que o senhor foi estudante pelo espaço de sete ou oito anos

 

Apenas seis. Bem, seis anos e quatro meses. Eu passava o tempo todo a escrever, principalmente como estudante graduado. Comecei, em meu ano de calouro, por estudar o Brut, de Layamon, e latim.  Entrei para o college devido ao meu latim; foi a única razão pela qual eles me aceitaram.  Eu tinha a idéia, aos quinze anos, de fazer um exame geral. A questão de saber se eu era ou não poeta era algo que competia aos deuses decidir, mas, pelo menos, coube-me a mim descobrir o que tinha sido feito.

 

- O senhor ensinou durante quatro meses apenas, se bem me lembro. Mas o senhor sabe que os poetas, nos Estados Unidos, são agora, em sua maioria, professores. Tem acaso alguma idéia acerca da relação entre ensinar na universidade o escrever versos?

 

Trata-se do fator econômico. A gente precisa, de algum modo, de alguma renda.

 

- Como conseguiu arranjar-se todos esses anos na Europa?

 

Oh, Santo Deus! Foi um milagre dos céus. Ganhei, de outubro de 1914 a outubro de 1915, 42 libras e 10 xelins. Esses algarismos estão claramente gravados em minha memória... Nunca fui muito bom escritor de revistas. Fiz, certa vez, um artigo satírico para Vogue, creio eu. Acerca de um pintor que eu não admirava. Acharam que possuía justamente o tom preciso e, então, Verhaeren morreu, e eles me pediram que escrevesse uma nota sobre Verhaeren. E eu lhes respondi:

 

- Vocês querem um belo, brilhante e vivo obituário acerca do homem mais sombrio da Europa.

- Quem era ele, um melancólico maldito?

- Sim - respondi. - Escrevia sobre camponeses.

-Camponeses ou faisões?(1)

- Camponeses.

Oh, não creio que devamos tocar nisso. Foí assím que desperdicei minha capacidade de ganhar dinheiro, por não saber calar a boca.

 

- Li em algum lugar... creio que escrito pelo senhor mesmo... que, certa vez, tentou escrever um romance.  Obteve algum resultado?

 

Felizmente isso foi parar na lareira, em Langham Palace. Penso que houve duas tentativas, antes que eu tivesse qualquer idéia acerca do que deveria ser um romance.

 

- E tiveram elas alguma coisa que ver com Hugh Selwyn Mauberley?

 

Essas foram escritas muito antes de Mauberley. Mauberley veio mais tarde, mas foi a tentativa precisa no sentido de reduzir o romance ao tamanho do verso. É, na realidade, Contacts and Life.  Wadsworth parecia achar Propertius difícil porque era a respeito de Roma, de modo que se aplicou a mesma coisa ao mundo exterior contemporâneo.

 

- O senhor disse que foi Ford quem o ajudou a adquirir uma linguagem natural, não foi? Voltamos, pois, de novo a Londres.

 

A gente estava à procura de uma linguagem simples e natural, e Ford, sendo dez anos mais velho, acelerou o processo em direção da mesma. Vivíamos numa discussão contínua a respeito disso. Ford conhecia a melhor gente que lá havia chegado antes dele e, como o senhor percebe, ele não tinha ninguém com quem se entreter, até que Wyndhan, eu e minha geração aparecemos. Ele era positivamente contrário ao dialeto, digamos, de Lionel Johnson e Oxford.

 

- Os senhores estiveram pelo espaço de duas ou três décadas, pelo menos, em contato com todos os principais escritores ingleses da época, bem como com uma porção de pintores, escultores e músicos. De todas essas pessoas, qual foi a mais estimulante para o senhor como artista?

 

Eu me avistava mais com Ford e Gaudier, creio.  Eu deveria responder que as pessoas sobre as quais escrevi eram as mais importantes para mim. Quase não há o que se rever quanto a este ponto. Talvez eu possa ter limitado minha obra, bem como o interesse por ela, concentrando-me na determinada inteligência de certas pessoas, ao invés de fixar-me no caráter e na personalidade completos de meus amigos. Wyndham Lewis sempre dizia que eu jamais via as pessoas, pois nunca notava como eram más - que bons filhos da puta eram tais indivíduos. Eu não estava, de modo algum, interessado nos vícios dos meus amigos, mas em suas inteligências.

