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Grandes entrevistas

Fernando Sabino

Entrevistado pelo programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo, em 25/12/ 1989.

Jorge Escosteguy: Boa noite, estamos começando mais um Roda Viva. O convidado do Roda Viva desta noite é o escritor Fernando Sabino. Para entrevistar Fernando Sabino esta noite, nós convidamos os seguintes jornalistas e escritores: Ricardo Soares, jornalista da TV Cultura; Sérgio Pinto de Almeida, editor da revista Guia Itália 90; Ruy Castro, escritor e jornalista; Mário Viana, editor assistente da revista Veja São Paulo; Marcos Faerman, repórter especial do Jornal da Tarde e editor-chefe da revista Crises; Osmar Freitas, editor da revista Ícaro; Caio Fernando Abreu, escritor e jornalista da revista AZ e Cláudia Boyago, repórter da Rádio Nova Eldorado AM. Na platéia assistem ao programa convidados da produção. O escritor Fernando Sabino é mineiro de Juiz de Fora e tem 66 anos. Seu livro mais conhecido, O encontro marcado, representa um marco na literatura brasileira por se tratar do primeiro romance moderno urbano escrito na década de 50, e é um sucesso de vendas até hoje. Fernando Sabino escreveu ainda vários livros, como O grande mentecapto, O homem nu, e o último foi o livro de memórias de viagem, chamado De cabeça para baixo. Boa noite, Fernando Sabino.

Boa noite. Antes de mais nada, eu queria fazer um reparo.

Jorge Escosteguy: Faça-o.

Quem é mineiro de Juiz de Fora é o Fernando Gabeira [escritor, jornalista e político que, em 1989, concorreu à presidência da República, obtendo 0,18% dos votos],  não sou eu não.

Jorge Escosteguy: Você é mineiro de onde?

Eu sou mineiro de Belo Horizonte. Tem o Affonso Romano [de Sant'Anna, poeta, ensaísta, cronista e professor, natural de Belo Horizonte] também, que é de Juiz de Fora.

Jorge Escosteguy: Está feito o reparo e a correção.

Fernando Sabino: Rubem Fonseca [escritor e roteirista de cinema, cujas obras geralmente retratam, em estilo seco e direto, a luxúria e a violência urbana, em um mundo onde marginais, assassinos, prostitutas, delegados e pobres coitados se misturam] também.

Jorge Escosteguy: Está feito o reparo e a correção.

Não, eu preferia ser de Diamantina, sabe? Mas infelizmente sou de Belo Horizonte.

Jorge Escosteguy: Você está trancado de novo escrevendo um novo livro, um novo romance?

Não, eu estou pensando em me trancar para ver se consigo escrever um novo livro. É uma coisa um pouco diferente.

Jorge Escosteguy: Está dependendo do quê?

Dependendo de vencer essa preguiça, que é um bloqueio, e, segundo, você sabe, a gente escrever assim sobre uma coisa que você não sabe é como você pretender ir dormir para sonhar alguma coisa que você não sabe o que é. Então dá até um pouco de azar falar nisso, sabe? Porque você pensa que vai sonhar com a Marilyn Monroe e sonha com o Frankenstein não é?

Jorge Escosteguy: Você precisa se isolar para escrever? O isolamento, para você, é uma coisa fundamental?

Tudo conspira contra escrever. Vencer a distância que separa você da máquina de escrever é o mais difícil. Como dizia Sinclair Lewis, se botar naquela postura de quem vai escrever. Escrever, segundo Sinclair Lewis, é a arte de sentar a bunda na cadeira. [risos] Há esse problema do bloqueio, da distância que te separa. Depois que começa é fácil. Aliás como tudo na vida, não é?

Jorge Escosteguy: Eu estou aqui com o livro, vou fazer o merchandising do Ruy Castro, que lançou recentemente uma antologia, O melhor do mau humor, com várias frases, e há frases aqui sobre literatura, e tem uma do Samuel Johnson, que diz: “ninguém, a não ser um idiota, escreve a não ser por dinheiro”. Você escreve por dinheiro, você ganhou muito dinheiro escrevendo, por ser escritor famoso?

Não, se eu tivesse ganho muito dinheiro para escrever, eu não escreveria por dinheiro, eu já teria dinheiro. Mas eu escrevo por dinheiro sim.

Osmar Freitas: Por falar em dinheiro, já dá para viver de direitos autorias?

Dava, até a inflação me comer pela perna. Hoje eu estou igualzinho o Brasil, eu estou gastando mais do que arrecado.

O seu editor paga os seus direitos autorais atualizados pela BTN (Bônus do Tesouro Nacional), ou...?

Não, eu recebo com 90 dias, e esses 90 dias não são “beteenizados”. De modo que quando eu recebo já não tem mais o valor de 10% que teria se recebesse à vista. Mas ele também recebe com 60 dias, 45 dias, há uma defasagem entre a venda do livro e o pagamento ao editor, e ele, por sua vez, transfere essa defasagem para o escritor com uma pequena margem de garantia.

Ruy Castro: Fernando, há uma velha frase de que tudo o que é fácil de ler é muito difícil de escrever. Todos os seus livros são muito fáceis de ler.

Muito obrigado.

Ruy Castro: São difíceis de escrever?

Olha aqui, o elogio que mais me tocou foi feito pela mulher do Hélio Pellegrino, a minha querida Maria Urbana Pellegrino, que diz que foi contar uma história minha para uma amiga, uma história de quatro a cinco linhas, e ela falou: “e eu quebrei a cara porque eu acabei tendo que buscar o livro para ler para ela aquelas cinco frases”. E ela disse o seguinte: “eu descobri que escrever parece com um balé, você vê uma bailarina fazer um passo muito bonito, muito leve, vai fazer a mesma coisa e cai no chão e quebra a perna, foi o que me aconteceu”. E eu fiquei muito tocado por isso, porque realmente custa muito esforço para ser simples, é um trabalho terrível para você conseguir chegar a essa simplicidade que parece que é fácil de ler e, portanto, parece que foi fácil de escrever. E eu fiquei muito gratificado agora de você ter dito que é fácil de ler.

Marcos Faerman: Eu queria fazer uma alusão aqui ao seguinte, numa antiga entrevista sua, o senhor fala do vestibular de hoje em dia, cheio de cruzinhas, em que as pessoas não pensam muito. O senhor até usa uma expressão, que é um “vestibular de mentecaptos”. E tem uma outra referência: “Eu conheço jovens de 20 anos de idade que nunca leram um livro”. Eu fico feliz em comunicar ao senhor que, segundo a revista Veja, na sua última edição, o nosso atual presidente da República [Fernando Collor de Mello], o que foi eleito, diz ali naquela matéria que ele lê cinco livros por ano. Ou seja, ele lê 0,8 de livro em cada dois meses. O que o senhor acha disso?

Depende dos livros que ele lê, né? Sei lá o que ela anda lendo. [risos]

Marcos Faerman: Mas ele está lendo bastante... Cinco por ano...

É. Não, eu acho o seguinte, que esse negócio do vestibular, quer dizer, que dispensava, não sei se ainda é assim hoje em dia, eu estou meio afastado, meio remoto nesse assunto, mas que dispensa o aluno de redigir, impede que ele aprenda a se expressar através da linguagem verbal escrita. E há uma grande diferença entre escrever e redigir. Todo ser humano alfabetizado tem obrigação de exprimir o seu pensamento através da palavra escrita. Há uma grande diferença. Inclusive, eu me lembro muito de uma coisa que me impressionou, foi do Truman Capote, que disse que ele levou muito tempo entre aprender a diferença entre escrever mal e escrever bem, porque ele diz que Deus dá a vocação e o chicote. Então, que a grande diferença entre escrever mal e escrever bem, ele conseguiu aprender com o esforço próprio. Mas, de repente, ele descobriu que havia uma grande diferença entre escrever bem e a obra de arte, aí é que entra o chicote.

Ricardo Soares: Fernando, deixa eu voltar um pouquinho atrás. Em 1942, no dia 10 de janeiro, um rapaz de 18 anos recebia na casa dele uma carta que tinha o seguinte remetente, um endereço: Rua Lopes Chaves, 546. Eu queria que o senhor contasse quem era quem lhe enviou a carta e que importância teve essa carta um pouco para a sua vida literária.

Foi que dia? 10 de janeiro?

Ricardo Soares: 10 de janeiro de 1942.

10 de janeiro de 1942?

Ricardo Soares: 42.

Talvez tenha sido o acontecimento mais importante da minha vida literária.

Ricardo Soares: Eu queria que você falasse quem mandou a carta.

Porque foi exatamente o início de uma correspondência com o morador dessa casa, Rua Lopes Chaves, 546, que todo mundo familiarizado com literatura conhece, porque ele tem, inclusive, um poema que fala nisso: “aqui nesta rua Lopes Chaves”, Mário de Andrade. Eu tinha o quê? Em 1942 eu estava com 18 anos, tinha acabado de publicar um livro de contos. E tinha mandado esse livro para ele, e ele me respondeu com essa carta, que foi uma coisa fantástica na minha vida, foi um grande acontecimento. E a partir daí nós iniciamos uma correspondência, em que ele, com uma paciência bovina, agüentou esse rapazinho pernóstico, e desaforado, e tímido, e atrevido, que escrevia perguntando tudo, e ele se dispôs a responder tudo, todos os grandes problemas que passam pela cabeça de um quase adolescente.

Ricardo Soares: Que tipo de lição você tirou dessa correspondência?

Do ponto de vista literário, todas que eu podia tirar, e do ponto de vista humano também. Nós vivíamos numa época em que estava sendo questionado o problema da participação do artista em relação ao mundo porque era a época da Guerra [Segunda Guerra Mundial], época do fascismo em plena efervescência, o Brasil entregue à ditadura de Getúlio. Tudo isso provocava uma necessidade de participação ativa do escritor com relação aos problemas de seu tempo. E o Mário era muito imbuído disso, e nos conscientizou muito com relação a isso. Eu me lembro que tinha coisas assim que ele dizia: “a consciência é gratuita, mas a convicção é adquirida”. A consciência, todo mundo tem, agora, você adquire uma convicção – que nós sejamos até inimigos por convicção, mas que você se prepare para viver por essa convicção e, se preciso, morrer por ela. Essa lição me marcou muito fundo. E eu achei que o caminho que ele ditou para mim dentro da arte era o caminho que eu sempre persegui dentro da literatura, que é o caminho do nhem-nhem-nhem, de ir devagarzinho, de não querer arrombar a porta aberta, de não querer vencer da noite para o dia. Ele até cita alguns que tentavam vencer da noite para o dia. Se você está familiarizado com as cartas, você deve se lembrar. Foi uma experiência absolutamente extraordinária e que jamais se repetirá com ninguém. Hoje eu até sofro um pouco com isso porque às vezes tem pessoas que me escrevem cartas - jovens - esperando, tendo lido o livro das cartas dele, esperando que eu faça o mesmo papel. E, primeiro, eu não sou Mário de Andrade, eu não tenho competência para isso. Eu ainda estou querendo receber carta dos outros me ensinando as coisas. Agora, quem sou eu para ensinar a alguém alguma coisa?

