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Grandes Entrevistas

Aldous Huxley

 

Extraído de COWLEY, Macolm. (coord.) Escritores em ação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968

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Aldous Huxley nasceu em Godalming, Surrey, Inglaterra, a 26 de julho de 1894 - terceiro filho de Leonard Huxley (o filho mais velho e biógrafo do cientista Thomas Huxley) e de Júlia Arnold (sobrinha de Matthew Arnold). Estudou em Eton, até que foi obrigado a deixar a universidade devido a uma enfermidade nos olhos (ceratite), que o manteve quase cego durante vários anos. Munido de óculos com lentes fortes entrou para Oxford e obteve um diploma em literatura inglesa. Em 1919, associou-se ao Athenaeum e ao seu editor, J. Middleton Murry. Nessa época, começou a escrever versos, ensaios e trabalhos históricos, tarefas que continuou a realizar durante toda sua carreira literária. Mas foi como romancista satírico que primeiro conquistou o gosto público. Crome yellow surgiu em 1921, sendo o primeiro de uma série de livros, a qual incluía Antic way (l923), Those barren leaves (l925), Point counter point (l928), Brave neww World (l932), Eyeless in Gaza (l936) e After many a summer dies the swan (l939).

 

Huxley escreveu a respeito da mescalina: The doors of perception (l954); os horrores da guerra nuclear: Ape and essence (l948); e a tecnologia modema: Sciences, liberty and peace (l946). Recentemente, retomou aos temas de seu livro mais popular, em Brave new world revisited (l958) e Island (1962) - o trabalho em andamento a que ele se refere na entrevista que se segue.  Viveu, durante muitos anos, nos Estados Unidos.

 

Entre os romancistas sérios, Aldous Huxley é, por certo, o mais espirituoso e irreverente. Desde o princípio da década de 1920, seu nome tem sido expressão de uma espécie particular da sátira social; com efeito, ele imortalizou na sátira toda uma época e um sistema de vida. Além de suas dez novelas, Huxley tem escrito, durante o decurso de uma carreira extremamente prolífica, poesia, teatro, ensaios, livros de viagens, biografia e história.

 

Descendente de duas das mais eminentes famílias vitorianas, herdou a ciência e as letras de seu avô T.H. Huxley e de seu tio-avô Matthew Arnold, respectivamente.  Absorveu ambas as tendências numa erudição tão dissemelhante, que a mesma tem sido, às vezes, encarada como uma espécie de entretenimento literário. (Na conversa seus conhecimentos surgem espontaneamente, sem o menor sinal de premeditação. Se alguém, por exemplo, aborda o tópico da grastronomia vitoriana, Huxley citará um cardápio típico diário do Príncipe Edward, refeição por releição, prato por prato, até à última migalha.) O fato evidente é que Aldous Huxley é um dos escritores mais prodigiosamente eruditos não só deste século, mas de todos os tempos.

 

Depois de cursar Eton e Balliol, tornou-se membro da alta sociedade intelectual de após-guerra, sociedade que se pôs a analísar e a dissecar. Começou por fazer o seu nome com sátiras brilhantes, tais como Antic way e Point counter point, escrevendo, ao fazê-lo, parte da história social da década de 1920. Na década de 1930, escreveu o seu romance de mais ampla influência, Brave new world, aliando a sátira à ficção científica na mais bem sucedida das utopias futurísticas. A partir de 1937, quando se instalou na Califórnia Meridional, passou a escreve menos romances, voltando mais sua atenção para filosofia, história e misticismo. Embora relembrado mais por suas primeiras sátiras, é ainda um autor fecundo e estimulante como sempre.

 

É um tanto estranho encontrar-se Aldous Huxley num suburbio de Los Angeles chamado Hollywoodland. Reside numa casa despretensiosa, no topo de uma colina, que lembra o período Tudor americano história da história das propriedades imobiliárias. Num dia claro pode ele lançar o olhar por sobre milhas de casas  aglomeradas junto a uma ampla extensão do Pacífico. Atrás dele, erguem-se montes secos e castanhos, onde um monstruoso anúncio domina o horizonte, com letras de alumínio, de vinte pés de altura proclamar o nome de HOLLYWOODLAND.

 

Mr.  Huxley é um homem muito alto (deve ter seis pés e quatro polegadas) e, embora esguio, possui ombros bastante largos.  Carrega os seus anos, com efeito, como se não os sentisse; move-se de maneira tão vivaz como se não estivesse sujeito à lei da gravidade, de maneira quase etérea. Sua visão é limitada mas ele parece encontrar caminho, entre as coisas, instintivamente, sem tocar em nada.

 

Nas maneiras e no falar, é muito gentil. Onde se poderia esperar encontrar o satírico mordaz ou o vago místico, a gente, em lugar disso, se impressiona, de um lado, ao ver quão tranqüilo e delicado é ele e, de outro, como é sensível e voltado para a terra. Suas maneiras refletem-se em seu rosto magro, cinéreo, emaciado: ele é atencioso, reflexivo e, quase sempre, sério. Ouve, pacientemente, enquanto os outros falam e, então, responde com deliberação.

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- Poderia o senhor dizer-nos, antes de mais nada, algo a respeito de sua maneira de trabalhar?

 

Trabalho com regularidade pela manhã e, depois, um pouquinho antes do jantar.  Não sou dos que trabalham à noite. À noite, prefiro ler. Em geral, trabalho quatro ou cinco horas por dia. Trabalho tanto quanto posso, até sentir que estou ficando rançoso. Às vezes, quando empaco, ponho-me a ler -  ficção, psicologia ou história, não importa muito o que - não para tomar emprestados idéias ou materiais, mas simplesmente para recomeçar de novo. Quase qualquer coisa fará esse truque.