 

- James seria uma espécie de padrão para o senhor em Londres?

Quando ele morreu, teve-se a impressão de que não se tinha mais ninguém a quem perguntar coisa alguma.  Até então, a gente achava que alguém devia saber.  Depois de meus sessenta e cinco anos, tive grande dificuldade em perceber que eu era mais velho do que James quando o conheci.

- Conheceu pessoalmente Remy de Gourmont? O senhor tem se referido a ele com freqüência.

Só por carta.  Havia uma carta, que Jean de Gourmont também considerava importante, na qual ele dizia: "Franchement d’écrire ce qu'on pense, seul plaisir d'un écrivain."

 

- É surpreendente que o senhor pudesse chegar à Europa e associar-se rapidamente aos melhores escritores vivos. Conheceu alguns dos poetas que escreviam na América antes de sua partida? Robinson lhe significava alguma coisa?

 

Aiken tentou fazer que eu me interessasse por Robinson, mas não o conseguiu. Isso ocorreu em Londres, também. Então arranquei dele que havia nele um camarada de Harvard a escrever coisas divertidas. Mr. Eliot apareceu, mais ou menos, um ano depois. Não; eu diria que, ali por 1900, tinha-se Carman e Hovey, Carwine e Vance Cheney. A impressão, então, era a de que as coisas americanas eram tão boas, sob qualquer aspecto, quanto as inglesas. E tinha-se as contrafações de Mosher das edições inglesas. Não, fui para Londres porque achava que Yeats sabia mais de poesia do que qualquer outra pessoa. Eu vivia minha vida, em Londres, indo visitar Ford à tarde e Yeats à noite. Mencionando um ao outro, sempre se podia começar uma discussão. Esse era o exercício. Fui estudar com Yeats e verifiquei que Ford discordava dele. De modo que continuei a discutir com eles pelo espaço de vinte anos.

 

- Em 1942, o senhor escreveu que discordava de Eliot chamando um ao outro de protestante.  Gostaria de saber quando o senhor e Eliot divergiram.

 

Oh, Eliot e eu começamos a divergir desde o começo. O que há de divertido numa amizade intelectual é que a gente diverge quanto a isto ou aquilo, e concorda quanto a alguns pontos. Eliot, tendo tido, durante toda a vida, a paciência cristã da tolerância ou coisa que o valha, e trabalhando bastante arduamente, deve ter me achado um sujeito muito difícil. Desde que nos conhecemos, começamos a discordar a respeito de muitas coisas. Também concordávamos acerca de algumas poucas coisas, e eu suponho que nós ambos devamos ter tido razão acerca de uma ou outra coisa.

 

- Bem, houve algum ponto em que, poética e intelectualmente, se sentiram mais divididos do que tinham estado?

 

Há todo o problema da relação entre o cristianismo e o confuncianismo, bem como todo o problema dos diferentes ramos do cristianismo.  Há a luta a favor da ortodoxia - Eliot a favor da Igreja, eu a bombardear em torno a favor dos teólogos particulares. Em certo sentido, a curiosidade de Eliot, dir-se-ia, parecia estar focalizada num número menor de problemas. Até mesmo isso é demasiado para se dizer. A verdadeira perspectiva da geração experimental consistia, toda ela, numa questão de ethos individual.

 

- O senhor acha que, como poetas, experimentavam uma divergência baseada em razões técnicas, sem relação com os temas abordados?

 

Eu diria que a divergência era, a princípio, uma diferença quanto aos temas. Ele, indubitavelmente, possuía uma linguagem natural. Quanto à linguagem teatral, ele parece-me ter feito contribuição muitíssimo importante. E ter sido capaz de estabelecer contato com um milieu existente e com um estado de compreensão existente,

 

- Isso me lembra duas óperas - Villon e Cavalcanti - que o senhor escreveu.  Como foi que veio a compor música?