Cláudia Boyago: Fernando, você disse que é difícil escrever sobre o que não sabe. O que vem primeiro para você, a vontade de se trancar para escrever um livro ou é uma boa idéia?

Cláudia, outro dia me fizeram a seguinte pergunta: se você tivesse que começar de novo, você escolheria ser escritor? Falei “de jeito nenhum, escolheria ser músico de jazz”. O Ruy sabe disso. Já que podia escolher, não ia escolher bateria, escolhia piano, por exemplo, uma coisa assim, mas eu tenho que me conformar com a bateria. Aí eu contei essa história para a minha mulher, ela falou: “Mas, Fernando, você não escolheu ser escritor não, você foi escolhido”. Eu achei isso muito bom, muito bem observado, porque não é uma maldição, você nasce com um estigma, marcado para uma determinada tarefa que transcende as suas possibilidades. Então é a maneira de eu chegar ao limite de mim mesmo. E eu sou defasado com relação à realidade, eu sou um mentecapto, meu bem. Para poder atingir a normalidade eu tenho que escrever. Isso que me faz chegar ao nível dos meus semelhantes. É essa a atividade. Então é compulsivo escrever. Eu não sei o quê. Porque eu estou convencido de que o escritor que lida com a imaginação criadora, ao contrário do cientista, do professor, do ensaísta, ele escreve sobre aquilo que não sabe exatamente para ficar sabendo. Eu fico assim: “que diabo é isso que me atormenta?” Então eu tenho que escrever para saber o que é, inventar histórias, e tal.

Cláudia Boyago: E eu complicaria a pergunta perguntando quando você sentiu então que isso era uma coisa que falava mais alto para você?

Quando eu comecei assim, você diz?

Cláudia Boyago: Isso.

Quando eu era garoto, eu tinha, por exemplo, nove, oito anos, quando eu comecei a me entender por gente, a partir dos sete, oito anos, eu descobri que eu tinha uma vocação irresistível, incontrolável, extraordinária, arrasadora para a mentira. Eu mentia descaradamente, [risos] eu falava mentira para todo lado. Minha mãe me perguntava: “Aonde é que você foi?” Eu falava: “fui à praça”. “Fazer o quê?” Não tinha ido à praça, estava no quarto. Inventava mentira para todo lado, e não sei por que diabo eu tinha essa compulsão. Depois eu comecei a ambientar essas mentiras, sabe? Eu ia assistir um filme, por exemplo, ou lia um livro de aventuras assim de garoto, e começava a contar para os meus companheiros e inventava episódios que não tinha, mudava o enredo todo, enfiava personagens. Daí eu pensei que eu podia eu próprio começar a escrever as minhas próprias histórias, e foi assim que eu comecei, desviando essa mitomania para a literatura.

Jorge Escosteguy: Nós estamos a quase vinte minutos do programa. Quantas mentiras você já contou aqui para nós?

Para mim, todas. [risos] Você sabe que eu não sou meu tipo, mas eu evidentemente não tenho mais nada mais a falar senão de mim mesmo, eu não sou especialista em nada, a não ser feito Jânio Quadros, especialista em idéias gerais. De modo que eu tenho que me conformar e falar de mim mesmo. De vez em quando me dá uma chateação tão grande que eu tenho vontade de mentir desvairadamente, mudar tudo, dizer que eu nasci em Pernambuco, dizer que eu vou escrever meu primeiro livro agora...

Marcos Faerman: Aliás, o García Márquez é conhecido como o maior mentiroso, ele adora mentir, cada entrevista que ele conta, ele já cabula, inventa coisas.

Jorge Escosteguy: De repente você disse em algum lugar que você nasceu em Juiz de Fora, por isso que a gente falou...

É muito possível. Mas, você sabe por quê? Existe um poeta mineiro, poeta popular, um soldado, que tem um poema assim: “nasci em Guaxupé, no Sul de Minas, criei-me em Juiz de Fora entre a gentalha, amei tanto o bom como o canalha, abracei da mulher santa às messalinas”. É o meu caso. Eu servi no Exército em Juiz de Fora. Foi isso. Eu morri em Juiz de Fora.

Caio Fernando Abreu: Na minha modesta e às vezes confusa opinião, você é autor de um dos romances mais bonitos da literatura brasileira contemporânea, que é O encontro marcado.

Com certeza eu recebi e estou recebendo elogios aqui, está muito bom isso. Eu pensei que ia ser massacrado. [risos] Todo mundo que eu falava: “Mas você vai no Roda Viva? Ih, você está perdido”.  “Mas o que eu fiz?” Que bom você falar isso.

Caio Fernando Abreu: Vou até falar um clichê que você já deve ter ouvido isso muitas vezes. Quando eu tinha 17, 18 anos, eu li O encontro marcado, e foi determinante para me tornar um escritor, eu acho que isso aconteceu com muita gente. Bom, e na seqüência eu acho que você publicou pouca ficção; se a gente pensar no O encontro marcado, depois tem O grande mentecapto, tem algumas novelas, alguns contos. Eu queria saber se o fato de você ter passado a escrever crônica para jornal dispersou um pouco o ficcionista Fernando Sabino.

Olha, eu não sei. Antes de mais nada, eu quero te cumprimentar porque você teve realmente um destino muito mais brilhante do que o personagem do livro, porque ele não conseguiu se realizar como escritor e você conseguiu. Agora, o que acontece é o seguinte: eu gostaria de, evidentemente, guardadas as proporções, todo mundo que escreve no Brasil tem como modelo e como inspiração um exemplo que é o do Machado de Assis. E o Machado de Assis era um sujeito, você poderia dizer, pela numerosa obra de crônicas, de espaços, de matéria eventual reunida em livro, que é quase esmagadora em relação a quatro ou cinco romances importantes que ele escreveu, na realidade, três.

Caio Fernando Abreu: É verdade.

Brás Cubas, Memórias póstumas e Dom Casmurro, que são os grandes livros dele, e os outros... Então eu estou me defendendo com ele. Quer dizer, eu acho que não, eu acho que de qualquer maneira eu tenho um livro de novelas, A vida real, depois tenho um livro, o romance O encontro marcado, O [grande] mentecapto, O menino no espelho e Faca de dois gumes. Quer dizer, já são cinco livros.

Caio Fernando Abreu: Você acha a crônica menor em relação à ficção?

Necessariamente... Olha aqui, vamos plagiar o Mário de Andrade, e ele dizia que conto é tudo o que chamamos de conto, ou tudo o que o autor chama de conto. O que é crônica, afinal de contas, é uma coisa muito indefinida, porque a crônica vem, com o correr do tempo, essa condição dela ser decorrente de uma atividade jornalística, que foi se tornando literária ao tempo de Machado de Assis, depois veio se tornando social, ao tempo de Ibrahim Sued [(1924-1995), filho de imigrantes árabes, era colunista social, compositor e um dos jornalistas mais famosos da década de 70], de modo que a coisa vai ficando meio... A crônica política... Hoje nem se chama mais de crônica, chama-se de coluna, ou então, agora tem um novo termo para os comentaristas políticos, que são cientistas políticos.

Caio Fernando Abreu: Cientistas políticos, ou articulistas.

Articulistas. Eu me lembro que quem começou com esse negócio de colunista foi o Samuel Wainer , porque nós trabalhávamos juntos no Última Hora, e ele fazia uma coluna, que era uma coluninha, chamava-se Por Detrás da Coluna, uma coisa assim, e ele botava: “Este colunista está seguramente informado”, e todos os jornais transcreviam dizendo: “Este comunista” [risos] porque ninguém sabia o que queria dizer aquilo. Eu acho que a crônica não é um gênero menor não, haja vista Rubem Braga, que é essencialmente cronista, nunca fez, fez um outro poema eventual, mas fez poemas em prosa maravilhosos a que ele chama de crônica, fez contos maravilhosos a que ele também chama de crônica. De modo que eu acho que é um gênero realmente... Uma vez, sabe... Eu posso contar um casinho aqui?

Jorge Escosteguy: Claro.

O Guimarães Rosa me telefonou, perguntou: “O que você está fazendo?” Falei: “estou tentando escrever uma peça de teatro”. Ele disse assim: “Não faça biscoitos, faça pirâmides”. E eu fiquei massacrado. Falei: quer dizer que na literatura Jorge Luis Borges ou você é biscoiteiro ou você é faraó, não tem jeito. E fiquei humilhadíssimo porque eu falei: minha obra é uma padaria. [risos] Eu faço pão toda noite para vender de manhã para o jornal. Aí, para encerrar esse caso, de repente eu fui salvo porque eu comecei a meditar e descobri que ao longo da literatura tem muitos biscoiteiros, a começar pelo Machado de Assis. Você quer maior biscoiteiro que?

Caio Fernando Abreu: Clarice Lispector

Clarice Lispector. E toda essa obra às vezes massacrante, do próprio Rosa, que é uma pirâmide fabulosa, nem sempre é o necessário. Tem escritores menores que também... Manuel Bandeira

Sérgio Pinto de Almeida: Fernando, biscoiteiro ou faraó, não sei exatamente, e não vai nenhum tom negativo, claro, mas você carrega a sina de ser o autor de O encontro marcado. Você é o autor de O encontro marcado e outros. Você é apresentado como autor de O encontro marcado. O que houve na feitura do livro, no sucesso do livro? Houve uma superação sua, no sentido do “gol de placa” que você fez com a sua vida literária, ou você captou um sentimento que não tinha ainda sido traduzido numa obra literária?

Não, eu diria que não captei um sentimento que não tinha porque não tenho essa pretensão, eu acho que a literatura é sempre a mesma ao longo dos tempos. Eu posso até te dar dois exemplos, e que são livros que de certa maneira eram protótipos do meu livro. Um é  A educação sentimental, do Flaubert, e outro, This side of Paradise do Scott Fitzgerald. Esses livros, que eu tinha por eles a mais rasgada admiração, ainda tenho, que me influenciaram muito na época, e que serviram muito de inspiração para O encontro marcado. Mas no [O] encontro marcado, sabe o que é, Sérgio? Não é mérito meu nem mérito do livro, é mérito da juventude que todo mundo tem, porque o livro coincide, esbarra, bate naquele momento da juventude em que você vai decidir, que você descobre que não é eterno nem genial. Há uma hora em que você descobre que você é apenas talentosinho.

Sérgio Pinto de Almeida: Você não mentiu no livro?

Não, não. Eu procurei ser honesto e jogar tudo na mesa e não blefar. Agora, eu acho que esse é o papel do artista. Então, para encerrar o caso de O encontro marcado, ele corresponde a uma necessidade de expressão que todo jovem tem e não é só no Brasil não, e por isso que ele se mantém ao longo do tempo, porque o jovem é eterno, ele é sempre o mesmo. Tanto assim, que você vê que a referência que ele fez é sempre uma referência: “este livro, quando eu era jovem, quando era moço, quando estava começando, me influenciou muito”. É raro encontrar uma pessoa de mais de 40 anos que se interesse pelo livro, senão como reminiscência de si próprio, compreende?