 

- Reescreve muito as suas obras?

 

Em geral, escrevo tudo muitas vezes.  Todas as minhas idéias são derivadas. E corrijo muito cada página, ou as reescrevo, à medida que prossigo.

 

- O senhor tem um caderno de anotações, como certos personagens em seus romances?

 

Não, não tenho livro de anotações. Tenho, ocasionalmente, durante breves períodos, conservado diários, mas sou muito preguiçoso e, em geral, não o faço. Dever-se-ia  ter cadernos de anotações, penso eu, mas eu não tenho.

 

- O senhor delineia os capítulos ou planeja toda a estrutura, quando começa uma novela?

 

Não, escrevo um capítulo por vez, descobrindo meu caminho à medida que prossigo.  Quando começo, só sei muito vagamente o que irá acontecer. Tenho apenas uma idéia geral e, então, a coisa se desenvolve, enquanto escrevo. Não raro - e isso já me aconteceu mais de uma vez - escrevo muito e, de repente, vejo que a coisa não vai, e tenho de jogar tudo fora. Gosto de já ter um capítulo terminado antes de começar a escrever o próximo.  Mas jamais estou inteiramente certo quanto ao que irá ocorrer no capítulo seguinte, enquanto não o escrevo.  As coisas me vêm em gotas e, quando isto acontece, tenho de trabalhar arduamente, para convertê-las em algo coerente.

 

- E esse método é agradável ou penoso.

 

Oh, não é penoso, embora constitua trabalho árduo. Escrever é uma ocupação bastante absorvente e, não raro, exaustiva.  Mas sempre me considerei muito feliz por poder ganhar a vida entregando-me a algo que me agrada fazer.  Pouquíssimas pessoas podem fazê-lo.

 

- O senhor usa mapas, ou cartas, ou diagrama, para guiá-lo em seus escritos?

 

Não, eu não uso nada disso, embora leia muito sobre o meu assunto. Livros de geografia podem constituir uma grande ajuda, no sentido de manter as coisas corretas. Não tive dificuldade alguma em encontrar meu caminho na parte inglesa de Brave new world, mas tive de ler muito acerca do Novo México, pois eu jamais estivera lá.  Li toda sorte de relatórios smithsonianos a respeito do lugar, e fiz o melhor possível para imaginá-lo.  Na verdade, não fui lá senão seis anos mais tarde, em 1937, quando visitamos Fried Lawrence.

 

- Quando começa a escrever um romance, que espécie de idéia geral o senhor tem?  Como começou, por exemplo, Brave new world?

 

Isso começou como uma paródia de H.G. Wells,  Men like gods, mas, pouco a pouco, me escapou da mão converteu-se em algo inteiramente diferente do que eu havia originariamente imaginado. À medida que me tornava cada vez mais interessado pelo assunto, afastava-me do meu propósito.

 

- Que está escrevendo agora?

 

Uma espécie um tanto estranha de ficção. É um tipo de fantasia oposto a Brave new world, a respeito de uma sociedade em que verdadeiros esforços são feitos para realizar as potencialidades humanas. Desejo mostrar de que modo a humanidade  pode conseguir o que há de melhor tanto no mundo oriental como no ocidental. De modo que o cenário é uma ilha imaginária situada entre Ceilão e Sumatra, num ponto de encontro de influência indiana e chinesa. Um de meus principais personagens é, como Darwin e meu avô, um jovem cientista participante de uma daquelas expedições científicas que o Almirantado Britânico enviou em 1840; é ele um médico escocês, que se assemelha um tanto a James Esdaile, o homem que introduziu a hipnose na medicina. Além disso, como em News from nowhere e outras utopias, eu tenho outro intruso vindo do mundo exterior, cuja viagem, dirigida, lhe proporciona um meio de descrever a sociedade. Infelizmente, é ele também a serpente do jardim, a olhar invejosamente para esse próspero e feliz país. Ainda não imaginei qual o final mas receio que a narrativa termine com um paraíso perdido - se se quiser ser realista.

 

- No prefácio de 1946 para Brave new world, o senhor faz certas observações que parecem prefigurar  essa nova utopia. Esse trabalho já estava incubado? 

 

Sim, a idéia geral já estava, naquela altura, no fundo de minha mente e, desde então, tem-me preocupado bastante - embora não necessariamente como tema de romance.  Durante longo tempo, estive a pensar muito nas várias maneiras de realizar as potencialidades humanas; depois, há cerca de três anos, resolvi escrever tais idéias num romance.  A coisa prosseguiu muito lentamente, pois tive de lutar com a fábula, a estrutura que permitisse levar avante a parte expositiva. Sei bastante claramente  o que desejo dizer; o problema reside na maneira de encarnar as idéias. A gente sempre pode, claro, expô-las em diálogos, mas não se pode fazer com que os personagens falem indefinidamente sem que se tornem transparentes - e enfadonhos.  Ademais, há sempre o problema do ponto-de-vista: quem irá contar a história ou viver as experiências? Tenho tido muita dificuldade em elaborar o enredo e reorganizar as partes que já escrevi.  Agora, penso que já posso ver o caminho claro até o fim.  Mas temo que a narrativa esteja se tornando irremediavelmente longa.  Não tenho certeza, de modo algum, como é que irei resolver isso.

 

- Certos escritores hesitam em falar acerca das obras que estão escrevendo, receosos de que, desse modo, as revelem por inteiro. O senhor não tem receio disso?

