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Grandes entrevistas

 

João Ubaldo Ribeiro

Entrevistado no programa Roda Viva, da TV Cultura, em 19/02/2001, comandado por Paulo Markun, com a participação de Marcelo Rubens Paiva, José Castello, Cynara Menezes, Joana Monteleone, Alberto Quartim de Moraes, Orlando Fassoni e Moacir Amâncio.

Paulo Markun: Boa noite. Ele mistura erudição e regionalismo na hora de escrever. E em seus textos, carregados de humor, alfineta políticos, debocha de comportamentos e tenta decifrar a essência da nação brasileira. O Roda Viva entrevista esta noite João Ubaldo Ribeiro, escritor baiano que acaba de colocar nas livrarias seu mais novo produto, este Miséria e grandeza do amor de Benedita, produzido inicialmente como livro para a internet. Baiano, barroco, quase sempre de bermudas e sandálias. Dividido entre o trabalho e a preguiça. Nascido na Ilha de Itaparica em 1941, João Ubaldo Ribeiro é considerado um dos nomes mais importantes da literatura brasileira contemporânea. Ainda adolescente, editou revistas e jornais culturais ao lado do amigo e futuro cineasta Glauber Rocha. “Sou um jornalista dos tempos heróicos”, diz o escritor. Aos 21 anos, estreou na literatura com o livro Setembro não tem sentido. Em 1971, publicou Sargento Getúlio, que se tornou um marco do moderno romance brasileiro, com seu forte tempero regionalista. Sargento Getúlio foi adaptado para as telas por Hermano Penna e o papel principal foi feito por Lima Duarte. Com Viva o povo brasileiro, de 1984, João Ubaldo conquistou o seu segundo prêmio Jabuti. O romance percorre quatro séculos da história do Brasil, num estilo barroco e fantástico. Entre outras obras, João Ubaldo também publicou O sorriso do lagarto, A casa dos budas ditosos e a Miséria e grandeza do amor de Benedita, que foi lançado primeiro como livro digital. E, desde 1993, ele é um dos imortais da Academia Brasileira de Letras

Paulo Markun: Vamos começar pelo final, aí. Como é que está indo o Miséria e grandeza do amor de Benedita, e ele foi melhor recebido na versão eletrônica, para internet, ou na versão convencional, aqui, do livro?

João Ubaldo Ribeiro: Bem, eu acho... a sua pergunta é um pouco múltipla. Eu acho, segundo eu soube, ele vai indo bem, mas ainda é muito cedo para saber, porque faz poucos dias que ele foi lançado. E... quanto à experiência na internet, eu acho que não foi das melhores...

Paulo Markun: Por quê?

João Ubaldo Ribeiro: Tenho essa impressão. Porque, segundo me contam, eu mesmo não tentei, mas segundo me contam, era muito difícil baixar o livro da internet. As pessoas desistiam, tais eram as dificuldades criadas, certamente pela tecnologia ainda não suficientemente desenvolvida para esse tipo de coisa. Enfim, o famoso livro eletrônico, que deverá ser uma realidade... já é, mas deverá ser uma realidade quotidiana, comum, num futuro mais ou menos próximo, ainda está um pouco longe de nós, eu acho. Eu acho que ele não foi muito bem, não.

Paulo Markun: Para você, no processo de produção, mudou alguma coisa? Você, ao escrever o livro, ao pensar que ele era para ser uma forma eletrônica... nada?

João Ubaldo Ribeiro: Nada, de jeito nenhum. Eu apenas, como não faria no livro comum, e que o equivalente seria, embora bem mais pobre tecnologicamente, o equivalente seria a nota de pé de página, eu não faria um livro cheio de nota de pé de página, como não faria um livro, simplesmente porque ele era pela internet, cheio de hiperlink. Então, você tinha lá, sei lá... nem é mencionado nesse livro, mas, vamos dizer, a Praia de Salinas das Margaridas, aparece um hiperlink para Salinas de Margaridas, onde você leria sobre a respeito da atividade dos salineiros no Brasil, onde aparecia um hiperlink para o Rio Grande do Norte, Natal, onde aparecia... você acabava no site da Cindy Crawford. Eu achei que não fazia sentido.

Marcelo Rubens Paiva: Você escrevendo e colocando no site, e ouvindo a repercussão dos leitores, como o Mário Prata  fez, por exemplo, inclusive chegou até mudar os rumos...

João Ubaldo Ribeiro: Não, não. O Mário Prata é muito amigo meu. E eu escrevi para ele até um e-mailzinho, eu disse "você é maluco, eu não faço isso nunca. Eu não suporto nem que me olhem, que fiquem atrás de mim quando eu estou escrevendo, quanto mais vendo minha digitação, Deus me livre...".

Marcelo Rubens Paiva: Mas você respeitaria a sugestão de um leitor, assim, "Por favor, faça esse personagem..."?

João Ubaldo Ribeiro: Eu não. Eu não. Eu não meto o bedelho na vida dele, ele não mete na minha. [risos] Eu não chego, por exemplo... a maioria das pessoas não tem uma atividade profissional tão íntima, tão fechada, assim, quanto o escritor, você sabe disso, é uma coisa muito isolada. A coisa mais isolada que as pessoas costumam fazer, me parece ser, ou pelo menos uma delas, é o ato sexual. Eu me recusaria estar na presença desse senhor [numa situação dessas] e dizer: "por favor levante o joelho mais um pouco à esquerda..." [risos] "agora ela está gostando mais." e tal... Eu não deixaria não.