Mário Viana: Fernando, lendo os seus livros, seus relatos de viagem, a gente fica morrendo de vontade de viajar também. Eu lhe faço uma pergunta: você tem medo de avião?

Não diga isso. Eu já tive muito medo de avião. E, olha, eu perdi o medo de avião porque eu fiz toda a campanha, eu fiz a cobertura da campanha de Juarez [Fernandes do Nascimento] Távora [(1898-1975), militar e político cearense, foi candidato à presidência da República em 1955 pela UDN] contra Juscelino Kubitscheck [(1902-1976), médico, militar e político brasileiro, conhecido como JK, foi presidente do Brasil entre 1956 e 1961, famoso pelo espírito desenvolvimentista cunhado na frase "cinquenta anos em cinco"] para o Diário Carioca, numa época que você talvez não era nem nascido, foi em 1955, e nessa época eu tinha tanto medo de avião que eu ia para a cabine do piloto para poder ver como é que era aquilo, porque nós viajávamos, nós visitamos 150 cidades em 120 dias. Agora, de repente eu descobri que eu tinha mais medo do Juarez do que de avião. [risos]

Ricardo Soares: Por quê?

Porque ele era uma usina cívica. O Juarez era um homem de uma humildade, ele dava soco na mesa, dava soco no ar, dava soco em qualquer lugar. Olha, o Collor "é pinto" em matéria de dar soco no ar.  [risos]

Marcos Faerman: Você tem medo do Collor?

Não. O que é isso? Eu tenho vergonha [risos]. Mas, voltando ao Juarez, você diria, por exemplo... Eu estava lendo Dostoievski. Ele falou: “O que você está lendo?” - isso no avião - “Dostoievski”. “Mas o problema da Rússia naquela época do Dostoievski é muito diferente do nosso problema. Você vê, por exemplo, nós temos problemas aqui”. E começava a disparar a falar dos problemas. De repente eu mostrava uma paisagem bonita no avião, ele falava: “tem muito aluvião, o problema do aluvião aqui” [risos] Então eu fiquei com medo dele e perdi o medo de avião.

Osmar Freitas: Basicamente são duas perguntas, mas eu vou tentar juntá-las. Primeiro a questão de crônica. Como eu tive a honra de dividir com você o mesmo espaço no O Estado de S. Paulo, de cronista, eu gostaria de saber o que há, você saiu das crônicas do Estado, o que há hoje em dia com as crônicas? Por que falta crônica no país? Por que os jornais não dão tanto espaço quanto davam antigamente? Aí vem embutida a outra pergunta: será que é porque o país está cada vez mais analfabeto?

Não, são realmente duas perguntas que eu dou três respostas. Primeiro é essa, porque eu estou absolutamente sensibilizado porque eu só recebo elogio aqui. Ele diz que se sente honrado. Eu que me sinto honrado por ter sido substituído por você. Não vem com essa que não tem. Em matéria de "rasgar seda" eu sou melhor do que você. [risos] Deixa eu te falar. O negócio é o seguinte: eu acho que houve uma evolução muito grande no jornalismo, o jornalismo que era o veículo natural. O jornalismo de jornal, de revista, dos órgãos de comunicação. Primeiro com o advento do audiovisual, e, segundo, com o fato dos órgãos de imprensa terem se tornado mais órgãos de grandes empresas do que propriamente órgãos em si na divulgação de notícias e de fatos, de obras literárias e culturais. A crônica perdeu um pouco o lugar no jornalismo, essa que é a verdade, a crônica literária. Eu sinto que ela foi subjugada, ultrapassada por um fenômeno de nosso tempo que é terrível, e que eu gostaria que não existisse: é que hoje a comunicação se sobrepõe à expressão, comunica-se mais do que se exprime. E isso é dramático para todo mundo que trabalha com a imaginação criadora, como é o seu caso. Você sente que há uma pletora de comunicação do nada, do vazio, da repetição, da bobagem, do "blá, blá, blá". E isso [porque] é preciso encher espaço, é preciso faturar, é preciso não parar, e seria até necessário que houvesse de repente uma parada. Não se publica nada durante seis meses.

Marcos Faerman: O senhor propôs que uma vez por semana a TV saísse do ar.

Eu acho mais, eu defendo a tese que a televisão deveria repetir o programa todo dia, como é em cinema.

Marcos Faerman: O Sílvio Santos repete o mesmo filme.

Isso é verdade. No fundo ela não faz outra coisa, não é?

Ricardo Soares: Fernando, você nunca foi convidado para escrever para televisão, nunca te atraiu fazer novela, caso especial? Você despreza a televisão ou você gosta?

Nunca fui convidado não, e parece que eles desconfiam da minha completa, total e definitiva incompetência. É outro ramo, é outro meio de que eu não tenho a menor noção. Eu só sirvo para comparecer a saunas feito esta aqui, acho extraordinária, acho fabulosa, me sinto honrado, gratificado...

Caio Fernando Abreu: Fernando, a propósito da pergunta do Ricardo, no último Festival de Cinema de Gramado havia dois filmes de textos seus, era O grande mentecapto e a Faca de dois gumes, e os dois excelentes, principalmente o Faca de dois gumes. Ninguém se interessou em filmar O encontro marcado?

Muitos.

Caio Fernando Abreu: Por que não aconteceu no cinema até hoje?

A quantidade de filmes que eu não fiz... Eu não fiz filmes com todos os grandes diretores brasileiros. [risos] Você não fala um que eu não tenha deixado de fazer um filme com ele.

Caio Fernando Abreu: Quem quis filmar O encontro marcado?

O Eduardo Escorel, por exemplo, foi um que levou a sério, chegou até fazer o... Eu tenho a impressão que... O Glauber quis fazer. Só O encontro marcado tem uns cinco ou seis. Mas o que foi mais longe foi o Eduardo Escorel. Chegou a começar a fazer o roteiro, chegou a montar uma produção.

Caio Fernando Abreu: Você chegou a vender os direitos para ele?

Mas, primeiro, o que acontece com o cinema é que o sujeito sai com dez projetos para conseguir realizar um. Eu acho que o cineasta que consegue projetar um filme de longa metragem num circuito comercial já é um herói. O filme pode ser uma desgraça. Aqui no Brasil ainda estamos nesse nível.

Jorge Escosteguy: Agora, os escritores em geral não gostam do resultado das adaptações para o cinema. Você gostou das adaptações dos seus livros?

Muito, e inclusive continuando a responder a pergunta dele, eu também acho os dois filmes excelentes, apenas cada um no seu gênero. Houve dois procedimentos. Eu aprendi com o Jorge Amado e com o Guimarães Rosa uma lição. Quando começaram a me pedir para fazer filmes de histórias minhas, ambos disseram mais ou menos isso, e eu concluí que você tem três posturas a assumir: ou negar, não aceita e está acabado; ou você entrar de cabeça, participar, fazer parte da produção, da elaboração do roteiro, do cenário, de tudo, da locação, dos personagens, de tudo, dos atores, tal, e até a promoção do filme na sua estréia; ou simplesmente tirar o melhor proveito econômico daquilo, pedir um bom pagamento pelos direitos autorias, pela cessão dos direitos autorais, e assistir pagando ingresso.

Jorge Escosteguy: Qual foi a sua opção?

Essa minha opção foi a última, foi tirar o melhor possível daquilo que eles pudessem me pagar e ir assistir pagando ingresso. Mas ambos tiveram uma atitude muito correta e digna, porque isso era até meio parte do nosso acordo contratual, de que eu não me meteria, apenas gostaria de ver o resultado, o roteiro para aprovar, porque podia ter alguma coisa inconveniente para mim. Mas não tinha. Não só não tinha como eles foram extremamente decentes, inclusive muito generosos para com essa minha postura de só escritor. Submeteram o script às minhas opiniões. Eu dei opinião, fiz e aconteci.

Jorge Escosteguy: Pagaram os direitos?

Pagaram direitinho. Há uma discrepância entre o que paga de sinal e o que depois você tenta arrecadar da Embrafilme. Aí é outra desgraça, outro papo...

Ricardo Soares: É uma novela.

E a parte fixa vai, mas a parte variável... Tem uma parte fixa e tem uma parte variável. Só acabando a pergunta dele, o primeiro, que foi O grande mentecapto, teve uma fidelidade literal à obra original. E o segundo, ele declaradamente, por necessidade de co-produção, que é uma co-produção franco-brasileira. O Murilo Salles . O primeiro foi o Oswaldo Caldeira [(1943-), escritor e cineasta mineiro], admirável como diretor. O segundo já me preveniu que a minha história ia servir apenas de trampolim, ia ser meia hora de motivação para uma outra história. Ele até usou uma expressão muito feliz na minha opinião: “Vou transformar um drama psicológico num drama policial”. E foi o que ele fez.

Cláudia Boyago: Fernando, eu queria saber se você sente saudade de escrever para o jornal, e se tem alguma coisa que você gostaria de fazer ainda que você não fez.

Em jornal?

Cláudia Boyago: Não, como escritor.

Pensei que você ia falar como homem, aí eu não ia poder contar.

Cláudia Boyago: Como escritor, se você gostaria de ver alguma história sua de alguma forma?

Do mundo de intenções, o meu inferno literário está cheio. Você não faz idéia. Para cada coisa que eu publico tem pelo menos dez que eu não publiquei. Você pode dar essa proporção, um décimo do que eu escrevo é o que eu publico, literalmente. Esse último livro que eu publiquei, que parece ao leitor mais apressado umas crônicas de viagem, De cabeça para baixo, mas na realidade eu levei quatro anos para fazer esse livro, note-se que a última viagem é de 86, levei três anos para fazer o livro, e fiz seis versões diferentes, 1400 páginas para apresentar 300. Quer dizer, às vezes eu penso que eu não sou escritor, inventaram que eu sou escritor, porque eu não tenho a menor facilidade de escrever. Agora, respondendo à pergunta do jornal que ele também fez, que estava embutida na pergunta dele, o que acontece comigo é que eu vivia na dependência de escrever toda semana – ele deve saber o que é isso – eu me sentia como uma cozinheira que acabou de fazer o jantar, servir o jantar, lava as panelas, guarda, e já tem que tirar tudo de novo para fazer o almoço. E não pára nunca isso. Então eu estava feito um cano furado, eu estava perdendo no cotidiano aquilo que podia ser aproveitado de maneira mais essencial. Disso dependia e depende a minha subsistência econômica. Eu levei um baque terrível parando de escrever porque mais da metade do que me sustenta vinha do jornal. Eu distribuía, fazia e acontecia e me exauria naquilo. Então de repente eu percebi que agora eu quero escrever o que eu quiser, e não o que o jornal espera que eu escreva, compreende?