 

A gente desejava a palavra e a música.  Desejava que a grande poesia fosse cantada, e  a técnica do libretto de ópera inglês não era satisfatória. Desejava-se, com a qualidade dos textos de Villon e Cavalcanti, obter algo mais amplo que a simples lírica.  Eis tudo.

 

- Suponho que seu interesse, no sentido de que as palavras fossem cantadas, foi estimulado particularmente pelo seu estudo da Provença. Acha, talvez, que sua  des- coberta da poesia provençal constituiu sua maior "brecha" Ou, talvez, tenham sido os manuscritos Fenollosa?

 

O provençal começou a interessar-me desde muito cedo, de modo que não construiu, na verdade, uma descoberta.  O Fenollossa foi uma rajada de vento - e a gente lutava contra a própria ignorância.  Tinha-se conhecimento íntimo das notas de Fenollosa e a ignorância de uma criança de cinco anos.

 

- De que modo Mrs. Fenollosa veio a descobri-lo?

 

Bem, eu a conheci em casa de Sarojini Naudu, ela me disse que Fenollosa tinha vivido em oposição a todos professores e academias, e que ela vira alguns de meus escritos e achava que eu era a úníca pessoa que poderia terminar aquelas notas com Ernest teria gostado que se fizesse, Fenollosa percebeu o que precisava ser feito, mas não teve tempo de terminar seu trabalho.

 

- Permita-me mudar agora de assunto e fazer-lhe algumas perguntas de caráter mais biográfico que literário. Li que o senhor nasceu em Hailey, Idaho, em 1885. Suponho que esse era um lugar bastante selvagem naquela época, não era?

 

Saí de lá aos dezoito meses de idade e não lembro de qualquer selvageria.

 

- O senhor não cresceu em Hailey?

 

Não.

- Que estava sua famílía fazendo lá, quando o senhor nasceu?

 

Meu pai inaugurou lá o Departamento de Terras do Governo. Eu passei a infância  perto de Filadélfia, num subúrbio.

 

- Quer dizer que os indios selvagens- do Oeste não eram...

 

O indio selvagem do Oeste é apócrifo, e o técnico em minérios da casa de cunhagem não era um dos mais notáveis bandidos da fronteira.

 

- Acho que foi verdade que seu avô construiu uma ferrovia. Como foi essa história?

 

Bem, ele levou a ferrovia até Chippewa Falls e eles não o deixaram estender mais os trilhos. Isso está nos Cantos. Ele partiu, então, para o norte do Estado de New York e encontrou trilhos numa estrada de ferro abandonada que lá havia, comprou-os e fez que os mesmos fossem transportados; depois, valeu-se do seu crédito junto aos lenhadore para fazer a estrada chegar até Chippewa Falls.  O que gente aprende em casa é diferente do que se aprende na escola

 

- Seu interesse particular pela cunhagem começou com o trabalho do seu pai?

 

Pode-se falar muito a esse respeito. Os departamentos governamentais eram então informais, embora não se saiba de qualquer outro garoto que haja lá entrado para visitá-los.  Hoje, os visitantes são conduzidos através de túneis de vidro e vêem as coisas de longe, mas, naquela época, a gente podia ser conduzido à fundição e ver o ouro empilhado no cofre. Ofereciam-nos um grande saco de ouro, dizendo-nos que podíamos levá-lo. Mas a gente não conseguia erguê-lo do lugar.

 

Quando os democratas, finalmente, voltaram ao governo, tornaram a contar todos os dólares de prata - quatro milhões de dólares em prata. Todos os sacos haviam apodrecido em enormes abóbodas, e estavam carregando o dinheiro e colocando-o, com pás maiores que as de carvão, nas máquinas de contar. Esse espetáculo de moedas removidas como se fossem camadas humíferas, aqueles sujeitos nus até à cintura lançando as moedas, por meio de pás, nas chamas de gás - era coisa que bulia com a imaginação da gente. Há, ainda, toda a técnica de se fazer dinheiro metálico. Em primeiro lugar, o exame da prata requer muito mais habilidade que o exame do ouro.  O ouro é simples. É pesado, depois refinado e pesado de novo. Pode-se saber o grau do metal por meio de pesos apropriados. Mas o teste da prata constitui uma solução nebulosa; a exatidão do olho, ao medir e a espessura da nebulosidade, constituem uma percepção estética, como o senso crítico. Agrada-me a idéia da fínura do metal, que nos leva, por analogia, ao hábito de testar manifestações verbais.  Naquela época, barras de ouro, bem como espécimes de piritas tidas como ouro, eram levadas ao escritório de meu pai.  A gente ouvia a conversa sobre o último sujeito que trouxera uma barra de ouro que não passava de pura pirita.