 

Não, eu não me importo, de modo algum, de falar acerca do que estou escrevendo.  Na realidade, talvez possa ser uma boa prática; talvez possa dar-me uma idéia mais clara acerca do que eu estava procurando fazer. jamais discuti muito meus trabalhos com os outros, mas não creio que isso possa ser prejudicial. Não penso que haja qualquer risco de que as idéias ou os materiais se evaporem.

 

- Certos escritores - Virginia Woolf, por exemplo - mostraram-se penosamente sensíveis à crítica.  Acaso o senhor foi assim tão afetado pelos seus críticos?

 

Não, eles jamais me afetaram de maneira alguma, pela simples razão de que jamais os li. Nunca tive em mira escrever para uma determinada pessoa ou grupo; procurei sempre fazer o melhor que podia, e deixar a coisa correr. Os críticos não me interessam porque tratam do que é passado e já está feito, ao passo que eu me interesso pelo que vem a seguir. Jamais reli, por exemplo, minhas primeiras novelas.  Talvez devesse lê-las um dia destes.

 

- De que modo começou a escrever?  Lembra-se?

 

Comecei a escrever aos dezessete anos, durante uma época em que estava quase inteiramente cego e mal podia fazer qualquer outra coisa.  Datilografei um romance pelo sistema de toque; não conseguia sequer lê-lo. Não tenho idéia do que aconteceu com ele; teria grande curiosidade de vê-lo agora, mas perdeu-se. Minha tia, a Sra.  Humphey Ward, foi uma espécie de madrasta literária para mim. Eu costumava ter longas conversas com ela a respeito de escrever; ela deu-me uma infinidade de conselhos  sensatos. Ela própria era uma escritora muito sensata: desdobrava seus enredos como partes de rodovias asfaltadas.  Ela adotava uma prática curiosa: cada vez que começava um novo romance, lia o Le neveau de rameau, de Diderot.  Isso parecia agir como uma espécie de gatilho ou mecanismo de libertação.  Depois, mais tarde, durante e após a guerra, conheci muitos escritores, através de Ottoline Morrell. Ela costumava convidar toda classe de pessoas para a sua casa de campo.  Conheci, lá, Katherine Mansfield, Siegrief Sassoon, Robert Graves e todos os Bloomsburies.  Tenho um grande débito de gratidão para com Roger Fry. Ouvir suas conversas sobre arte era uma espécie de educação liberal.  Em Oxford, comecei a escrever versos.  Eu tinha vários volumes de versos publicados, antes de dedicar-me a escrever contos.  Fui muito feliz: jamais encontrei dificuldade em ser publicado.  Finda a guerra, ao deixar Oxford, precisava ganhar  a vida.  Tinha um trabalho no Athenaeum, mas isso dava pouco, não o bastante para se viver; assim, em momentos de folga, eu trabalhava para as publicações do Condé Nast. Trabalhei em Vogue e Vanity Fair, bem como para House and Garden. Costumava escrever artigos sobre tudo, desde decoração em gesso até tapetes persas.  E isso não era tudo.  Escrevia crítica de teatro para a Westminster Review.  Ora essa! ... O senhor acreditaria?  Escrevi até crítica musical.  Recomendo de todo coração essa espécie de jornalismo, como aprendizado, desenvolve nossas faculdades, ensina-nos a dominar rapidamente nosso material, e faz com que encaremos bem as coisas.  Felizmente, porém, não tive de exercer tal tarefa por muito tempo.  Depois de  Crome Yellow - que foi publicado em 1921 - precisei preocupar-me muito quanto a ganhar a vida.  Eu já estava casado - e pudemos, então, viver na Europa; na Itália, enquanto os fascistas não tornaram a vida desagradável e, depois, na França. Tínhamos uma casinha nas cercanias de Paris, onde eu podia escrever sem ser perturbado.  Passávamos em Londres parte do ano, mas havia sempre demasiada agitação e eu não podia escrever muito lá.

 

- Acha que certas ocupações são mais conducentes aos escritos criativos do que outras? Em outras palavras: acaso o trabalho que faz ou as companhias que o cercam afetam o que escreve?

 

Não creio que haja uma ocupação ideal para o escritor. Este pode escrever quase em quaisquer circunstâncias, até mesmo em completo isolamento.  Veja o caso de Balzac, encerrado num quarto secreto, em Paris, a ocultar-se de seus credores e a produzir a Comédie humaíne.  Ou penso em Proust, em seu aposento de paredes revestidos de cortiça (embora, certamente, não lhe faltassem visitas).  Creio que a melhor ocupação consiste em se encontrar um número muito grande de indivíduos de tipos diferentes e ver-se o que os interessa. Essa é uma das desvantagens de se envelhecer: a gente tende a estabelecer contatos íntimos com um número cada vez menor de pessoas.

 

- O que é que senhor diria que torna o escritor diferente de outras pessoas?

 

Bem, tem-se necessidade, em primeiro lugar, de ordenar os fatos que a gente observa  e dar sentido à vida - e, juntamente com isso, há o amor pelas palavras por si próprias e um desejo de manipulá-las. Não se trata de uma questão de inteligência; certas pessoas muito inteligentes e originais não têm amor pelas palavras, ou o jeito de empregá-las eficientemente.  No nível verbal, tais pessoas se expressam muito mal.

 

- Qual sua opinião a respeito da criatividade, em geral?

 

Sim, que dizer-se a esse respeito?  Por que razão, na maioria das crianças, a educação parece destruir a necessidade criadora?  Por que razão tantos rapazes e moças deixam a escola com a percepção embotada e o espírito acanhado?  A maioria dos jovens parece ser atacada de arteriosclerose mental quarenta anos antes da arteriosclerose física.  Outra pergunta: por que razão certas pessoas permanecem com a mente aberta e elástica até à velhice extrema, enquanto outras se tornam rígidas e improdutivas antes dos cinqüenta anos? É um problema de bioquímica e de educação de adultos.

