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Grandes entrevistas

 

Cíntia Moscovich

Entrevista conduzida por Márcio Vassallo e publicada no site http://agenciariff.com.br, em 26/11/2006

- Como é que nasceu o seu novo romance?   

A idéia inicial de Por que sou gorda mamãe, bastante tola e pretensiosa, era uma carta à mãe, nos modelos da potente e arrasadora Carta ao pai, do Kafka. O problema era que, neste diálogo com a tradição, de volta aos mesmos temas, eu estava em franca desvantagem. Kafka é ressentido, duro, triste — apesar de não se arvorar a juízos de valor — e, sobre todas as coisas, capaz de ser belo. Kafka escreve que é um doido: ele expõe, os leitores dispõem. Ninguém pode querer se ombrear a ele, e nesse pecado eu me confundi. Durante seis meses, logo que comecei a escrever o novo livro, fiquei destrinchando minha relação com minha mãe. Ao final, nada me satisfazia. Pior: escrever não estava me dando mais a satisfação que sempre me deu. E, além de não ter mais o prazer da escrita, eu já havia julgado e condenado minha mãe por todos os pecados do mundo. E Kafka vinha me puxar os pés nas assombrações do sono. Eu queria fazer ficção. Mas estava cortando os pulsos em público. Fui para a terapia correndo. A idéia era a seguinte: biografia só durante as sessões. Ou só se eu achasse que dava algo razoável. Deixei Kafka no olímpo que ele merece. Só assim comecei a me divertir escrevendo. Foi quando o escritor Luis Antonio de Assis Brasil, que sempre me acompanhou, se deu conta de que comida era tema recorrente no livro, que o texto tinha alcançado um tom mais jocoso e sugeriu um novo título, exatamente esse que acabei por adotar. Relutei, porque o risco de fazer gracejos tolos sempre existe. Mas, em conversa com Lucia Riff, minha generosa agente, e com Luciana Villas-Boas, minha editora, acabei me convencendo de que a idéia poderia vingar. E eu até podia pensar num acerto de contas com minha mãe, que nunca foi necessário. Saiu um livro que tenta — tenta — explorar a graça que há no trágico. Uma escritora, que é a narradora-protagonista, engorda 22 quilos sem se dar conta. Na tentativa de emagrecer, percebe que a dor também pesa. E vai buscar no passado, nas relações familiares, a explicação da transformação física. 

- Que resposta ela encontra?

A resposta que ela encontra é, óbvio, outra pergunta. A resposta que eu encontrei foi outra: as pessoas se fazem bem até quando se fazem mal. O mal é uma contingência da vida, imprescindível. O amor não se mede pelo bem que as pessoas se fazem umas às outras. É no equilíbrio entre o bem e o mal que se impõe aos outros que se encontra o tanto de amor que se pôde dar. Mães que só fazem o bem correm o risco de criar filhos que estouram de culpa; filhos que só fazem o bem correm o risco de rasgar o coração de suas mães de tanta culpa. Melhor fazer uma maldadezinha de vez em quando, para equilibrar as contas.  

Maldades à parte, o que mora no coração das mães? Uma ansiedade desmedida, um amor maior que elas, um tormento cheio de insônia, uma insônia cheia de esperas, uma espera cheia de buscas? 

Existe um ditado judaico que diz que Deus não podia estar em todos os lugares e, por isso, Ele criou as mães. É um pouco irônico, mas também real: a maternidade é uma parceria direta das mulheres com o Criador. O mundo físico e metafísico mora no coração das mães. A dor todinha cabe nele, a ansiedade, a insônia, a espera, todas aquelas preocupações reais, todo o amor e desvelo vêm do materno e infinito coração. No coração das mães, no entanto, há aquela parcela de humanidade essencial, que não se conta em verso e prosa. Existe o ressentimento, a fúria, a raiva, a brabeza, até as chantagenzinhas rasteiras e superiores — tudo o que elas devem, obrigatoriamente, ensinar a seus filhos para que eles se tornem gente. Coração de mãe é outro mundo, que inclusive contém o mundo como é conhecido. Com tudo o que é preto e branco, líquido e sólido, certo e errado. Mãe é a coisa mais demasiadamente humana que existe.  

Das mães para a literatura, quais são os seus lançamentos mais recentes?

Participo de várias, várias antologias. Se quiseres, posso nomeá-las. O Por que sou gorda, mamãe? é meu quinto livro, minha segunda narrativa longa. Em 2004, lancei o livro de contos Arquitetura do arco-íris. Antes dele, em 2000, saiu o Anotações durante o incêndio, que a Record também reedita agora. No ano de 1998, minha primeira narrativa longa, Duas iguais, veio ao mundo e já ganhou reedição pela Record. Meu livro de estréia é de 1996, O reino das cebolas.  