- Sei que o senhor considera a reforma monetária como a chave de um bom governo.  Desejaria saber mediante que processo o senhor passou dos problemas estéticos para os problemas governamentais. Acaso a Grande Guerra, em que morreram tantos de seus amigos, foi responsável por isso?

A Grande Guerra chegou como uma surpresa e, certamente, ver os ingleses - essa gente que jamais fez coisa alguma - unirem-se e lutarem, foi algo sumamente impressionante. Mas eles morreram, e a gente passou os vinte anos seguintes tentando evitar a Segunda Guerra. Não sei dizer exatamente quando começou meu estudo sobre o governo.  Acho que a redação da New Age me ajudou a encarar a guerra não como um acontecimento isolado, mas como parte de um sistema, uma guerra após outra.

 

- Um ponto de ligação entre a literatura e a política, que o senhor estabelece em seus escritos, interessa-me particularmente. Em A.B.C. of Reading diz o senhor que os bons escritores são aqueles que mantêm eficiente a linguagem, e que essa é a sua função.  O senhor desassocia essa função do partido político. Pode um homem pertencente ao partido errado usar eficientemente a linguagem?

 

Pode. Aí é que está toda a complicação! Uma arma é igualmente boa, não importa quem a usa.

 

- Pode um instrumento ordeiro ser usado para criar desordem?  Suponhamos que uma boa linguagem seja usada para fomentar um mau governo?  Acaso um mau govêrno não torna má a linguagem?

 

Sim, mas a má linguagem está destinada a fazer, ademais, um mau governo, enquanto a boa linguagem não está destinada a fazer um mau governo. Isso, também, é puro Confúcio: se as ordens não forem claras, não podem ser executadas. As leis de Lloyd George eram tal mixórdia, que os advogados jamais sabiam o que significavam.  E Talleyrand proclamou que os políticos mudavam o sentido das palavras entre uma e outra conferência. Os meios de comunicação se rompem, e é disso que estamos sofrendo hoje em dia. Estamos suportando o esforço de se trabalhar sobre o subconsciente sem que apelemos para a razão.  Repetem, com música, algumas vezes, uma denominação qualquer, e, depois, a música sem a denominação, para que a música no-la dê. Penso no assalto. Sofremos do uso da linguagem a ocultar o pensamento e a impedir todas as respostas diretas e vitais. Há o uso da linguagem dialética, de propaganda, destinada simplesmente a ocultar e a iludir.

 

- Onde terminam a ignorância e a inocência, e começa a chicana?

 

Há a ignorância natural e a ignorância artificial. Eu diria que, presentemente, a ignorância artificial é de cerca de oitenta e cinco por cento.

 

- Que espécie de ação a gente poderia tomar?

 

A única chance de vitória contra a lavagem de cérebro é o direito de cada homem de ter suas idéias julgadas uma de cada vez. Jamais se chega à clareza, enquanto se tem tais idéias empacotadas, enquanto uma palavra é empregada por vinte e cinco pessoas em vinte e cinco maneiras diferentes. Essa me parece ser a primeira luta, se se quiser que sobre algum intelecto. É duvidoso que se permita à alma individual sobreviver de algum modo. Hoje, temos um movimento budista que tem tudo, exceto Confúcio em seus ensinamentos. Uma Circe indiana de negação e dissolução.