 

- Certos psicologistas têm afirmado que a necessidade criadora é uma espécie de neurose.  Concorda com isso?

 

Absolutamente não. Não creio, um momento sequer, que a criatividade seja um sintoma neurótico.  Pelo contrário, o neurótico, que consegue realizar-se como artista, tem de vencer tremendas dificuldades. Ele cria a despeito de sua neurose, e não por causa dela.

 

- O senhor jamais se valeu muito de Freud, não é?

 

O inconveniente da psicologia freudiana é que ela se baseia exclusivamente no estudo dos doentes.  Freud jamais encontrou uma criatura humana saudável - mas apenas pacientes e outros psicanalistas. Ademais, a psicologia freudiana se interessa unicamente pelo passado.  Outros sistemas de psicologia, que se ocupam do estado presente do indivíduo ou de suas potencialidades futuras, parecem-me ser mais realistas.

 

- O senhor vê alguma relação entre o processo criador e o uso de drogas tais como o ácido lisérgico?

 

Não creio se possa fazer qualquer generalização quanto a isso. A experiência demonstrou que há enorme variação na maneira pela qual as pessoas reagem ao ácido lisérgico. Certas pessoas, provavelmente, poderiam obter dele inspiração estética direta para a pintura ou a poesia. Outras, creio que não poderiam. Para a maioria das pessoas, é uma experiência extremamente significativa, e penso que, de um modo indireto, o ácido lisérgico poderia ajudar o processo criativo. Mas não creio que a gente possa sentar-se e dizer: "Desejo escrever um poema magnífico, de modo que vou tomar ácido lisérgico." Não me parece de modo algum certo que se obtenha o resultado que se deseja: poder-se-iam obter quase que quaisquer resultados.

 

- Acaso a droga constituiria maior ajuda ao poeta lírico que ao romancista?

 

Bem, o poeta obteria, certamente, uma visão extraordinária da vida, a qual ele não teria de qualquer outra maneira, e isso poderia ajudá-lo bastante. Mas, como vê (e isso é o que há de mais significativo) durante a experiência não se tem, na verdade, interesse em realizar-se coisa alguma de prático - nem mesmo escrever poesia lírica.  Se alguém está fazendo amor com uma mulher tem, acaso, interesse em escrever a respeito? Claro que não. E, durante a experiência, não se está particularmente interessado em palavras, pois que ela as transcende e é inteiramente inexprimível em termos de palavras. De modo que toda a idéia de conceitualizar o que está acontecendo, é sumamente tola. Depois do acontecimento, parece-me bastante possível que o mesmo talvez possa ser de grande ajuda; as pessoas veriam de maneira bastante diferente o mundo que as cerca, e sentir-se-iam inspiradas, possivelmente, a escrever algo a respeito.

 

- Mas fica muita coisa da experiência?

 

Bem, há sempre lembrança completa da experiência.  A gente se lembra de que algo extraordinário aconteceu. E, até certo ponto, pode-se reviver a experiência, principalmente quanto ao que se refere à transformação do mundo exterior.  Tem-se vislumbre disso; vê-se o mundo, de quando em quando, dessa maneira transfigurada - não com o mesmo ponto extremo de intensidade, mas algo semelhante.  Faz-nos bem ver o mundo de um modo diferente. E a gente acaba por compreender muito claramente a maneira pela qual certas pessoas excepcionalmente bem dotadas encararam o mundo.  A gente é, na verdade, introduzido na espécie de mundo em que Van Gogh vivia, ou na espécie de mundo em que vivia Black. Começa-se a ter uma experiência direta desse mundo quando se está ainda sob o efeito da droga e, posteriormente, a gente pode relembrar e, até certo ponto, recaptura esse mundo, no qual certos indivíduos privilegiados entravam e saíam à vontade, como Black, evidentemente, fazia sempre.

 

- Mas o talento do artista não será de modo algum diferente do que era, antes de ele tomar a droga?

 

Não vejo por que razão deveria ser diferente.  Foram feitas certas experiências para que se visse o que os pintores podem fazer sob o efeito da droga, mas quase todos os exemplos que vi são muito desinteressantes. Não se poderia jamais esperar que alguém reproduzisse plenamente a incrível intensidade de cor que se obtém sob o efeito da droga.  A maioria das coisas que vi não passa de manifestações um tanto enfadonhas de expressionismo, que não correspondem de modo algum, penso eu, à verdadeira experiência.  Talvez um artista imensamente bem dotado - algum como -Odilon Redon (que, provavelmente, de qualquer modo, via o mundo assim o tempo todo - talvez nem pudesse aproveitar-se da experiência do ácido lisérgico, usar suas visões como modelos, reproduzir em telas o mundo exterior tal como é ele transfigurado pela droga.

 

- Durante esta tarde, como em seu livro The doors of perception, o senhor falou principalmente acerca da experiência visual sob o efeito da droga, bem como a respeito da pintura. Existe, acaso, alguma coisa semelhante, quanto ao que se refere à penetração psicológica?