Em uma entrevista à revista Aplauso, você disse: “Não tem jóia maior para um autor do que a dúvida, a incerteza que semeia a humildade, virtude maior de um escritor”. O que mais alimenta as suas dúvidas?

Hum. Vejamos. As dúvidas se devem à própria circunstância da escrita e do escritor. Certezas não inquietam, não acrescentam, dão ao autor uma suficiência que beira a prepotência e a tolice. Não que um autor que duvide não corra o risco de ser tolo e seja lúcido a ponto de se esquivar da prepotência. Mas duvidar, em literatura, é ter juízo crítico, buscar a melhor forma, tentar vínculos com o leitor. Tenho visto coisas. Já entendi que a humildade e a falta de certezas são necessárias para a escrita e para a vida. Escritores cheios de certezas estão fadados a se afogar numa colher de sopa. Minhas dúvidas se alimentam a si mesmas. A primeira dúvida, a dúvida primordial, aquela da qual todas as outras decorrem, é: “será que isso presta para alguma coisa?”. Nunca soube ou vou saber, graças a Deus. A sabedoria que vejo em algumas pessoas que admiro é irmã gêmea da humildade. Quem me dera um dia chegar lá. Mas ainda sou tentada pelas certezas. Não muitas, felizmente. Mas todo o dia, uma certeza nova vem me tentar. Até quando? Porcaria.  

- Você diz que a humildade é a grande virtude de um autor. Qual você acha que é o maior pecado? 

A soberba. A soberba é a mãe de todos os pecados, grandes e pequenos. Leva à surdez, à cegueira, à paralisia, à birra, à falta de educação, ao apego exagerado e egoísta ao próprio texto. Em situações mais graves, mas nem por isso menos raras, leva ao onanismo, ao auto-elogio, ao narcisismo, à falta de interlocução e à solidão irrecuperável. Do alto da soberba, daquele orgulho de tudo saber e poder, o escritor morre por falta de ar, afogado no vácuo do ridículo. Só no nível térreo dos mortais, sabendo escutar o que têm a dizer os leitores, mais informados ou não, existe a possibilidade de sobrevivência. Todo o resto é, sim, silêncio.  

- Pensamento seu também publicado nessa entrevista: “Custei muito a me considerar uma escritora — considerar-se escritor é um peso danado, sabia? A indicação ao Jabuti pelo meu livro de estréia, No Reino das Cebolas, e algumas resenhas, me assinalaram um bom caminho. Eu podia perseguir a carreira literária. Mas, para isso, tinha de sair do primeiro livro, sair do susto de já ter iniciado algo, quando pensei que a vida inteira eu estaria tentando. E, claro, a vida inteira eu estou tentando e tentando. O início foi assombroso. E o assombro continua, mesmo porque se é obrigado a se superar a gente mesmo”. Em que sentido superar você mesma é mais difícil? 

Em todos. A medida em que se avança, em que se publica o segundo, terceiro, quarto livros, a caminhada fica mais difícil. Primeiro, porque a tentação é reprisar alguns expedientes narrativos que já deram certo: se corre o risco de ficar no plágio da gente mesmo, na zona cômoda da repetição. Também à medida que a carreira avança, os temas, as técnicas e tudo o mais que compõem o acervo de um escritor vai ficando minguado, e o único jeito de continuar é ser inédito e singular mesmo em comparação com nossas obras anteriores. Também fica difícil manter um nível de escrita que satisfaça o grau de exigência — que sempre vai ficando maior. Eu não me perdôo, eu preciso chegar ao máximo, ao texto que vai me inscrever na posteridade. Só que essa rara peça de escrita está adiante. E ela sempre vai ser meu próximo livro. Sempre o próximo. Coisa de malucos.   

- Nesse sentido, você já disse: “O grande livro está sempre por vir, sempre é futuro, nunca é agora, o que se fez e se publicou é o ensaio para alguma coisa que vá se inscrever na biografia da gente como a famosa obra-prima. A pergunta de sempre é: e agora?” Para onde as suas perguntas costumam te levar, Cíntia? 

As perguntas, via de regra, me levam ao desespero. Não o desespero que paralisa, mas ao desespero que me leva à concentração para que eu possa escrever. Escrever é a única resposta. Se bem que escrever é sempre a maior das perguntas. Não fosse eu amar tanto o momento em que escrevo, teria mandado tudo às favas.  

- E para onde a literatura mais te leva?

