"Não suportaria a literatura na minha vida sem o exercício da medicina. De modo algum. Tanto que já poderia me aposentar e sei que não vou me aposentar nunca da minha profissão de médico. Não vou, é uma decisão já interna, toda vez que penso nisso, entro em depressão. Não consigo, não consigo. Gosto de ser médico. Medicina para mim não é um emprego, é uma escolha de vida. Sei exatamente o dia na minha vida em que escolhi ser médico. Sei que passei a noite sem dormir, que passei a noite apavorado. E eu queria dizer uma coisa, talvez a coisa mais sincera que pudesse dizer: todo dia, quando eu entro no hospital, o grande aprendizado diário é ver que a minha vaidadezinha, as minhas conquistazinhas, essas coisinhas, todas, elas são insignificantes diante dos grandes dramas, dos grandes sofrimentos, da grande miséria que acompanho diariamente, de grandes, grandes dores. E nisso lembro exatamente de uma passagem de Crime e castigo, de Dostoievski, quando Sonia conta a história dela e Raskolnikov, que está no auge do delírio pelo crime que havia cometido, começa a chorar e se ajoelha aos pés de Sônia, e chora. E ela não entende, ela é uma prostituta, e não entende como ele pode se ajoelhar aos pés dela. Aí ele diz: “Eu, na verdade, me ajoelho diante do grande sofrimento humano”. Então, embora eu tenha que também administrar dramas sujos, grandes problemas políticos, grandes questões administrativas, todo dia uma história me é contada. Todo dia. E posso todo dia cuspir nessa vaidadezinha, mas dar uma cuspida mesmo, com gosto, aquela cusparada mesmo, e posso me ajoelhar diante de algum drama muito maior do que o meu. Muito, muito maior do que o meu".
Fonte: Rascunho (Curitiba),novembro de 2011 - Rogério Pereira