Ruy Castro: Fernando, a maioria do que você escreve, principalmente as crônicas, é muito confessional, pelo menos você fez na primeira pessoa ou do singular ou do plural, quando você bota a Lygia [Lygia Marina de Moraes, foi casada com Fernando Sabino, musa inspiradora da música "Lígia" de Tom Jobim] nas histórias também. E são todas histórias muito engraçadas, suponho que aconteceram com você, se você não estiver mentindo, evidentemente. Então, quer dizer, pode-se concluir que a sua vida é uma grande crônica do Fernando Sabino?

Talvez. É uma boa definição. Uma pequena crônica do Fernando Sabino, vamos ser mais modestos. Mas reportando à mentira, deixa eu fazer um reparo aqui, que inclusive está feito naquele meu livro Tabuleiro de damas, que se chama assim, para quem leu ou chegou a me ouvir falar nisso, porque eu já cansei de usar essa metáfora, é de que o tabuleiro de damas não é nem preto com quadrados brancos nem branco com quadrados pretos, ele é de outra cor com quadrados pretos e brancos. Esta outra cor é que simboliza o esforço do escritor em ir buscar uma verdade que se esconde além da realidade. Não é uma mentira. A realidade é que é mentira. Você vai buscar uma verdade que está só no sonho, que está na fantasia, que está na imaginação criadora. Essa verdade, às vezes, não bate com a realidade, essa verdade ultrapassa. E, às vezes, você tem que realmente inventar para descobri-la. Então não é propriamente uma mentira no sentido pejorativo, é uma liberdade poética, vamos dizer assim. Agora, voltando à crônica, se é aquilo que aconteceu ou o que poderia ter acontecido, e que se não aconteceu vai acontecer. É um pouco o prolongamento. Porque a vida da gente, Ruy, é uma espécie de projeção na imaginação de tudo o que você está pensando, existindo. Ele estava falando no cinema... Cada um tem o seu... Você pergunta: “O personagem equivale ao personagem que você imaginou, ele corresponde?” Falo “não, cada um que lê o livro projeta um filme na sua imaginação”. Então a gente está sempre vivendo na cabeça um filme, está projetando através da sua imaginação audiovisual uma história, um filme, uma coisa, e isso é a crônica que a gente escreve.

Ruy Castro: Pois é, mas pelo que eu conheço de você, eu acho que é verdade que você todo dia acha dinheiro na rua, como disse várias vezes.

Agora não é vantagem mais. Agora, eu já achei dinheiro, depois que deixou de ser vantagem, eu achei uma libra em Londres da última vez que eu estive lá, há dois meses, uma libra, daquela douradinha, na rua, e achei lá no Canadá 25 cents, e o canadense é pão-duro para burro, ele não joga dinheiro fora não. E eu achei num momento em que estava precisando de 25 cents para pagar um pedágio, tinha que ser trocado, e eu não tinha. E eu então falei: “eu vou dar um jeito”. A Lygia estava desesperada, dirigindo. Tinha um funil para jogar moeda, e nós não tínhamos a moeda, e tinha uma fila de mais de 100 carros atrás de nós. Eu falei: “vou dar um jeito nisso”. Abri a porta, andei três passos e apanhei uma moeda no chão, falei: “está aqui a moeda”. Deus existe, viu.

Ricardo Soares: Fernando, a gente estava falando de cinema agora há pouco, e a pergunta do Caio e da adaptação dos seus filmes, você tem uma experiência atrás das câmeras como diretor na Bem-te-vi Filmes, quando você filmou um pouquinho da vida do Carlos Drummond de Andrade, do Rubem Braga. Eu queria que você contasse essa passagem, e se isso auxiliou o escritor Fernando Sabino. Eu queria que você contasse.

É verdade, eu tive essa experiência, e não só essa como outra também na área comercial. Há muito tempo que eu tinha experiência de fazer roteiros, fazer itinerários para cinema, para tipos de filme assim do Jean Manzon, de Rosemberg, Carlos Niemeyer, Canal 100. Eu e Paulo Mendes Campos [(1922-1991), escritor e jornalista mineiro] ganhávamos a vida fazendo textos, e a gente tinha que falar assim: “olha, pior do que isso eu não sei fazer, você me desculpe, vê se você me ajuda”. Nós tínhamos uma lista de lugares-comuns para poder usar. Quando você assistir um filme desses assim daquele tempo, que diz assim: “Rasgando caminhos para o progresso”, fomos nós que fizemos, fui eu e o Paulinho. [risos] Então era uma companhia de “fazeção” de textos. Nós fazíamos juntos. Depois disso eu fiz com o Davi Neves, a Bem-te-vi Filmes, e com o Mair Tavares, e nós fizemos não só uma série de dez escritores brasileiros contemporâneos, porque tinha vontade de preservar uma imagem do sujeito ao vivo, compreende? A gente imaginava assim que o Machado de Assis pudesse ser visto hoje conversando com a Carolina [mulher de Machado de Assis], indo para Academia [Brasileira de Letras], e andando em casa de suspensório e de chinelo... Enfim, fizemos dez escritores, que você sabe. Carlos Drummond, Érico Verissimo, Vinicius, Bandeira, são dez. E fizemos uma série de filmes, documentários sobre a participação do Brasil em feiras internacionais só para pagar a nossa viagem.

Ricardo Soares: Que nota você se daria como diretor de cinema?

Olha aqui, eu não sei dirigir ator, e eu não sou câmera porque eu não sei piscar o olho direito, ou esquerdo, e todo visor de câmera fica do lado, eu tenho que tapar um olho com a mão. De modo que nem diretor porque ator profissional eu não saberia dirigir. Eu sou palpiteiro, sabe, e palpiteiro não tem nota nenhuma.

Marcos Faerman: Em 57, Carlos Lacerda escreveu uma crônica em sua homenagem, na qual disse que o senhor era o único brasileiro conhecido em 500 anos deste nosso Brasil que tinha devolvido um cartório para o governo. E ele fez essa homenagem assim num texto chamado O cartório ou a vida, e disse que Fernando Sabino devolveu ao governo o cartório do qual era titular, e esse é um gesto inédito na história da República..

Como é que você sabe disso? Você nem era nascido também.

Marcos Faerman: Rato de arquivo de jornal. Então, como que é essa história do cartório do escritor? Porque o senhor ficou falando em dinheiro, dinheiro, mas parece que o senhor teve bastante dinheiro na mão e jogou pela janela, que era o cartório.

Joguei pela janela não.

Marcos Faerman: Como é a história do cartório?

Fernando Sabino: É o seguinte, é que assim como eu hoje cheguei à conclusão de que eu não passaria dos 60 anos dependendo de escrever para jornal, eu cheguei à conclusão de que eu não passaria dos 30 dependendo de um cargo público, ainda mais de um cartório que me foi dado porque eu era casado com a filha do governador. Então eu não fiz nada por merecer. Quando eu me separei dela, eu não tinha mais razão de ter um cartório. [risos] Foi isso.

Sérgio Pinto de Almeida: Fernando, eu queria mudar do cartório e da vida literária. Você disse que tem vergonha do presidente recém-eleito. Eu queria saber como um intelectual hoje, um escritor, um pensador como você, vê o Brasil.

Caio Fernando Abreu: Só complementando, eu queria perguntar isso mesmo. Ele perguntou a você se você sentia medo do Fernando Collor, e você disse que não, que sentia vergonha. Eu também sinto muita vergonha. Eu queria saber a sua opinião sobre ele, como é que viu esses cinco anos que nós vamos ter que engolir, um cara que está dizendo que vai fechar o Ministério da Cultura.

Marcos Faerman: Mas que lê cinco livros por ano.

Mário Viana: Você sempre se disse um otimista. Dá para continuar sendo otimista com todo esse panorama?

Eu sou otimista porque o otimista erra tanto quanto o pessimista, mas ele sofre muito menos, [risos] ele só sofre uma vez, e o outro sofre duas, sofre antes e depois. Respondendo à pergunta do Sérgio, o que eu acho é o seguinte. Eu parto do princípio de que o brasileiro precisa um pouco de perder esse vício, esse cacoete de transformar os políticos em líderes e esperar que eles desçam do céu como um “fuhrer”, para resolver os problemas, de mitificar os nossos líderes, de fazer deles salvadores da pátria. Eu acho que a democracia é um regime, a democracia que eu ambiciono, a social democracia, o regime federativo, o sufrágio universal, independência de poderes, liberdade de pensamento, essa coisa toda que nós sabemos perfeitamente, e com justiça social, isso é inerente ao sistema ideal que eu tenho como social democracia. Acho que então a instituição tem que ser consolidada de tal maneira que quem quer que seja, basta ser um homem de bem que chegue lá pelo voto, pelo sufrágio universal, há de cumprir o seu dever e dançar de acordo com a música. É esse o ideal. Eu faço uma rememoração rápida, posso cometer algum equívoco, mas pega um exemplo de democracia presidencialista, eu sou parlamentarista, eu acho que seria a solução para o Brasil como é para o resto do mundo, com exceção dos Estados Unidos. Então peguemos os Estados Unidos. Estados Unidos teve, depois da Guerra tinha... Durante a Guerra morre um grande estadista, reconhecidamente um grande estadista, que era o Roosevelt, e assume um político de segunda categoria, que era o Truman. E esse homem ganhou a Guerra também. Foi o homem que teve a responsabilidade de soltar a bomba atômica. Depois disso, em vez do Stevenson, que era um grande estadista a ser eleito, foi eleito o Eisenhower, que pode ser um grande general, mas era um sargentão como político. No entanto teve dois mandatos e se saiu direitinho. E vai por aí afora uma fileira de homens medíocres: o Johnson, o Ford , o Nixon, que não dançou de acordo com a música e “dançou”. E chegamos a esse cowboy chamado Reagan, que saiu direito. Tudo muito bem. Com isso eu quero dizer, sem dar por mérito esse pessoal, mas simplesmente reconhecendo que os regimes, que o sistema está acima das pessoas, que nós teríamos aqui possibilidade de vir amanhã a ter um regime consolidado através dessas instituições, que é a Constituição, que é o regime federativo, e tudo mais. Então, o que acontece? Só que você não transforma o Brasil numa Inglaterra ou numa Suíça da noite para o dia. Isso leva tempo. A cada passo que a gente está indo nós estamos conquistando terreno. Essas eleições foram muito boas, eu achei excelente. Não podia ser melhor. Não tem ninguém melhor. Quer dizer, o povo não escolheu ninguém melhor. Vamos reconhecer que o povo é que escolheu. Está certo? Com todos os erros. A próxima eleição vai ser melhor. O ano que vem nós vamos ter boas surpresas porque vai haver renovação do Congresso, vai haver uma oposição consolidada em torno de princípios mais ou menos efetivos, e que vão exercer esses princípios para coibir os desmandos do poder, compreende? Então tudo isso vai estar funcionando. É que nós estamos mergulhados muito dentro da lama para poder ver, ter perspectiva, mas qual o país da América Latina que chegou a esse ponto? Nós estamos melhores do que todos eles.

Jorge Escosteguy: Vou só fazer uma advertência aos telespectadores, que ninguém jogou água no Fernando, ele simplesmente estava suando e tirou o casaco no intervalo.