 

Defrontamo-nos com um número enorme de mistérios. Há o problema da benevolência, o ponto em que a benevolência deixou de ser eficaz. Eliot diz que eles passam o tempo tentando imaginar sistemas tão perfeitos, que ninguém precisará ser bom.  A gente não pode esquivar-se a uma porção de indagações feitas nesse ensaio de Eliot, como, por exemplo, a questão de saber se existe qualquer possibilidade de mudar-se a escala de valores de Dante pela escala de valores de Chaucer.  Se existe - até que ponto?  As pessoas que perderam a reverência, perderam muito.  Foi esse o ponto em que rompi com Tiffany Thayer. Todas essas palavras imponentes se convertem em chavões.

 

Há o mistério da dispersão - o fato de as pessoas que, presumivelmente, se entendem, se acharem geograficamente dispersas.  Um homem que se adapta ao seu meio, como ocorre com Frost, deve ser considerado um homem feliz.

 

Oh, a sorte de um homem como Mavrocordato, que está em contato com outros estudiosos, de modo que existe algum lugar em que ele pode confirmar determinado pormenor! Quanto a certos pontos, em que desejo verificação, há um sujeito chamado Dazzi, em Veneza, para quem escrevo e que me surge com uma resposta, como, por exemplo, para uma questão que pudesse referir-se à Doação de Constantino.  Mas as vantagens que, segundo se supõe, auferimos na universidade - onde existem outras pessoas que contrôl (2) a opinião ou que contrôl os dados - eram muito grandes.  Claro que tenho procurado, há mais de dez anos, fazer com que qualquer membro de uma faculdade americana se refira a qualquer outro membro de sua mesma faculdade, em seu próprio departamento ou fora dele, cuja inteligência ele respeite ou com quem ele discuta assuntos sérios.  Num dos casos, um desses senhores lamentava o fato de que outro indivíduo havia deixado a faculdade.

 

Não tenho conseguido obter respostas diretas de pessoa acerca de questões que me pareciam de importância vital.  Isso pode ter sido devido à violência ou obscuridade com que eu fazia as perguntas.  Não raro, penso eu, a chamada obscuridade não é de linguagem, mas devido ao fito de a outra pessoa não ser capaz de perceber por que razão a gente está dizendo uma coisa.  O ataque contra Endymioni, por exemplo se tornou complicado devido ao fato de Gífford e companhia não conseguirem perceber por que razão, com a breca, Keats o estava fazendo.

Outra luta tem sido a de manter o valor de um caráter local e particular, de uma determinada cultura, nesta medonha voragem, nesta terrível avalancha rumo à uniformidade Toda a luta tem por objetivo a preservação da alma individual O inimigo é a supressão da história; contra nós, há a desnorteante propagando e "lavagem de cérebro", luxo e violência. Sessenta anos atrás, a poesia era a arte do pobre: um homem nos limites da civilização, ou Frémont, a partir com um texto grego no bolso. Um homem que quisesse o melhor, poderia consegui-lo numa fazenda solitária. Então, havia o cinema; agora, existe a televisão.

- A sua ação política, de que toda a gente se lembra, foram declarações pelo rádio feitas na Itália durante a guerra.  Quando o senhor proferia tais palestras tinha consciência de que estava infringindo a lei americana?

 

Não, fiquei inteiramente surpreso. Como vê, eu tinha aquela promessa.  Concediam-me a liberdade do microfone duas vezes por semana. "Não lhe pedirão que diga coisa alguma contrária à sua consciência ou ao seu dever como cidadão americano”. Julguei que isso abrangia tudo.

 

- A lei da traição não se refere a "conceder ajuda e conforto ao inimigo", e o inimigo não é o país com quem se está em guerra?

 

Eu achava que estava lutando em favor de uma questão condicional. Quero dizer: pode ser que eu estivesse completamente maluco, mas sentia, sem dúvida, que não estava cometendo traição. Wodehouse também, falou no rádio, mas os britânicos não o proibiram. Ninguém me disse também que não o fizesse. Não houve comunicação alguma, até o colapso, de que as pessoas que haviam falado pela rádio seriam submetidas a processo.