 

Sim, penso que existe.  Enquanto uma pessoa está sob o efeito da droga, possui grande penetração psicológica quanto àqueles que o cercam, bem como ao que concerne à sua própria vida. Muitos indivíduos têm tremendas recordações de coisas que se achavam sepultadas em seu intimo. Um processo que talvez pudesse exigir  seis anos de psicanálise, acontece numa hora - e de modo consideravelmente mais barato!  Além disso, a experiência pode libertar e ampliar muitas coisas, em outros sentidos.  Revela que o mundo em que habitualmente se vive é meramente uma criação dessa criatura convencional, estreitamente condicionada que a gente é, e que existem, fora disso, outros mundos inteiramente diversos. É uma coisa muito salutar perceber-se que o universo um tanto monótono em que a maioria de nós passa a maior parte do tempo não é o único que existe. Parece-me saudável que as pessoas passem por tal experiência.

 

- Poderia, acaso, tal penetração psicológica ser útil ao escritor de ficção?

 

Duvido. Afinal de contas, a ficção é fruto de um esforço constante.  A experiência com o ácido lisérgico é uma revelação de algo que se acha fora do tempo e da ordem social.  Para escrever ficção, é necessária toda uma série de inspirações acerca de pessoas situadas num meio real e, além disso, como base de tais inspirações, todo um conjunto de trabalho árduo.

 

- Existe alguma semelhança entre o ácido lisérgico ou mescalina e o "soma" do seu Brave new world?

 

Nenhuma, absolutamente.  O "soma" é uma droga imaginária, que produz três efeitos diferentes - euforia, alucinação e tranquilidade - combinação impossível.  A mescalina é o princípio ativo do cacto peyote, usado há longo tempo pelos índios do sudoeste em seus ritos religiosos.  O ácido lisérgico dietilamido (LSD-25) é um composto químico de efeitos semelhantes à mescalina. Apareceu há cerca de doze anos e é somente usado, no momento, experimentalmente.  A mescalina e o ácido lisérgico transfiguram o mundo exterior e, em certos casos, produzem visões.  A maioria das pessoas teve a experiência positiva e reveladora que descrevi - mas tais visões podem ser tanto infernais como celestiais. Tais drogas são fisiologicamente inócuas, exceto para pessoas que têm lesões no fígado. Na maioria dos indivíduos não causam efeitos posteriores desagradáveis e não produzem hábito. Certos psiquiatras constataram que, usadas com o devido cuidado, podem ser muito úteis no tratamento de certas espécies de neuroses.

 

- Como veio o senhor a envolver-se em experimentos com mescalina e ácido lísérgico?

 

Bem, eu já me interessava por isso há anos, e mantinha correspondência com Humphrey Osmond, jovem e talentoso psiquiatra que trabalhava no Canadá.  Quando ele começou a testar seus efeitos em diferentes pessoas eu me converti numa de suas cobaias.  Descrevi tudo isso em The doors of perception.

 

- Voltando à literatura: em Point counter point, o senhor faz Philip Quales dizer: "Não sou um romancista congênito." Acaso o senhor diria o mesmo de si próprio?

 

Não, não penso em mim mesmo como um romancista nato.  Tenho grande dificuldade, por exemplo, em inverter enredos.  Certas pessoas nascem com um dom surpreendente para contar histórias; é um dom que jamais possuí, A gente lê, por exemplo, as descrições de Stevenson acerca de como todos os enredos de suas narrativas eram produzidos, em sonhos, pelo seu subconsciente (que ele chama de os Brownies a trabalhar para ele), e de como tudo o que ele tinha a fazer era organizar o material que lhe era assim fornecido. A grande dificuldade, para mim, sempre foi criar situações.

 

- Criar personagens é, para o senhor, mais fácil que criar enredos?


 Sim, mas tampouco tenho grande facilidade em criar personagens. Não tenho um repertório muito grande de personagens. Essas coisas são difíceis para mim.  Suponho que se trate, em grande parte, de uma questão de temperamento.  Acontece que não possuo o temperamento adequado.

 

- Pensamos que, com a frase “novelista inato", o senhor se referisse apenas ao que se interessa em escrever romances.

 

Suponho que essa seja outra maneira de dizer a mesma coisa.  O romancista inato não tem outros interesses.  A literatura, para ele, é algo absorvente, que lhe enche a mente e lhe toma todo o tempo e energia, enquanto outro indivíduo, dotado de uma espécie diferente de espírito, possui essas outras atividades extracurriculares que lhe ocupam a mente.

 

- Quando o senhor volta a olhar para os seus romances, qual deles o torna mais feliz?

 

Eu, pessoalmente, acho que o mais bem sucedido deles foi Time must have a stop.  Não sei, mas parece-me que integrei nele o que se pode chamar o elemento ensaio com o elemento ficção melhor do que em outros romances. Talvez esse não seja o caso.  Acontece, apenas, que é o romance que me agrada mais, porque sinto que saiu melhor.

 

- Na sua opinião, então, o problema do romancista consiste em fundir na narrativa o "elemento ensaio"?

 

Bem, há uma porção de excelentes contadores de histórias que são simplesmente contadores de histórias, e isso me parece, afinal de contas, um dom maravilhoso. Suponho que o exemplo extremo seja Dumas - esse idoso e extraordinário senhor, que se sentava em sua mesa e não pensava em outra coisa senão em escrever os seis volumes do Conde de Monte Cristo em apenas alguns meses.  E, santo Deus, como é bom o Conde de Monte Cristo!  Mas isso não constitui a última palavra.  Quando se encontra um narrador que executa, ao mesmo tempo, uma espécie de significado que se assemelha a uma parábola (como se tem, por exemplo, em Dostoievski ou no melhor de Tolstoi), isso é algo extraordinário, julgo eu. Fico sempre pasmo quando releio algumas das coisas curtas de Tolstoi, como A Morte de Ivan Ilyich. Que espantoso trabalho é esse!  Ou algumas das narrativas breves de Dostoievski, como, por exemplo, as Notas do subterrâneo.