Os telespectadores que tiverem a paciência de assistir a primeira parte, devem ter notado que começou o strip-tease [risos], a chamada “síndrome do homem nu”. Se tiver mais um segmento, eu acabo pelado, hein. [risos]

Jorge Escosteguy: Não, este é o último. Nós falávamos antes do intervalo sobre o novo presidente da República e você falou que tinha vergonha, não tinha medo, tinha vergonha. O Caio lembrou isso. Agora, esse cidadão foi eleito por mais de 30 milhões de brasileiros. Ou seja, fomos democraticamente às urnas, em dois turnos, deram-lhe 20 milhões de votos. Você tem vergonha do povo brasileiro?

Não, vergonha do povo brasileiro, não. Vergonha de uma eleição que elege uma pessoa incompetente. Agora, como eu estava sustentando que nós não devemos buscar a mitificação dos nossos dirigentes e sim aceitá-los como pessoas normais e capazes de, com boas intenções, cumprir o seu papel, vamos esperar que ele cumpra o seu, e fiscalizado pela oposição.

Marcos Faerman: Qual é o político brasileiro, ao longo da sua trajetória, porque o senhor teve contato, por exemplo, com o Juarez Távora, que era aquele general de queixo austero, que dava socos na mesa, que tinha uma síndrome de general espartano, agora temos o outro que dá soco na mesa também, mas qual é o político brasileiro que o senhor, ao longo da sua trajetória, a figura que lhe parece a melhor?

A diferença entre o Juarez Távora é que ele com justas razões dava soco na mesa, e este dá soco no ar, não dá soco em nada. Ao passo que eu acho que poderia ter sido uma grande experiência para o Brasil ter tido o Juarez Távora como presidente da República, porque era a grande oportunidade do Brasil digerir as suas Forças Armadas, que saísse na urina.

Jorge Escosteguy: Ter um general eleito?

Um general eleito, um general mais democrata do que qualquer outro, mais civil do que qualquer outro, com teses absolutamente avançadas para o tempo; era um homem que defendia a reforma agrária, o municipalismo, a participação dos operários no lucro das empresas, e por aí vai, e com convicção absoluta, ninguém brincava em serviço com ele não. Mas eu te digo quem foi o grande político com quem eu tive a felicidade de conviver até pessoalmente, que foi o Milton Campos. Milton Campos foi realmente uma figura extraordinária de humanista e de político, mas ele era um cético. Quando ele foi eleito governador de Minas, eu me lembro que durante a campanha, dizia assim: “você sabe que eu estou com medo, quer dizer, “com medo” [reformulando], eu estou com esperança de ganhar”. E quando ele ganhou e eu fui visitá-lo, ele me disse assim: “Fernando, o bom é ser da oposição para poder falar mal do governo, eu estou louco para falar mal do meu governo e não posso porque o meu governo sou eu próprio”. Quer dizer, é até incompatível com o exercício do poder, com a dimensão extraordinária de homem público como tinha o Milton Campos. E, como eu volto a dizer, eu acho que a democracia é o regime dos homens meiões, dos homens médios, sem nada de extraordinário, que apenas cumpram o seu papel e o seu dever, já nos damos por muito satisfeitos.

 

Mário Viana: Fernando, nos planos do novo presidente está a extinção do Ministério da Cultura. O que o senhor acha disso, vai prejudicar muito ou não?

Olha, eu tenho a opinião pessoal, inclusive pode até se chocar com a dos meus confrades, meus amigos, até o José Aparecido de Oliveira, que é um grande amigo meu, independente da atuação que ele tenha ou deixe de ter na política brasileira. Eu acho que quanto menos o Estado se meter com cultura é melhor. Essa é a minha tese, a minha posição. Eu acho que o Estado tem que criar condições para que a cultura floresça por si mesma, e não dirigi-la, orientá-la e capitalizá-la. Eu dou um exemplo. Toda vez que o Estado se meteu na indústria do livro, que é o meu campo particular, o campo literário, e até editor eu já fui, deu-se mal, e a literatura se deu muito mal. Então, o que é que o governo pode fazer? Pode melhorar a indústria do papel, e isso vai beneficiar a indústria do livro no Brasil, e a sua comercialização e o seu florescimento. Agora, meter-se a editar? Não. Então a cultura que cuide de si própria. Se o governo conseguir estabelecer um regime que seja democrático e com justiça social, ele está fazendo a cultura brasileira.

Jorge Escosteguy: Você, como editor, não fez co-edições com o INL, essas coisas?

Não.

Jorge Escosteguy: A sua editora não deixava fazer?

Co-edições com o governo?

Jorge Escosteguy: Com o INL, Instituto Nacional do Livro, etc?

Não, nunca fiz não. Não fiz porque eles não aceitaram. Eu faria sim, por que não? Eu também sou brasileiro.

Sérgio Pinto de Almeida: Fernando, um dos seus maiores amigos, e faz parte do grupo mineiro, etc, é o Otto Lara Resende, de quem se diz que é um escritor dos artigos do nosso companheiro, jornalista Roberto Marinho [(1904-2003), jornalista e empresário, presidente das Organizações Globo]. Se diz que ele quem escreve aqueles comentários.

Eu nunca soube que o Roberto Marinho escrevesse artigos.

Sérgio Pinto de Almeida: Assina pelo menos. Até a "Carta ao Companheiro Lula". Agora, por outro lado, o outro mineiro que também fez parte do grupo foi o Hélio Pellegrino, a meu ver, um excepcional intelectual, que era declaradamente militante do PT. Eu queria saber, juntando um pouco a política e tendo como pano de fundo esses encontros literários, havia ou há muita desavença? Você patrulhou, você cobrou do Otto Lara essa ajuda? Você, como é que ficou? O Otto Lara escreveu ou não escreveu esses comentários do nosso companheiro jornalista, Roberto Marinho?

Jamais ele poderia fazer isso. Seria uma injustiça para com o Otto, ele mal consegue escrever os artigos dele e ainda vai escrever para os outros?

Sérgio Pinto de Almeida: De onde vem essa história?

Jamais... Porque ele, o Otto, se ele estivesse aqui presente, em dois programas deste iam dizer que ele é que estava inspirando o programa, que ele é que estava orientando, que ele é que tinha sugerido essa pergunta para você, porque ele é muito influente, é muito insinuante, tem uma conversa, leva todo mundo na lábia, ele é irresistível. Inclusive ele leu esse último livro que eu publiquei, porque ele é personagem do livro, e fez notas tão implicantes, tão ranhetas... Ele fez questão de transcrever algumas. Notas assim, por exemplo, eu dizia, na minha viagem: “ai, meu Deus, que falta faz um dicionário”. Então ele bota uma notinha assim: “Realmente, talvez temendo excesso de peso, você viajou com muito pouca bagagem vocabular”. [risos] Ele é incrível, é irresistível, a ponto do Jânio Quadros, quando era presidente da República, mandar chamá-lo porque não o conhecia direito, mandou chamá-lo e falou assim: “Eu quero que você venha aqui”. “Fazer o quê, presidente?” “Bater papo, só bater papo, você vai ficar comigo aqui para bater papo”.

Sérgio Pinto de Almeida: O que ele faz afinal na Globo?

Porque ele é irresistível. Então, o que quer que seja de lendário corre a respeito do Otto. Mas eu jamais acreditaria que o Otto seria capaz de escrever o que quer que seja para o Roberto Marinho. Primeiro, porque os dois são absolutamente incompatíveis, vivem feito cão e gato. O Roberto Marinho se suicidaria antes de pedir ao Otto que escrevesse alguma coisa para ele porque ele se consideraria diminuído, porque ele acha que é muito mais intelectual do que o Otto. Ele acha uma injustiça o Otto estar na Academia Brasileira de Letras porque ele é que devia estar. Isso eu imagino, ele nunca me falou não. Inclusive eu não tenho o menor convívio com o Roberto Marinho para estar falando isso aí, mas eu presumo que seja assim pelo lado que eu conheço do Otto. E o Otto foi durante muito tempo das Organizações Globo, mas foi funcionário das Organizações Globo. Agora, e ele não sai de lá, ele é o último a sair, fica batendo papo na rua, na esquina, em qualquer lugar. Então a presença do Otto é uma coisa assim que se insinua em tudo o que existe. Ele já foi demitido há muito tempo das Organizações Globo e ninguém acredita.

Marcos Faerman: Ninguém tem coragem de falar isso para ele?

Ele foi demitido e depois o Roberto Marinho se arrependeu e chamou-o de volta e ele não quis. Inclusive o Otto é um homem que tem uma dignidade intelectual da maior bravura, e ele ficaria irritadíssimo se soubesse que jamais de longe se insinuou essa pergunta que você fez. Até ele vai ver essa parte deste programa, quando ele ouvir, e ele vai querer me matar, falar: “Você deveria ter voado nas barbas daquele sujeito”.

Marcos Faerman: Lá no começo dos anos 40, Fernando, o Paulo Mendes Campos, o Carlos Castelo Branco, que é o belíssimo escritor de coisas políticas, o Otto Lara, o Hélio Pellegrino, vocês se encontram em Belo Horizonte. Como é que é Belo Horizonte lá no começo dos anos 40, quando vocês formam uma turma? Como era a turma de vocês, que lugares freqüentavam, como era esse mundinho de Belo Horizonte? E depois vocês vão para o Rio de Janeiro, como que é o Rio daquele período?

Isso eu posso até fazer uma observação curiosa, inclusive respondendo a parte...

Marcos Faerman: Porque vocês têm um grau de afeto entre vocês. O Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, o Otto...

É parte da pergunta do Sérgio, não é, Sérgio? Você falou no Otto. O Otto eu já disse o que é. O Otto é essa alma barroca, é um homem incapaz de dizer não, e que fica com complexo de culpa por causa disso, e ao mesmo tempo tem uma bravura, uma indignação por esse tipo de coisa. É muito engraçado, e a gente mexe muito com ele por causa disso. É uma criatura encantadora.

Sérgio Pinto de Almeida: O Hélio mexia com ele ou não?