 

Tendo trabalhado, durante anos, para evitar a guerra, e vendo a loucura da Itália e dos Estados Unidos, eu, certamente, não estava dizendo às tropas que se revoltassem.  Eu achava que estava lutando por uma questão interna de governo constitucional. E se qualquer homem, qualquer indivíduo, puder dizer que ouviu de minha boca palavras contra raças, crença ou cor, que se apresente e as repita com detalhes. O Guide to Kulchur foi dedicado a Basil Bunting e a Louís Zukovsky, um quacre e um judeu.

 

Não sei se o senhor acha que os russos devem estar em Berlim ou não. Não sei se eu estava fazendo algum bem ou não,ou se estava fazendo algum mal.  Oh, eu me achava, provavelmente, equivocado. Mas a lei, em Boston, diz que não há traição sem que haja intenção de tal.

 

Quanto ao que eu estava certo, era a preservação dos direitos individuais.  Se, quando o poder executivo ou qualquer outro ramo do governo se excede em seus poderes legítimos, ninguém protesta, a gente perde todas as liberdades. Meu método de oposição à tirania esteve errado durante um período de mais de trinta anos - mas ele nada tinha que ver com a Segunda Guerra Mundial em particular.  Se o indivíduo, ou o herético, apreender certa verdade essencial, ou vir algum erro no sistema que está sendo aplicado, ele próprio comete tantos erros marginais, que se acha esgotado antes de poder provar seu ponto-de-vista.

 

O mundo, nos últimos vinte anos, acumulou muita histeria: ansiedade quanto a uma terceira guerra, tirania burocrática e histeria causada por fórmulas de papel. A imensa e inegável perda de liberdade, tal como era em 1900, é inegável.  Temos visto acelerar-se a eficiência dos fatores tiranizantes.  Basta, para isso, que se mantenha um homem preocupado. As guerras são feitas para criar débitos. Creio que há possibilidade nos satélites do espaço e noutras maneiras de fazer dívidas.

 

- Quando o senhor foi preso pelos americanos esperava ser condenado?  Enforcado?

 

A princípio, fiquei perplexo, pensando que cometera, a certa altura, algum engano.  Eu esperava voltar-me para o meu íntimo, e que me perguntassem o que aprendera, Eu o fiz, mas nada me perguntaram. Sei que me analisei, em várias ocasiões, durante as irradiações, refletindo que não cabia a mim fazer certas coisas, nem trabalhar para um país estrangeiro. Oh, era uma paranóia pensar que se podia argumentar contra as usurpações, contra os sujeitos que desencadearam a guerra para que os Estados Unidos participasse dela. Todavia, odeio a idéia de obediência a algo que é errado.

 

Fui, depois, levado para o pátio da prisão, em Chiavari. Eles fuzilavam os prisioneiros, e eu pensei que tinha chegado meu fim.  Então, finalmente, um sujeito se aproximou  de mim e disse-me que o diabo o levasse se ele me entregasse aos americanos, a menos que eu mesmo quisesse ser entregue

 

- Em 1942, quando os Estados Unidos entraram na guerra, eu soube que o senhor procurou deixar Itália e voltar para a América. Quais as circunstâncias da recusa?

 

Tais circunstâncias não foram senão boato. Tenho a cabeça enevoada quanto ao que se refere a um período considerável, e penso que... Sei que eu tinha oportunidade de chegar até Lisboa, e ficar oculto lá até o fim d guerra.

 

- Por que quis voltar para os Estados Unidos naquela época?

 

Eu queria voltar durante a eleição - antes da eleição.

- Por que quis voltar para os Estados Unidos naquela época?

 

Eu queria voltar durante a eleição - antes da eleição.

 

- A eleição foi em 1940, não foi?

 

Sería em 1940. Não me lembro, sinceramente, que aconteceu. Meus pais estavam muito velhos para viajar. Teriam de ficar em Rapallo. Papai vivia lá com o que recebia de sua aposentadoria.

 

- Durante aqueles anos de guerra, na Itália, o senhor escreveu poesia?  Os Pisan Cantos foram escritos quando o senhor se achava internado.  Que escreveu, durante aqueles anos?