 

- Que outros romancistas o afetaram particularmente?

 

É-me terrivelmente difícil responder a essa pergunta.  Leio os livros que me agradam, e dos quais recebo coisas e sou estimulado... Quando jovem, ainda estudante, costumava ler uma porção de romances franceses. Agradava-me muitíssimo um romancista que é hoje antiquado: Anatole France.  Faz, agora, quarenta anos que não o leio; não sei mais como ele é. Lembro-me, ainda, de haver lido o primeiro volume de Proust em 1915, e de ter ficado tremendamente impressionado por ele. (Reli-o, não faz muito, e senti-me curiosamente decepcionado.) Eu também lia Gide, naquela época.


 - Vários de seus primeiros romances principalmente Point counter point - parecem ter sido escritos sob a influência de Proust e de Gide. É verdade?

 

Suponho que alguns de meus primeiros romances sejam vagamente proustianos.  Não creio que eu jamais torne a fazer experimentos, quanto ao tempo e às coisas passadas, como fiz em Eyeless in Gaza, adiantando-me e retrocedendo no tempo, a fim de mostrar a pressão do passado sobre o presente.

 

- Em alguns desses primeiros romances, ademais, o senhor também empregou efeitos musicais, como o fez Gide.

 

O que há de maravilhoso na música é o fato de que ela realiza de modo tão fácil e rápido aquilo que somente de maneira muito trabalhosa pode ser feito com palavras, ou que não pode ser, absolutamente, feito. É inútil até mesmo sequer escrever-se musicalmente. Mas eu o tentei em alguns de meus ensaios - em Themes and variations, por exemplo. Além disso, tenho usado, em algumas de minhas histórias o equivalente a variações musicais, quando tomo certos traços de caráter e os trato, num personagem, comicamente e, depois, noutro personagem, como uma espécie de paródia.

 

- Acaso foi o senhor muito influenciado por Joyce?

 

Não... jamais o fui muito. Jamais obtive muita coisa com a leitura de Ulysses.  Penso que é um livro extraordinário, mas uma parte muito grande do mesmo consiste em demonstrações um tanto extensas de como não se deve escrever um romance.

 

- Que lhe parecem os escritos de Virginia Woolf?

 

Suas obras são bastante estranhas. São belas, não são?  Mas causam-nos uma curiosa sensação.  Ela vê com incrível clareza, mas sempre como se o fizesse através de um anteparo de vidro; jamais toca em coisa alguma.  Seus livros não são diretos. São bastante intricados para mim.

 

- E que nos diz a respeito de Henry James?  Ou de Thomas Mann?

 

James deixa-me bastante frio.  Acho Mann um tanto enfadonho.  É, evidentemente, um romancista admirável.  Eu costumava ir, no verão, ao lugar descrito em Mario and the magician, e parecia-me que Mann jamais me transmitia qualquer idéia acerca do lugar. Eu conhecia-o bem: a costa em que Shelley morreu afogado, ao pé das montanhas de Carrara, de onde vem o mármore.  Era, então, um lugar incrivelmente belo.  Hoje, é desnecessário dizer, tudo se assemelha a Coney lsland, com milhões de pessoas.

 

- Por falar em lugares, acha que seus escritos foram afetados, quando se transferiu da Inglaterra para os Estados Unidos?

 

Não sei... não creio que tenham sido. Jamais senti vivamente que o lugar em que eu vivia exerceu grande influência sobre mim.

 

- Então o senhor não acha que o ambiente social faz muita diferença, quanto ao que se refere à literatura de ficção?

 

Bem, o que é "ficção"?  Muita gente se refere à "ficção", ou ao "escritor", como se se pudesse generalizar a respeito disso. Existem sempre muitos membros diversos do grupo - e a ficção é um gênero de que há muitas espécies.  Acho que certas espécies de ficção exigem claramente um determinado local. É impossível que Trollope houvesse escrito exceto onde escreveu. Ele não poderia ter ido para a Itália, como Byron ou Shelley.  Tinha necessidade da classe média inglesa.  Mas veja Lawrence.  No começo, dir-se-ia que tinha de permanecer nos Midlands da Inglaterra, perto das minas de carvão. Mas ele podia escrever aonde quer que fosse.

 

- Hoje, trinta anos depois, o senhor ousaria dizer o que pensa de Lawrence como romancista e como homem?

 

Ocasionalmente, reli alguns de seus livros. Como êle é bom! Principalmente nas histórias curtas.  Ainda outro dia, li parte de Women in love, e isso ainda me pareceu muito bom. O vigor, o incrível vigor das descrições da natureza, em Lawrence, é surpreendente.  Mas, de certo modo, não se sabe o que ele pretende.  Em The plumed serpent, por exemplo, glorifica os índios mexicanos, numa página, com a sua sombria vida sangrenta e, logo na página seguinte, maldiz os nativos indolentes, como o faria um coronel inglês na época de Kipling. Esse livro é uma massa de contradições.  Eu apreciava muitíssimo Lawrence como homem. Conheci-o muito bem nos últimos quatro anos de sua vida.  Conheci-o durante a Primeira Guerra Mundial, e o vi, então, bastante, mas não vim a conhecê-lo bem senão em 1926. EIe perturbou-me um pouco. Como sabe, era um tanto perturbador.  E, para um jovem burguês criado de maneira convencional, um tanto difícil de ser compreendido. Mais tarde, porém, vim a conhecê-lo melhor e a apreciá-lo.  Minha primeira esposa tornou-se muito amiga dele e o compreendeu, sendo que ambos se davam muito bem.  Víamos os Lawrences com freqüência durante aqueles últimos quatro anos; ficaram conosco em Paris, depois fomos juntos para a Suíça, e os visitávamos na Villa Mirenda, perto de Florença.  Minha esposa datilografou, para ele, o manuscrito de Lady Chetterley's lover, embora fosse má datilógrafa e não tivesse paciência com a ortografia inglesa: ela era belga, como o senhor sabe.  Depois, ela começou a apreciar as nuanças da linguagem que estava datilografando. E quando ela começou a empregar, em sua conversação, algumas daquelas palavras fortes, Lawrence ficou profundamente chocado.