Muito. Mas o tempo todo. E nós todos passando trote, chateando. Ele é um pouco vítima de brincadeira, mas às vezes ele se indigna, dá uns repelões e nos bota no nosso lugar. Mas é um convívio que vem, que a única coisa que dignifica e dá força, dá grandeza a esse convívio, é que ele dura há mais de 50 anos, e é um convívio praticamente diário, inclusive com o Hélio que morreu, mas continua nos visitando, chateando, dizendo bobagem, isso é diário. Então o que faz com que isso seja um verdadeiro patrimônio afetivo, intelectual, moral, que eu levo na minha vida, é a amizade com essa gente. Isso é fundamental para mim e é definitivo. Agora, é um convívio, tirante essa duração ao longo do tempo, é o mesmo que você teve com os seus amigos, você tem e teve com os seus amigos, apenas a vida os dispersou - fatalmente isso acontece - e conosco não. Embora nós sejamos completamente distintos uns dos outros em matéria de personalidade, há um paixão comum que nos ligava, que é a literatura. E houve um fenômeno curioso, tirante o Hélio, que veio um pouco depois e que se tornou psicanalista para curar o seu próprio caso - porque ele era o principal cliente de si mesmo, que era poeta e foi jornalista - nós, Paulo, Otto, Castelo e eu, tínhamos como paixão a literatura, e nos sustentávamos através do jornalismo. Então Paulo e eu espontaneamente optamos para que o jornalismo não nos prejudicasse, de preferência só fazer matéria pessoal, assinada sempre, crônica, reportagem, e fugir do que quer que fosse de editorial, de cozinha de jornal, de diagramação, fugir da vida do jornal e manter o mínimo de qualidade literária que justificasse a gente assinar o nosso nome. Já o Otto e o Castelo preferiram outro caminho também para preservar a sua literatura, porque ambos eram escritores, contistas, romancistas e tal, fazer só jornalismo impessoal, fazer editoriais, diagramar primeira página, orientar, ser editor-chefe, enfim, trabalhar no jornal e preservar a sua literatura. Eu não sei quem deu certo, quem não deu. Agora, acontece um fenômeno curioso. Reconhecidamente o Carlos Castelo Branco como o Otto Lara Resende, dois dos maiores jornalistas brasileiros...

Sérgio Pinto de Almeida: Que escrevem muito bem.

Todos os dois estão na academia. Isso é que é engraçado, eles é que se tornaram acadêmicos.

Sérgio Pinto de Almeida: O Sarney também está.

Mas eu estou falando de nós quatro.

Ricardo Soares: E qual é a sua opinião sobre a Academia Brasileira de Letras, hein, Fernando?

Olha, eu já disse e repito que eu jamais entraria para um lugar que você sai em posição horizontal. [risos] Eu não tenho condição de estar... Saber que eu não posso sair... Não adianta.

Jorge Escosteguy: Você mencionou o José Sarney. Você leu Os marimbondos de fogo ou não?

Não, não tive o prazer, procurei em todas as livrarias, mas não encontrei, e ele não me mandou, de modo que eu não tive esse prazer.

Mário Viana: Fernando, hoje em dia fazer vídeo é uma senha para se arrumar namorada. Antigamente ser escritor tinha um charme especial, vocês eram muito namoradores, a gangue dos mineiros, dos quatro mineiros?

Aonde é que você quer chegar com isso, hein?

Mário Viana: Nos anos 40 a 50.

Como é o negócio?

Mário Viana: Era uma senha para se arrumar namorada? Tinha um certo charme?

Do quê? Escrever? Não. Isso até afastava. Olha aqui, eu tenho uma grande admiração, conforme sabe o meu querido amigo Ruy Castro, por um saxofonista chamado Lester Young. E Lester Young começou como baterista. E preveniu aos bateristas, inclusive a mim, porque ele trocou a bateria pelo saxofone porque a bateria levava muito tempo para desmontar, e quando acabava de desmontar, as mulheres todas tinham ido embora com os outros músicos. [risos] E literatura era a mesma coisa. Quando a gente parava de fazer literatura, as meninas já tinham ido com outros caras.

Ricardo Soares: Mas você era um nadador.

A literatura nunca me deu nada não.

Ricardo Soares: E o nadador? Você confessa em suas crônicas que você é um campeão olímpico...

Também está dentro da síndrome de Lester Young. Também, enquanto está lá dentro da piscina, está outro cara com a sua namorada lá fora... Não dá certo.

Jorge Escosteguy: E a sua preferência por bateria. Você, antes do programa, estava comentando com o Ruy que andou dando alguns shows pela noite de São Paulo como baterista. Como é que é isso?

Depois do quinto uísque, eu toco qualquer negócio. Mas acontece que o quê está mais acessível é a bateria.

Jorge Escosteguy: Por que essa sua paixão pela bateria? Você estudou? Você tem uma bateria em casa?

Não, a única lembrança que eu tenho é que quando eu era escoteiro, eu gostava de tocar tarol, eu era da banda de tambores. E depois eu comprei uma bateria, quando eu tinha uns quinze anos, e essa bateria me acompanhou durante uns dez anos. E meu pai ficava alucinado, falava: “Meu filho, às três horas da madrugada não, não é possível”. Então eu levei a bateria depois que eu me casei, levei ela para o Rio comigo, mas um dia, quando eu fui a Los Angeles pela primeira vez, eu conheci um brasileiro numa roda, que estava contando: “ah, você gosta de bateria? Pois eu morava no Rio de Janeiro num apartamento que tinha um sujeito que tocava bateria, esse sujeito era tão diabólico que eu me mudei do Brasil por causa dele”. Falei: “onde é que você morava?” E ele aí deu o meu endereço. [risos]

Jorge Escosteguy: Ele morava no seu prédio.

Eu fiquei firme. Quando voltei para cá, para o Brasil, eu dei a minha bateria para o Dom Helder Câmara, não para ele tocar, evidentemente... [risos]

Ricardo Soares: Por que a bateria para o Dom Helder?

Não para ele tocar não. Dei para a Feira da Providência. [risos]

Eu tenho a impressão de que ele achou que fosse bateria de cozinha. Eu liguei para ele e falei: “eu tenho uma bateria, o senhor aceita?” Ele disse: “Aceito”.

Jorge Escosteguy: Você não tem bateria, você não ensaia, não estuda, não toca nada?

Não, mas toco em qualquer lugar, de cabeça.

Caio Fernando Abreu: Fernando, você já fez várias referências à música, você adora música. E você tem uma filha que é uma excelente cantora, a Verônica Sabino, uma cantora ótima. Você interferiu no destino da Verônica como cantora?

Fazendo-a, fazendo-a. [risos]

Caio Fernando Abreu: Além de fazê-la. Fazer a cabeça dela?

Como diria o Lula, foi um ato de amor. [risos]

Caio Fernando Abreu: E fazendo a cabeça dela também?

Não, não. A única coisa que nós tivemos foi que quando ela, desde menina ela cantava, e ela fez um grupo, um grupo de músicos jovens, muito jovens, mas todos muito sérios, basta dizer que tinha três maestros. Aí ela fez um conjunto que se chamava... Falei: “minha filha, como é que chama mesmo esse conjunto seu?” Ela falou: “chama Desbundeto” Eu falei: “então não dá, eu ia te ajudar, mas com esse nome não é possível”. Falou: “Por que não é possível?” Falei: “porque ninguém vai levar a sério um conjunto musical chamado ‘Desbundeto’”. “Ah, papai, você que não sabe, tem nomes muito piores”. Falei: “mas esse não vai”. Aí ela chegou e me disse: “olha, nós vamos mudar o nome do conjunto para nos profissionalizarmos, você tem alguma sugestão?” Falei “tenho”. Falei assim: “Acalanto”. Ela falou: “Ah, que é isso? Acalanto, que coisa mais feia”... “Feia? Uma palavra linda”. Aí ela foi, voltou, falou: “Olha, nós discutimos, fizemos uma votação e conseguimos um título que você vai gostar”. Falei: “como é que é?” Ela falou: “Céu da Boca”. “Ah, Céu da Boca... tem algum dentista aí, não?” Aí ela disse assim: “mas por quê?” Falei: “por que você não põe logo Peito do pé, Barriga da perna. Céu da Boca... Por que Céu da Boca?” – “Porque é uma coisa celestial e não sai da boca”. Falei: “ah, está certo”. Aí eu disse assim: “dá um abraço para os seus coregas” [risos] Corega é um pó que você põe na chapa [prótese dentária]... Mas Céu da Boca ficou sendo, e foi um grande sucesso, absolutamente admirável. Aí eu passei a sofrer do mesmo problema que o Sérgio Buarque de Holanda, porque ele passou a ser o pai do Chico, e eu passei a ser o pai da Verônica.

Ruy Castro: Eu queria dar um depoimento, Fernando Sabino, você vai desmentir por modéstia, a respeito da grande contribuição dele à música internacional, de certa maneira. Foi um episódio que aconteceu em novembro de 62, em que o Tom Jobim, junto com outros brasileiros, ia embarcar para Nova Iorque para tocar no concerto do Carnegie Hall [ocasião em que a bossa nova foi apresentada oficialmente aos norte-americanos]. E o Tom Jobim tinha 36 anos, e praticamente nunca tinha saído do Brasil na vida, devia ter andado de avião uma ou duas vezes, se tanto, simplesmente, na última hora de embarcar, em casa, decidiu que não ia, simplesmente. E o Fernando Sabino foi visitá-lo para se despedir dele. O Tom disse que não ia, que o avião ia cair, etc e tal, e o Fernando Sabino obrigou ele a fazer a mala e o botou dentro do avião. E no Carnegie Hall, o Tom Jobim foi o maior sucesso internacional...

Foi verdade.

Ruy Castro: E o mundo deve, de certa maneira, ao Fernando Sabino o Tom Jobim...

Pelo menos o Tom. O mundo eu não sei. Mas o Tom, inclusive eu me lembro que três vezes ele foi... Era um táxi que estava esperando para levar no aeroporto. Tirava a mala do táxi e botava, falava: “Esse avião vai cair”. Eu falei assim: “este avião não vai cair”. Ele falou assim: “Você jura?” Falei: “juro”. “Você jura que não vai cair?” Falei: “juro”. “Eu posso ir?” “Pode”. Aí ele entrava no táxi e tornava a sair. E eu me lembro que eu fui mais longe. Falei: “Tom, você vai ser o “golden boy” do Brasil, você vai ser o homem querido da América, você vai cantar com Frank Sinatra. Eu previ isso tudo e deu tudo certo. “Você vai tomar o mundo de assalto com a sua ida lá”. Ele falou: “Mas e esse pessoal que já foi?” Falei: “mas esse pessoal já foi, você não tem nada com isso”. E ele foi. E até hoje ele se lembra disso. Mas é evidente que ele deve a ele próprio, não a mim, lógico.

Marcos Faerman: Agora, você deu uma entrevista uma vez falando sobre bateria e sobre mentira, em que você disse que era pequenininho e a sua irmã tocava piano...

É verdade, tinha me esquecido disso.

Marcos Faerman: E você ficava...

Isso é verdade. Eu era menino mesmo. Inclusive eu batia naquele lugarzinho, naquela tabuinha de segurar música, e o piano ficou todo marcadinho ali. O meu pai tocava piano também, e eu acompanhava tamborilando.

Marcos Faerman: Falando em pai, eu fiquei muito comovido, porque eu acho que pai é uma coisa maravilhosa, e você...

Pai só tem um.

Marcos Faerman: Você muitas vezes fez referência à sua família, que era uma família em que havia...

Que bom você falar isso, porque eu gostaria demais, e hoje eu vim pensando nisso, que uma coisa que eu gostaria...