 

Argumentos, argumentos, argumentos.  Oh, traduzi também, um pouco, Confúcio.

 

- Como foi que tornou a escrever poesia somente depois de ter sido internado?  O senhor não escreveu quaisquer cantos durante a guerra, escreveu?

 

Deixe-me ver... As coisas sobre Adams apareceram pouco antes da guerra. Não.  Escrevi Oro e lavoro.  Eu estava a escrever coisas sobre economia em italiano.

 - Desde seu internamento, o senhor publicou três coleções de Cantos - e, recentemente, Thrones. Já deve estar perto do fim. Poderia dizer o que vai fazer nos Cantos que restam?

 

É difícil escrever um paradiso, quando todas as indicações superficiais são as de que se deveria escrever um apocalipse. É, evidentemente, muito mais fácil encontrarem-se habitantes para um inferno, ou mesmo para um purgatório.  Estou procurando reunir os registros dos vôos mais altos do espírito.  Talvez eu tivesse feito melhor em colocar Agassiz no topo, ao invés de Confúcio.

 

- O senhor está, mais ou menos "empacado"?

 

Okay, estou "empacado". A pergunta é: estou morto, como os senhores A.B.C. poderiam desejar? Caso eu malogre, eis o que, provisoriamente, terei de fazer: elucidar obscuridades; tornar mais claras idéias e dissociações positivas.  Descobrir uma fórmula verbal para combater o aumento da brutalidade - o princípio de ordem versus desintegração do átomo. Havia um homem no manicômio, diga-se de passagem, que insistia em dizer que o átomo jamais fora desintegrado,

 

Um épico é um poema que encerra a história.  A mente moderna contém elementos heteróclitos. A poesia épica teve êxito quando todas ou uma grande parte das respostas eram pressupostas, pelo menos entre o autor e a assistência, ou uma grande massa da assistência. A tentativa, numa época experimental é, por conseguinte, temerária. O senhor conhece a história:

“- Que é que você está desenhando, Johnny?

- Deus.

- Mas ninguém sabe como ele é.

- Saberão, quando eu terminar!"

Tal confiança já não é mais possível.

 

Existem temas épicos. A luta pelos direitos individuais é um assunto épico, desde os julgamentos por conselhos de jurados em Atenas até Anselmo versus William Rufus, até o assassínio de Becket e, desde o assassínio de Coke até John Adams.

 

Depois, tal luta parece surgir contra um bloco. A natureza da soberania é assunto épico, embora possa ser um tanto obscurecido pelas circunstâncias. Algo disso pode ser traçado, indicado; evidentemente, tem de ser condensado, a fim de adquirir forma. A natureza do indivíduo, o conteúdo heteróclito da consciência contemporânea. É a luta da luz contra a subconsciência; exige obscuridades e penumbras. Uma grande parte do que se escreve hoje em dia evita as áreas inconvenientes do assunto.

Eu estou escrevendo a fim de resistir à idéia de que a Europa e a civilização estão caminhando para o Inferno. Se estou sendo "crucificado por uma idéia" - isto é, a idéia coerente em torno da qual minhas confusões se acumulam é devido, provavelmente, à idéia de que a cultura européia necessita sobreviver, de que suas melhores qualidades devem sobreviver juntamente com quaisquer outras culturas, qualquer que seja a sua universalidade. Contra a propaganda do terror e a propaganda do luxo, terá o senhor uma bela e simples resposta?  Temos trabalhado com certos materiais, procurando estabelecer as bases e os eixos de referência. Ao  escrever assim, para sermos compreendidos, há sempre o problema de ratificação, sem que se renuncie ao que é correto.  Há sempre a luta para não se assinar na linha marcada que favoreça a oposição.

- Acaso as partes separadas dos Cantos, agora  - pois que as três últimas partes apareceram sob nomes separados  -  significam que o senhor está abordando problemas particulares em partes particulares?