 

- Por que razão Lawrence andava tanto de um lugar para outro?

 

Uma das razões pelas quais ele mudava tanto de lugar era que suas relações com as pessoas se tornavam tão complicadas, que tinha de partir. Era um homem que amava e odiava demasiado intensamente; tanto amava como odiava, ao mesmo tempo, a mesma pessoa.  Ademais, como ocorre com um grande número de tuberculoses, estava convencido de que o clima exercia grande efeito sobre ele - não apenas a temperatura, mas a direção do vento e todas as espécies de condições atmosféricas. Ele inventara toda uma mitologia do clima.  Nos seus últimos anos, queria voltar ao Novo México.  Tinha sido muito feliz no rancho, em Taos.  Mas não se achava suficientemente forte para fazer a viagem.  De acordo com todas as normas da medicina, ele deveria estar morto; mas continuou a viver, apoiado em alguma espécie de energia que parecia ser independente de seu corpo. E continuou a escrever até o fim.  Estávamos lá, em Vance, quando ele morreu... Morreu, com efeito, nos braços de minha primeira esposa.  Depois de sua morte, sua esposa, Frieda, ficou inteiramente desorientada, sem saber o que fazer de si própria. Fisicamente, ela era muito forte, mas, quanto às coisas práticas, dependia inteiramente do marido. Quando, por exemplo, após a morte de Lawrence, ela regressou a Londres, hospedou-se num determinado hotel, velho e triste, simplesmente porque se hospedara lá, certa vez, em companhia dele, e não se sentia segura em qualquer outro lugar.

 

- Certos personagens, em seus romances, parecem ter sido baseados em pessoas que o senhor conheceu - em Lawrence, Norman Douglas e Diddleton Mury, por exemplo. É verdade? E de que modo o senhor converte uma pessoa real num personagem literário?

 

Procuro imaginar de que modo certas pessoas que conheci teriam reagido em certas circunstâncias. Claro que baseio meus personagens, em parte, em pessoas que conheço (não se pode fugir disso), mas os personagens de fícção são por demais simplificados; são muito menos complexos do que as pessoas que a gente conhece.  Há algo de Murry em vários de meus personagens, mas eu não diria que tenha posto Murry num livro.  Há, também, alguma coisa de Norman Douglas no velho Scogan de Crome yellow.  Conheci Douglas bastante bem na década de vinte, em Florença.  Era um homem notavelmente inteligente e extremamente educado, mas ele, deliberadamente, se havia limitado ao ponto em que quase não falava de outra coisa senão de bebida e sexo.  Tornou-se passado algum tempo, bastante enfadonho.  Acaso o senhor não viu aquela coleção de poemas pornográficos, humorísticos, que ele imprimiu por conta própria? Era a única maneira, pobre homem, pela qual conseguia ganhar algum dinheiro.  Tratava-se de um livro tremendamente cacete, Não tornei a vê-lo, de modo algum, em seus últimos anos.

 

- Lawrence e Frieda estão representados em Mark e Mary Rampion, em Point Counter Point, não estão?  O senhor até mesmo segue, em muitos particulares, de maneira bastante aproximada, a história dos Lawrences.

 

Sim, creio que sim, mas somente uma pequena parte da vida de Lawrence se encontra naquele personagem. Não é extraordinário o fato de como todos aqueles que conheceram Lawrence se sentiram compelidos a escrever a respeito dêle?  Escreveram-se mais livros a respeito dele do que a respeito de qualquer outro escritor, desde Byron!

 

- De que modo o senhor escolhe o nome de seus personagens? Ao acaso, como Simenon, em listas telefônicas?  Ou os nomes se destinam a significar algo?  Alguns de seus personagens, em After may a summer dies the swan, têm nomes estranhos.  Acaso tais nomes têm algum significado particular?

 

Sim, os nomes são muito importantes, não acha?  E os nomes menos prováveis não cessam de repetir-se na vida real, de modo que se precisa ter cuidado.  Posso explicar alguns dos nomes que aparecem em After may a summer.  Comecemos por Virginia Maunciple. Tal nome me foi sugerido pelo manciple de Chaucer.  Que é um manciple, afinal de contas? É uma espécie de despenseiro.  Um desses nomes que uma starlet de cinema escolheria, na esperança de ser único, feito sob medida. Ela chama-se Virginia porque parece tão virginal a Jeremy, embora, na verdade, não o seja, e também devido à sua devoção à Madona.  Dr. Sigmund Obispo. Aqui, o primeiro nome se refere, obviamente, a Freud, sendo que Obispo eu tirei de San Luis Obispo, para dar cor local e, também, porque soa de maneira cômica.  E Jeremy Pordage.  Há uma história ligada a este nome. Quando eu era estudante, em Oxford, o Prof. Walter Raleigh (que era um mestre maravilhoso) incumbiu-me de fazer uma pesquisa sobre a literatura relacionada com a Conspiração Papista.  Um dos autores men­cionados por Dryden, sob o nome de "mefistofeliquinho coxo", chamava-se Pordage.  Sua poesia, quando a li no Bodleian, me pareceu incrivelmente má.  Mas o nome era um tesouro.  Quanto a Jeremy, foi escolhido pelo som; combinado com Pordage, soava de modo que lembrava um tanto uma solteirona.  Propter veio do latim, e significa "devido a" - pois, como sábio, ele se interessava pelas causas últimas. Outra razão pela qual escolhi tal nome se deve ao fato de o mesmo aparecer num poema de Edward Lear, Incidents in the life of my uncle Arly.  Vejamos como isso soa, hoje:

 

Como os artigos medas e persas,

Sempre por seus próprios esforços,

Sobreviveu naqueles montes;

Entrementes, ensinava as crianças a soletrar,

Ou, às vêzes, simplesmente berrava,

Ou, então, vendia, nos intervalos,

As Pílulas Nicodemo de Propter.

 

Pete Boone não significa coisa alguma em particular. É apenas um nome americano corriqueiro que se adapta ao personagem. Jo Stoyte, também: o nome significa simplesmente aquilo que parece.

 

- O senhor parece ter-se afastado da sátira, nos últimos anos.  Como encara a sátira, hoje?

 

Sim, parece que mudei, quanto a esse respeito. Mas sou inteiramente a favor da sátira. Temos necessidade dela.  As pessoas, em toda parte, tomam as coisas demasiado a sério, penso eu.  São muito solenes a respeito das coisas.  Sou inteiramente a favor de se espetarem alfinetes nos traseiros episcopais, e coisas assim. Isso me parece sumamente salutar.

 

- O senhor apreciava Swift, quando jovem?

 

Oh, sim! Gostava muito de Swift.  E de outro livro, um livro estupendamente divertido, um dos poucos livros antigos que permaneceram divertidos: The letters of obscure men,' as Episolae Obscurorum Virorum.  Estou certo de que Swift deve tê-lo lido - pois contém muito de seu método.  Em geral, interessa-me muito o século dezoito: Hume, Law, Crébillon, Diderot, Fielding, Pope; embora eu seja muito antiquado para julgá-lo, os românticos são melhores poetas do que Pope.

 

- O senhor, há muito, elogiou Fielding, em seu ensaio Tragedy and the whole truth.  Ainda acha que a ficção pode proporcionar uma visão mais ampla da vida que a tragédia?


Sim, ainda acho que a tragédia não é, necessariamente, a forma mais elevada. A forma mais elevada ainda não existe, talvez. Posso conceber algo muito mais completo e, no entanto, igualmente sublime, algo que é sombrio nas peças de Shakespeare.  Acho que, de certa maneira, os elementos trágicos e cômicos possam ser mais totalmente fundidos.  Não sei de que maneira.  Se tivermos, algum destes dias - como espero que teremos - outro Shakespeare, talvez o vejamos.  Como digo naquele ensaio, Homero conseguiu uma espécie de fusão desses elementos, porém num nível muito simplório.  Mas, no entanto - santo Deus! - como Homero é estupendo! E existe outro escritor realmente sublime que possui essa qualidade: Chaucer.  Oh, Chaucer criou toda uma psicologia partindo de absolutamente nada: uma realização incrível. Um dos grandes infortúnios da literatura inglesa consiste no fato de que Chaucer escreveu numa época em que sua linguagem iria tornar-se incompreensível. Se ele tivesse nascido dois ou três séculos mais tarde, penso que todo o curso da literatura inglesa seria modificado.  Não teríamos tido essa espécie de mania platônica - a separar a mente do corpo e o espírito da matéria.

 

- Isso quer dizer que, embora o senhor, nos últimos anos, tenha escrito menos romances, não pensa menos elevadamente da arte da ficção do que costumava pensar?

 

Oh, não, não, não.  Penso que ficção, biografia e história são as formas.  Acho que se pode dizer muito mais acerca de idéias abstratas gerais, mediante personagens e situações concretas, quer sejam fictícios ou reais, do que em termos abstratos.  Vários dos livros que me agradam mais, dentre os que tenho escrito, são históricos e biográficos: Grey eminence, The devile of loudun, a biografia de Maine de Biran, e Variations on a philosopher.  Todos eles são discussões do que para mim são idéias gerais importantes em termos de vidas e incidentes específicos. E eu talvez deva acrescentar que, provavelmente, toda  filosofia deveria ser escrita dessa forma; seria muito mais profunda e muito mais edificante. É tremendamente fácil escrever-se de maneira abstrata, sem se atribuir muito significado às palavras importantes.  Mas, no momento em que se tem de expressar idéias à luz de um determinado contexto, num determinado conjunto de circunstâncias, embora isso constitua, de certo modo, uma limitação, constitui também um convite para que se vá muito mais além e muito mais profundamente. Penso que a ficção e, como digo, a história e a biografia, são imensamente importantes, não somente por si próprias, por fornecerem um quadro da vida atual e da vida no passado, mas, também, como veículos para a expressão de idéias filosóficas gerais, idéias religiosas, idéias sociais.  Santo Deus!  Dostoievski é seis vezes mais profundo que Kierkegaard, pois escreve ficção. Em Kierkegaard, temos o Homem Abstrato a prosseguir indefinidamente - como ocorre com Coleridge... Ora, isso não é nada, comparado ao Homem Fictício realmente profundo, que tem sempre de conservar essas tremendas idéias vivas, numa forma concreta.  Na ficção, tem-se a reconciliação entre o absoluto e o relativo, por assim dizer, a expressão do geral no particular.  E isso, parece-me, é o que há de mais excitante - tanto na vida como na arte.

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