Marcos Faerman: Porque era uma coisa muito amorosa

Eu falei que eu gostaria muito que me dessem alguma oportunidade de falar no meu pai, porque é uma coisa tão grata para mim, foi tão bom, eu agradeço você ter se lembrado disso. Porque o meu pai era um homem modesto não só de posses como de cultura também, era um homem muito modesto mesmo, mas ele tinha uma espécie de sabedoria doméstica, vamos dizer assim, que era um filósofo doméstico, a tal ponto aquilo chegou que começou pessoas a irem procurá-lo para pedir conselhos. Ora um sujeito que deu desfalque, ora um outro que queria se suicidar, o outro que se separou da mulher, o próprio governador Benedito Valadares, sem o conhecer, sem nada, mandou o oficial de gabinete dele lá em casa mais de uma vez para pedir um conselho, uma orientação. O meu pai tinha um escritorinho no porão, e aquilo virou uma romaria. Entravam e saíam pessoas que ele não sabia quem era para pedir uma sugestão, e tal. E ele tinha uma espécie de sabedoria familiar muito boa. Eu me lembro de coisas que ele dizia assim, por exemplo, quando ele me via muito nervoso, falava: “Meu filho, as coisas são como são e não como deviam ser; perfeito só Deus, e esse mesmo, olhe lá. Mais de 50% já está muito bom. Agora, se você chegar a 80% de perfeição, já está fantástico, de modo que já está muito bom assim como está”. E dizia: “No fim dá tudo certo; se não deu é porque ainda não chegou no fim”. E a base desse tipo de filosofia de vida, eu fui recolhendo assim, umas inspiradas por ele e outras que ele diria. A última que me veio... A penúltima foi de minha mulher, Lygia, que de repente disse um dia assim: “Você quer saber de uma coisa? Para começo de conversa, nada tira o meu bom humor, está bom?” Então ele adotou isso como lema, e eu também. Então quando tem que enfrentar uma situação chata, difícil, alguém que pode me tocar fundo, eu falo: “olha, vamos partir do princípio de que você não vai tirar o meu bom humor”. Mas eu fui muito além disso, porque há pouco tempo eu fui entrevistado por uma moça e ela me perguntou: “Você é sempre assim? Você é uma pessoa descontraída e alegre?” Eu disse: “eu não sou alegre, não. De vez em quando, como a minha cozinheira dizia, eu falava: “você fica rindo” - era uma crioula gorda – satisfeita, né”. Ela falava: “Eu? Quando acabar de servir a janta, eu vou lá para o quarto abrir o bocão”.

Ricardo Soares: Mas tem alguma situação específica?

Mas a última que eu aprendi realmente, essa eu quero levar até o túmulo, e foi uma moça que falou, e é verdade, “é preciso que a gente não perca a capacidade de rir da gente mesmo”. Isso eu acho extraordinário, eu quero não perder a capacidade de rir de mim mesmo.

Cláudia Boyago: Fernando, eu queria que você contasse para a gente qual é a coisa da sua vida que te dá mais prazer. E você disse que perdeu o medo de avião. Você ainda tem algum medo?

Medo?

Cláudia Boyago: De alguma coisa.

Todos. Eu não posso assistir filme de terror de noite porque eu fico apavorado, eu fecho a porta, rezo. Tenho medo de barata, tenho medo de tudo, mas principalmente de coisas sobrenaturais. Eu invoco Deus toda hora. Porque o demônio existe. Você sabe disso, ou não?

Cláudia Boyago: Acho que sim.

Está bom. Eu sou sujeito a todos os medos. Agora, esses medinhos assim de avião, essas bobagens eu já superei, porque, como eu te disse, eu sou meio mentecapto, eu estou um pouco acima desses medos. Eu atravesso a rua em sinal fechado. Eu já fui assaltado por um sujeito que me chegou um revólver na nuca, e eu comecei a rir. E a minha mulher ficou enlouquecida, ela abriu a porta e foi parar a cinco metros. Estava dentro de um carro. E eu comecei a achar graça naquilo, mas uma graça de maluco.

Ricardo Soares: Fernando, falando em mentecapto, o Geraldo Viramundo [personagem principal de O grande mentecapto] é a mais completa tradução do seu bom humor. E quem é Geraldo Viramundo? É uma mistura de uma série de personagens?

É uma mistura de uma série de personagens sim e que tem condimento de todo mundo. Tem desde Dom Quixote, a Chaplin, a Hamlet [referência ao famoso personagem da peça de William Shakespeare: A tragédia de Hamlet, príncipe da dinamarca].

Ricardo Soares: Deve ter muito amigo teu no meio.

Tem, tem Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende, Vinicius de Moraes, tem Jayme Ovalle. Um tipo popular que tinha em Belo Horizonte, chamado Geraldo Boi, que foi mais ou menos o protótipo, o arquétipo, vamos dizer assim, desse personagem, que era um seminarista, e que nós convivíamos muito com ele. E eu, principalmente, porque eu sou, realmente foi a maneira que eu tive de suplantar o doido que tenho dentro de mim, foi escrevendo esse livro. Eu acho que eu me curei bastante, melhorei pelo menos.

Osmar Freitas: A respeito, exatamente sobre isso. Você citou uma série de escritores, duas gerações praticamente de escritores. Então Minas deu na década de 40 uma série de escritores, década de 50, década de 60, até década de 70, ainda tem aqui grupos inteiros que foram para o Rio de Janeiro, vieram para São Paulo, permaneceram em Minas, fizeram contos, fizeram livros, tal, mas na década de 80 de repente desapareceu isso. O que está acontecendo com Minas Gerais hoje?

Eu acho que não é com Minas Gerais não, é com o mundo. Eu acho que, como em Minas Gerais, acontece na Inglaterra também, que você podia na década de 50, 60, até por ali... De repente o mundo mudou muito. Houve um momento, houve um dia, eu tenho a impressão de que foi um dia assim, 4 de abril de 1963: você abriu a janela e o mundo tinha mudado. O advento de várias coisas. Por exemplo, começou com o Vigésimo Congresso, ainda em 55.

Osmar Freitas: Seis.

Depois teve o Conselho Ecumênico, 63... De repente vieram os Beatles, de repente veio um outro conceito de arte, morreram os monstros sagrados. Quer dizer, para cada monstro sagrado da pintura, um Picasso que morreu, surgiram milhares de pequenos grandes artistas, surgiram milhares de contistas. Depois daquela grande geração de grandes escritores americanos surgiu uma proliferação de pequenos grandes escritores. Isso aconteceu na música, aconteceu em tudo. A música, talvez um pouco menos, porque é menos verbal...

Marcos Faerman: Você está sendo pessimista agora.

Não, pessimista não. Eu estou dizendo que há um novo conceito de arte. Inclusive a literatura deixou de existir como uma atividade sagrada. A sacralização... A dessacralização da literatura se deu nesse período desses últimos 20 anos de uma maneira total. Eu tive com o Octavio Paz um encontro, porque eu fui fazer uma reportagem com ele há coisa de uns 10 anos atrás na casa dele, no México, e começamos a conversar sobre literatura. Ele ia me atender 15 minutos, e ficamos quase três horas batendo papo, porque nós falávamos nomes e ríamos. “Você se lembra?” Ele disse: “De quem?” “De José Sales, Luis Felipe?” “Lembro” “Você se lembra de fulano?” E Maritain e não sei mais quem... Só dos franceses, depois passamos para os ingleses. E de repente nós começamos a rir porque descobrimos que nós parecíamos dois meninos trocando figurinhas. “Você tem essa aqui?” “Não, essa eu não tenho”. E de repente percebemos que nós éramos dois seres de uma raça, últimos remanescentes de uma raça em extinção, que é o homem de letras, um sujeito que pretende viver num mundo quase alienado, que é o mundo da literatura. Era o nosso mundo. Hoje a coisa melhorou muito, aumentou muito com o advento dos novos meios de comunicação. Mas está acontecendo aqui. Isso sim que eu sou pessimista. Aquilo que eu disse, por enquanto a comunicação está superando a expressão. Está se comunicando muito mais. Para você ter uma ideiazinha, tira um milhão de exemplares. Antigamente você tinha que trabalhar na pedra para fazer um soneto.

Osmar Freitas: E há uma tendência para se reverter, há uma maneira de se reverter esse quadro?

Não, há de evoluir. Eu acho que isso é um processo evolutivo, sempre para melhor, inclusive porque tem que atender o mundo. Porque houve uma integração de grandes e grandes massas populacionais no mundo inteiro. Antigamente a África era só para filme de Tarzan. No Brasil, o nordestino era para morrer de sede lá. Esse negócio de Lampião... Não tinha negócio de Marimbondo de fogo não. Era só para eles ficarem por lá mesmo. “Padim Ciço”,, aquelas coisas, sabe? E hoje não, hoje estão integrados. Na África estão integrados. E a Índia? E a China? Então o mundo não podia ficar na base de você ficar fazendo sonetos para distribuir para meia dúzia de amigos. Então você tem que, queira ou não, participar desse mundo, se integrar nesse mundo, aceitar como ele é e criar uma arte nova, seja qual for. Eu acho que eu sou remanescente de uma espécie em extinção. Eu me sinto um antropóide.

Ruy Castro: Fernando, por que é quase inevitável que te façam pergunta sobre mineiros e você é carioca há mais de 40 anos?

Há duas coisas. Primeiro que Minas está onde sempre esteve. Eu levo Minas comigo onde eu estou, Minas está aqui nesta cadeira. Agora, segundo, se existe alguma coisa que consiste em ser mineiro vem a ser não se tocar nesse assunto.

Ruy Castro: Exatamente.

Jorge Escosteguy: E o contista mineiro? O famoso contista mineiro? O contista do quintal, da casa? A geração de contistas?

É, houve uma geração. É até o que nós estávamos falando, ele estava dizendo exatamente isso, que houve uma geração, uma florescência, um florescimento de contistas mineiros, e isso por uma época, uma moda, porque há realmente grandes talentos, poucos talvez tenham continuado.

Marcos Faerman: Tem um pouco nessa geração, aliás, antes dessa geração, o Ivan Ângelo.

Pois é, o Ivan Ângelo. Mas esse não era propriamente contista, é um grande romancista. Esse é um grande romancista. Agora, eu digo mais, eu gostaria até de aproveitar a oportunidade para fazer uma menção a alguém que está - um dia vão lhe fazer justiça como um dos maiores escritores do nosso tempo. Esse é um romancista mineiro, que se chama Oswaldo França Júnior [1936-1989], que faleceu o ano passado. Publicou agora um livro admirável, um livro póstumo. Eu dou o meu depoimento sobre ele porque eu assisti o nascimento desse homem como escritor. Eu não fui o parteiro, mas eu  fui o curioso. O parteiro foi o Rubem Braga, que fez com que ele começasse a escrever romance. Ele apareceu, como vocês conhecem a história dele, ele era um aviador que foi cassado e resolveu ganhar dinheiro escrevendo, tinham dito que a gente ganhava muito dinheiro escrevendo, e ele levou para o Rubem Braga uns contos. O Rubem falou: “estão bons, mas o que dá dinheiro é romance, conto não dá dinheiro”. Então ele escreveu um romance chamado O viúvo, que é admirável. A partir daí ele veio fazendo uma obra absolutamente admirável, de uma coerência, de uma consistência, de uma força extraordinária que ainda vai marcar época na nossa literatura. Oswaldo França Júnior. Inclusive com um detalhe curioso, tem um livro dele, que talvez seja o melhor, que ele não publicou porque ele mandou para a nossa editora e eu devolvi pedindo a ele que melhorasse um pouquinho, fizesse uma "copidescada", e esse livro nunca foi... Talvez o melhor livro dele. Um dia ainda vamos encontrar no meio dos livros dele, e será um grande romance póstumo.