A literatura me leva ao susto constante. Eu me surpreendo quando a frase sai redonda, limpa, quando corresponde a um sentimento que quero expressar. Me assusto quando alguém fala bem de algo que escrevi. Parece que estão falando de outra pessoa. Ao voltar para o texto que escrevi, me dou conta de que sou eu mesma que escrevi aquilo e que aquilo faz parte das minhas crenças e valores. Não é jogo de palavras, não estou fazendo mitologia, mas raramente penso nas coisas antes de escrevê-las. A literatura me leva a descobrir, de maneira organizada, o que eu penso. E como eu penso. O que é um susto e tanto.  

- De que forma você mais gosta de ser levada? 

Gosto de ser levada pelo ouvido. No momento em que coloco a frase no papel e que, ao mesmo tempo, consigo compor a imagem sonora do que virá a seguir, sei que estou no bom caminho. Não que eu escute vozes, que tenha comunicação com o além. Mas quando as palavras começam a ecoar na cabeça, como se eu as estivesse ouvindo, sei que vai dar samba, e que estou tão concentrada no trabalho que estou sendo levada. Concentração, ainda mais para alguém tão dispersivo como eu, vale meu peso em ouro. Não é pouco.   

- Cíntia, você já disse que uma das coisas mais encantadoras da vida é o convívio com pessoas queridas, principalmente naquelas relações de troca em que os afetos imperam. O que é essencial para o afeto imperar numa relação? 

O afeto não prescinde do próprio afeto. Não é como na paixão, em que o fogo arde na palha de um lado só. Nas relações de amizade, as trocas têm mão dupla. No amor apaixonado, não raro, uma das partes é idealizada. Nas reIações em que o afeto impera, ambas as partes, ou todas as partes, são estão em pé de igualdade. E sempre cabe mais gente, um amigo não descarta o outro. A igualdade dos afetos é a maravilha das maravilhas.  

- Outra frase sua: “O mundo está cheio de pessoas que se levam tão a sério que perderam a capacidade de achar humor nas coisas”. Por que será que tanta gente perde essa capacidade? 

Porque começam justamente a se levar muito a sério, a se colocar num degrau além do humano, a pensar que são grande coisa e que estão acima do deslize e do ridículo. Gente que não sabe rir geralmente é gente que pensa que não erra. Que se acha, que se faz. Só o cara que já entendeu do que tudo se trata e que porcaria acontece até com ele consegue rir. Não sei porque as pessoas perdem essa capacidade. Não tenho a mínima idéia. Estive há pouco na Polônia e visitei Auschwitz. Me impressionei: o guia contava que os presos só freqüentavam o barracão que servia de banheiro uma vez por dia e, assim mesmo, sentados um grudado ao outro, em buracos feitos numa plataforma de concreto, que ficava em cima de uma fossa. Havia um guarda que regulava a função e aterrorizava os presos: eles nunca podiam ficar naquela porcaria de banheiro coletivo e promíscuo mais do que uns dois minutinhos. Sabe como o tal oficial foi apelidado pelos judeus? Senhor da Merda. Isso é o melhor do humor: se dar conta da desgraça e, mesmo assim, encontrar um meio de torná-la mais leve.     

- O que te faz achar humor nas coisas, nas pessoas, em você mesma?

O humor das coisas, eu acho, está no absurdo das coisas, nessa maluquice constante de viver e viver em direção a um ponto que não se sabe qual é. O humor que encontro em mim também vem do meu absurdo, que é infinito e ininterrupto. Eu sou absurda e me considero perfeitamente humana, beirando a normalidade — do lado de cá, do lado da boa maluquice. Por isso, nem de longe quero me levar a sério.  

- O que te faz perder a razão? 

A burrice, o mau caratismo e o nariz empinado. As três coisas são iguais, pensando bem.   

- Perder a razão é sempre ruim, ou também pode ser bem bom?

Pode ser bem bom. Se eu mantiver a razão todo o tempo, enlouqueço. Perder a razão é uma das delícias do mundo.  

- Em que sentido a literatura é uma das razões da sua vida? 

Em quase todos. Sem literatura, muito poucas coisas teriam graça. Claro que outras coisas são razões de minha vida, que não gosto de monotemas. Gosto de viajar, de comer, de beber, de dormir, de sexo. Gosto de minha família, de meu marido, de meus amigos, de meus bichos, de minhas plantas. Mas, às vezes, tudo isso só me parece uma pausa na escrita. No fim, todas essas coisas integram a literatura. A literatura é como os afetos: nela cabe tudo. Já pensou que a literatura pode resumir e conter o mundo? 

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