Não. Rock Drill tinha por intenção implicar a resistência necessária no sentido de se impor certa tese principal: martelar a coisa.  Eu não estava seguindo, exatamente, as três divisões da Divina Comédia.  Não se pode seguir o cosmo dantesco numa época de experimento. Mas fiz a divisão entre pessoas dominadas pela emoção, pessoas lutando para elevar-se, e aquelas que possuem certa parte da visão divina.  Os tronos, no Paraíso de Dante, são destinados aos espíritos das pessoas que foram responsáveis por bons governos.  Nos Cantos, os tronos são uma tentativa no sentido de o homem se livrar do egoísmo e estabelecer uma definição de uma ordem possível ou, pelo menos, concebível sobre a terra.  Tem-se como apoio a baixa percentagem de razão que parece agir nos assuntos humanos. Os Thrones dizem respeito aos estados de espírito de pessoas responsáveis por algo mais que sua conduta pessoal.

- Agora, que o senhor se aproxima da parte final, acaso fez quaisquer planos quanto à revisão dos Cantos, após tê-los terminado?

Não sei. Há necessidade de melhorá-los, de torná-los mais claros, mas não sei se uma revisão compreensiva seja possível. Não há dúvida que o trabalho é por demais obscuro tal como está, mas espero que a ordem de ascensão ao Paraíso será no sentido de uma maior limpidez.  Deverá haver, certamente, uma  edição corrigida, devido aos erros que lá penetraram furtivamente.

- Permita-me mudar de novo de assunto, se é que posso fazê-lo.  Durante todos os anos que passou internado no hospital St. Elizabeth, conseguiu ter uma idéia, através de seus visitantes, da América de nossos dias?

O que há de difícil, quanto aos visitantes, é que a gente não consegue deles oposição suficiente. Sofro do isolamento acumulativo de não ter tido contatos suficientes:  quinze anos vivendo mais com idéias que com pessoas.

- Tem algum plano quanto a voltar para os Estados Unidos?  Deseja fazê-lo?

Desejo, indubitavelmente, voltar.  Mas se há nisso uma nostalgia ou não pela América, já não sei. Trata-se de uma diferença abstrata entre a América de Adams-Jefferson-Adams-Jackson e o que quer que esteja agora ocorrendo. Há momentos em que eu, sem dúvida, gostaria muitíssimo de viver nos Estados Unidos. Mas existem essas tais dificuldades concretas contra esse desejo geral.  Richmond é uma bela cidade, mas não se pode viver nela, a menos que se dirija um automóvel.  Eu gostaria de passar, pelo menos, um ou dois anos, anualmente, nos Estados Unidos.

- O senhor disse, outro dia, que, à medida que se torna mais velho, mais americano se sente. De que modo isso funciona?

Os exóticos são necessários, como uma tentativa, numa origem. A gente é transplantado e cresce, e é puxado de novo para o lugar de onde foi transplantado e já não o encontra mais lá.  Os contatos já não estão mais lá, e eu suponho que a gente se volta para a sua própria natureza e a encontra misericordiosa. Acaso já leu as memórias de Andy White?  Foi ele o sujeito que fundou a Universidade de Cornell.  Aquele era o período de euforia, quando todo o mundo pensava que todas as boas coisas da América iriam funcionar, ali por 1900.  White abrange um período da história que vai, por um lado, até Buchanan. Foi ele, alternadamente, embaixador dos Estados Unidos na Rússia e reitor de Cornell.

Seu retorno à Itália foi um desapontamento, então?

Sem dúvida. A Europa foi um choque. O choque de a gente não mais se sentir no centro de algo que foi, provavelmente, uma parte disso.  E há também a incompreensão - a incompreensão européia - da América orgânica.  Há muitíssimas coisas que eu, como americano, não posso dizer a um europeu com esperança de ser compreendido.  Alguém disse que eu sou o último americano a viver a tragédia da Europa.

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NOTAS:

A saúde do Sr. Pound tornou-lhe impossível terminar a leitura das provas desta entrevista. O texto é completo, mas contém certos pormenores que Mr. Pound teria modificado em circunstâncias mais felizes.

 

(1) Em inglês, camponês escreve-se peasant e, faisão, pheasant. - (N. do T.)

 

(2) Pound indica que está empregando aí a palavra francesa contrôler: verificar, confrontar informações ou fatos.

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