Sérgio Pinto de Almeida: Fernando, você não acha que, ainda falando em literatura, existe por parte da crítica, da imprensa, até dos leitores, e dos escritores, principalmente, um certo bom-mocismo, no sentido de que não se bate, não se briga, não se discute intelectualmente obras menores, e escritores menores, que acabam sendo perpetuados como grandes escritores, ou com alguma importância, contemporâneos, e que, a meu ver, são muito fracos, muito frágeis se comparados com outros escritores. Então esse bom-mocismo, essa aceitação por parte da crítica, leitores, escritores, imprensa, etc, acaba absorvendo para a história literária do Brasil obras menores.

Eu acho perfeito. Mas eu acho que o motivo disso, talvez se você fosse mais longe, você ia chegar ao motivo disso, é que a crítica acabou. A crítica eclética, a crítica exercida com criatividade literária deixou de existir e foi substituída pela crítica universitária, vamos dizer assim.

Ricardo Soares: Resenha...

A dissecação do livro como se disseca um cadáver. Quer dizer, você apresenta aos alunos, você não incentiva o aluno a ler o livro, você incentiva o aluno a interpretar o livro, e não curtir o livro. E isso deu para suprir essa ausência da crítica especializada, crítica literária, criativa, que tinha no meu tempo, quando eu comecei a escrever – eu cito nomes, Mário de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Prudente de Morais Neto, também conhecido pelo pseudônimo de Pedro Dantas, com o qual assinou crônicas esportivas, foi jornalista, crítico, jurista, cronista, poeta e professor], Álvaro Lins, Tristão de Ataíde e outros, Olívio Montenegro são críticos que... Em todas as capitais do Brasil tinha um grande crítico literário. Hoje eles sumiram e foram substituídos pelos resenhistas. Agora, o resenhista tem o seu lugar no jornalismo, mas desde que ele tenha o mínimo de competência. E hoje: “Quem é que quer fazer resenha desse livro aqui? Faz você.” Entrou um estagiário egresso de uma faculdade de jornalismo, e vai fazer a resenha de uma grande obra literária, um livro de poesia. Quer dizer, não tem o menor sentido isso. Quando não é um release da própria editora que sai nos jornais. Então isso virou também um excesso de comunicação sem nenhuma expressão. É a isso que eu me refiro quando digo que está se comunicando mais do que exprimindo. Na realidade não vai sobrar nada. Se sobrar um Oswaldo França Júnior já é uma grande coisa.

Mário Viana: Fernando, você disse no início que você recebe muitas cartas e muita gente te procura, tal. Você recebe originais de escritores que podem vir a ser bons ou está abaixo da média?

Olha, eu tenho verdadeiro pavor de ler original, eu vou te dizer por quê. Porque o escritor que escreve um livro, que sofre, que sua, ele espera no mínimo que eu diga que é uma obra-prima. E eu digo. Eu não tenho caráter nenhum. Eu não tenho coragem de dizer: “você não tem competência, você seria um grande médico, você não é escritor”. Primeiro que isso é uma audácia que eu não teria, porque ele pode ser escritor. Não se esqueça que o Gide disse que o Proust [(1871-1922), escritor francês cuja obra é reconhecida como fundamental na literatura, entre sua obras destaca-se o romance conhecido mundialmente Em busca do tempo perdido]. Então há esse perigo. E, segundo, há o perigo de você... Eu já tive casos graves inclusive de pessoas que eu apreciei e gostei e que resolveram morar na minha casa. [risos] Literalmente. Já baixou um da Bahia lá em casa com uma kombi e com a família, papagaio, mala e tudo, porque eu tinha dito que o livro dele era muito bom. E ele deixou, fechou, era médico no interior da Bahia. Fechou e veio para o Rio. Não me encontrou, veio para São Paulo...

Mário Viana: Mas era bom o livro?

Eram contos, eram muito bons. Agora, raríssimas vezes é bom, 99% dos casos é uma ilusão, é uma inquietação momentânea que leva o sujeito a achar... Como para escrever, você usa a mesma linguagem da linguagem coloquial diária, cotidiana, você não vai sentar no piano e tocar uma sinfonia, tocar uma música, tocar um prelúdio; você não vai pegar um violino, você não vai pegar um pincel e pintar... Pintura às vezes também tem. Mas a literatura é que é o primeiro veículo para você extravasar uma inquietação existencial qualquer. Nem que seja a paixão por uma mulher, você já vai fazer um soneto, fazer um conto...

Marcos Faerman: Você cometeu alguma vez poesias? Fez alguma vez poesias de amor, essa coisa pequena? Não há nada na sua obra.

Confessável ou não? Só inconfessável. Mas então é esse fenômeno. Então eu não tenho coragem de dizer para uma pessoa, porque eu prefiro que não me dêem, porque a minha opinião não será sincera.

Caio Fernando Abreu: Fernando, e além de Oswaldo França Júnior, de escritores mais recentes, que começaram a publicar dos anos 60 para cá, quem você gosta?

Olha, eu vou pedir a você licença para nem responder essa pergunta por duas razões. Primeiro porque eu estou absolutamente desatualizado, sabe? Eu estou naquela fase de começar a querer reler as coisas que eu li na mocidade e que não aproveitei como devia. Eu estou lendo Dostoievski, eu estou lendo Montaigne, eu estou relendo gente assim, Sthendal. É aquele negócio, como dizia o Rubem Braga, “o tempo já me é pouco para fazer o bem”. Eu sei que devo estar perdendo muita coisa boa. E, segundo, se eu mencionasse esse ou aquele que eu cheguei a ler e gostar, eu estaria cometendo injustiças, e eu prefiro até não falar porque realmente o meu conhecimento é muito precário. Eu estou muito desatualizado com relação às boas coisas que têm saído de João Cabral de Mello Neto para cá. Este foi a última... O quê? Vinte anos, portanto. Daí para cá, Clarice , João Cabral, tal, eventualmente surgiu um ou outro que eu sei que é bom, mas eu não teria como dizer e sustentar que é bom. Eu posso dizer que eu ouvi dizer ou li alguma coisa dele. E aí seria uma opinião leviana, e eu prefiro não dar.

Caio Fernando Abreu: Você acha que desde que você publicou O encontro marcado, o mercado editorial brasileiro melhorou, os editores melhoraram, tratam melhor o escritor brasileiro?

Em certo sentido sim, e eu vou te dizer por quê.

Caio Fernando Abreu: Você diz isso como editor, não é?

Porque eu tenho experiência como editor. Eu acho o Brasil um prodígio porque o Brasil é um país de analfabetos, você sabe, 50 milhões de analfabetos, que se dá o luxo... Uma vez um professor francês veio nos visitar na editora e eu saí passeando com ele pela rua, e paramos numa livraria na avenida, ali perto, em Copacabana, onde havia livros de bolso, Livros de Ouro, se não me engano.

Caio Fernando Abreu: Era Edições de Ouro.

E ele quase caiu para trás porque ele viu uma coleção de livros que tinha assim, Plotino [(204-270 d.C), depois de Platão e Aristóteles, ele é um dos filósofos mais influentes da Antigüidade], Platão, tinha [...]. Só de franceses tinha escritores assim tipo Montesquieu, tinha escritores desse tipo, uma coleção inclusive para estudantes. Ele falou: “Mas como é isso, quem lê isso? Como é que é? É formidável? É bem traduzido?” Eu falei: “excelentemente traduzido”. Ele olhou, viu, tinham escritores inumeráveis, que você não pode imaginar, Hamlet, tudo que você pode imaginar tinha ali. E eu fiquei curioso de saber. E nessa época, se não me engano, Janio de Freitas era editor, tinha uma editora, e que editava esses livros. Eu tive a curiosidade de saber quantos editavam, quantos tiravam por mês: dez, doze mil exemplares por mês de cada um. Então eram 50, 60 mil exemplares por mês desses livros. Quem é que lia isso? Você chega numa banca de jornais e vê a quantidade de jornais e revistas, cada uma dessas organizações, Editora Abril, Organizações Globo, tem 50, 60 revistas semanais, mensais. Então quem é que lê isso tudo? Quem é que tem dinheiro para ler isso tudo? E o preço dos livros? Eu tenho a impressão que está se publicando mais de 100 livros novos por dia no Brasil. Muito mais... Então há essa pletora de publicações que não corresponde ao nível, ao poder aquisitivo do povo brasileiro e nem ao nível cultural. Eu não sei. É um fenômeno.

Cláudia Boyago: Fernando, a gente falou muito do passado, mas nós estamos entrando na década de 90, que é a última década do século. O que você pensa disso, como você vê o futuro?

Como eu vejo o futuro? Eu tive que fazer uma palestra agora lá em Florianópolis e me fizeram uma pergunta semelhante, e mais, a pessoa me perguntou o seguinte: “Você, que foi jovem, você pensa, vê o futuro como você via quando tinha 20 anos?” E essa pergunta me tocou muito fundo. “O que aconteceria se você encontrasse você mesmo na esquina, você pensa como você pensava?” Eu falei: “olha, já me fizeram essa pergunta e a resposta que eu dei na época foi que se eu dobrasse a esquina e me encontrasse comigo aos 20 anos, nós dois fugiríamos espavoridos um do outro”. Mas hoje eu tenho a impressão que não, que eu seguraria esse jovem pelos ombros, olharia ele nos olhos e dizia assim: “você pode ficar tranqüilo porque em tudo que você acreditava eu continuo acreditando”. Eu vejo o mundo de 90 e do ano 2000, como eu via aos 20 anos. Exatamente.

Jorge Escosteguy: Fernando Sabino, nós agradecemos a sua presença hoje aqui no Roda Viva, agradecemos a presença dos nossos convidados. Uma boa noite a todos.

Eu gostaria também de agradecer a possibilidade que você me deu de ter a sauna mais agradável, mais inteligente, mais afetiva. Eu pensei que eu ia ser interrogado de tal maneira que eu estava pronto a confessar. Mas quero agradecer a vocês o alto nível das perguntas, que eu, absolutamente, da maneira mais sincera, lhes digo que foram muito melhores do que as respostas.

Jorge Escosteguy: Nós agradecemos ao senhor também. Uma boa noite a todos.

[Fernando Sabino faleceu no dia 11 de outubro de 2004, na cidade do Rio de Janeiro. A seu pedido, seu epitáfio é o seguinte: "Aqui jaz Fernando Sabino, que nasceu homem e morreu menino".]

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