“Habituei-me a escrever olhando o quintal de casa, através de uma janela. Durante vinte e nove anos contemplei a paisagem de árvores e flores tropicais. Quando mudei para um apartamento, supus que nunca mais escreveria. Os edifícios substituíram mangueiras, coqueiros, pés de fruta-pão, sapotizeiros e bananeiras. Mas os livros continuavam em volta. O costume de levantar-me em intervalos regulares, tomar um café e um copo d’água podia repetir-se. O novo escritório conservava móveis, quadros, fotografias e minha ordem silenciosa. Não consigo escrever fora desse lugar inventado por mim: a mesa de tampo de vidro, a cadeira de couro trazida do Ceará, o computador, agendas, dicionários, cadernos de anotações e a estante fabricada com tábuas de amarelo vinhático. Eis o meu espaço sagrado. Fora dele, apenas escuto, observo, anoto e vivo.”
Fonte: http://michellaub.wordpress.com (23/10/2012)
"Sou um escritor muito disciplinado. Trabalho todo dia, inclusive sábado e domingo. Sou uma pessoa extremamente disciplinada. Se disser “Dia 30 de setembro vou fechar a primeira cópia do meu romance, o primeiro tratamento”, dia 30 de setembro imprimo a primeira cópia do meu romance. Sou uma pessoa extremamente determinada. Tenho um projeto, tenho uma idéia. Trabalho muito com as técnicas que aprendi no teatro. Trabalho com uma coisa que se chama “memória de personagem”. Por exemplo, Adonias [do romance Galiléia]. Ele, como personagem, tinha uma caixa que podia ter vinte, trinta, quarenta páginas. Às vezes isso pode ser em si já um romance. Acho que Davi chegou a ter nessa caixa umas oitenta ou cento e vinte páginas. Davi, de Galiléia, era um personagem tão importante que a primeira cópia que tirei se chamava Davi entre as feras. Depois foi que virou Galiléia. E Davi foi um personagem que foi perdendo significado, foi perdendo, perdendo, e eu fui cortando, cortando, cortando. Galiléia era um romance que ia ter 500 páginas, e terminou com 236 páginas. Eu escrevo muito. Às vezes, escrevo um dia todo, escrevo horas e horas e horas, e nada daquilo entra na estrutura central do romance. No entanto, estive labutando com o meu personagem. Stanislavski usava uma técnica que era mandar o ator trazer elementos do personagem: roupas, óculos, sapatos, comida: tudo que ele imaginasse que pudesse construir a memória do personagem. Então, tenho que trabalhar memórias para aquele personagem. É uma maneira do personagem não ser raso. É um modo de o personagem ter profundidade. Então, há coisas que Adonias não faz, como há coisas que Ismael não faz e há coisas que Davi não faz. Isso me toma muito tempo, me toma muito tempo mesmo. E é um método. Mas a literatura é um exercício de cura, é um exercício de saúde. Na verdade, todo escritor é um grande histérico, só que ele é um histérico produtivo — ao invés de ele produzir sintomas, ele produz literatura, produz livros. Ainda bem, porque quando ele produz sintomas é um horror".
Fonte: Rascunho (Curitiba), novembro de 2011
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