Alberto Quartim de Moraes: Vamos falar mais de livro. Dizia Monteiro Lobato que um país se constrói com homens e livros. Quando a gente pensa no Brasil, parece que a coisa é um pouco difícil, porque... Pensando só em livros, sem falar dos homens... o consumo de livros no Brasil, o consumo per capita é uma coisa ridícula. Segundo os números oficiais, dá menos... e se você descontar os paradidáticos, [corrigindo-se] os didáticos, que são de consumo compulsório, dá menos de 1 [livro per capita]. Segundo os números estatísticos do setor editorial de [19]99, dá 0,8 o consumo de livro didático per capita no Brasil, por ano. Como é que você analisa isso, e o que você preconiza para mudar essa situação?

João Ubaldo Ribeiro: Bom, eu não analiso isso, porque é uma coisa muito difícil de analisar. Eu acho que isso requeriria, como você mesmo acaba de sugerir, isso preocupa muita gente, ou seja, ocupa o pensamento de muita gente, que nunca chegou a nenhuma conclusão definitiva sobre o problema. É, isso requeriria um grupo de estudos, um seminário extensivo para analisar o assunto. Isso incluiria o problema, por exemplo, da educação brasileira, que é um cipoal praticamente impenetrável. Então, é muito difícil você ter respostas simples para esse tipo de coisa. A resposta mais comum que se dá é que o livro é caro. É verdade, mas o livro é caro...

Alberto Quartim de Moraes: Sim, mas é caro porque vende pouco.

João Ubaldo Ribeiro: Não só é caro porque vende pouco, como é caro em tudo quanto é canto do mundo, com exceção dos países onde é subsidiado, como Cuba, por exemplo... como, por exemplo, você conta nos dedos não os escritores, mas as editoras que já venderam um livro com tiragem de 100 mil exemplares. Não me refiro a escritores, esses você conta, sei lá, nos dedos de uma mão só. E as editoras, a maior parte nunca teve um autor...

Alberto Quartim de Moraes: [completando] ... que vendesse mais de 100 mil livros. É verdade.

João Ubaldo Ribeiro: ... que vendesse mais de 100 mil livros. No entanto, agora está se comentando com escândalo o fato de não se venderem mais de um 1 milhão de CDs, como se vendia antigamente. E o CD não só costumeira..., costumeiramente não, mas freqüentemente, é muito mais caro do que um livro, freqüentemente é mais caro, como requer até uma infra-estrutura, porque você precisa ter um aparelho de som e, se puder, ter um aparelho de som melhor do que o seu vizinho, e assim por diante. Você gasta dinheiro naquilo. E as pessoas compram CDs aos milhões. Aos milhões [enfatiza]. Enquanto as centenas de milhares raramente compram um livro. Ou seja, o brasileiro não tem hábito de leitura. Se gostasse de ler, comprava. Com o preço e tudo. Mas não é isso que vai explicar o problema da baixa circulação de livros no Brasil. Isso é somente parte de um problema. Me ocorre outra, na qual estarei, em cuja... nesta resposta, estarei incluindo aí uma grave injustiça com muitos professores, portanto faço essa ressalva. Mas é comum que os professores instilem nos alunos ódio [enfatiza] pelos livros...

[...] Na medida em que obrigam a ler, às vezes...

João Ubaldo Ribeiro: Não, que obrigam a ler, não. Que transformam numa tarefa odiosa. Eu já peguei livros... para não falar em clássicos, para não falar num [Os] Lusíadas, em coisas desse tipo, para não falar em Machado de Assis, que é escrito em língua antiga, e assim por diante. Mas um livro de um autor contemporâneo, o menino lê aquilo tão tenso, para poder responder a perguntas abstrusas. Eu sei, porque eu, por exemplo já fui adotado... livros meus foram adotados para vestibular, e eu seria incapaz de responder às perguntas a respeito de meus próprios livros...Seria incapaz. E não sou metido a ignorantaço primitivo, não. Pelo contrário, sou uma pessoa intelectualmente sofisticada, não sou nenhum analfabeto. Mas não responderia às perguntas.

Cynara Menezes: As interpretações de texto são coisas bastante subjetivas.

João Ubaldo Ribeiro: Mete medo nas crianças. As pessoas odeiam os livros. No meu tempo, já se fazia isso: você era criado para odiar os clássicos. Era criado para odiar [enfatiza]. E muita gente ainda odeia.

Alberto Quartim de Moraes: Pois é, mas você, como eu, nós lemos Monteiro Lobato na infância. Hoje não se lê mais Monteiro Lobato, lê-se Harry Potter. Por quê?

João Ubaldo Ribeiro: Ah, porque quem é que manda na gente, rapaz? Qual é... o que é que nós assistimos? O que é que nós ouvimos? Nós somos caudatários da cultura dominante, que é basicamente a cultura norte-americana e seus afluentes. Nós não somos nem afluentes, nós somos um efluente.

José Castello: Eu queria pegar esse assunto aí, é o seguinte... primeiro, essa questão da leitura, eu estava pensando aqui que uma das causas, eu acho, que afasta as pessoas da leitura, os alunos, os estudantes, é que hoje tem essa moda da rapidez. Quer dizer, você tira um capítulo do Viva o povo [brasileiro] lá, o décimo capítulo, xeroca, e o sujeito vai ler aquele capítulo em separado, né? E não lê a obra inteira. Agora, ao mesmo tempo, tem um efeito em cima dos escritores, é aí que estou querendo chegar. Eu li que você escreveu esse livro, o Benedita [Miséria e grandeza do amor de Benedita], em quatro semanas, e como encomenda. Isso é bom? Como é que você se sente nessa situação?

João Ubaldo Ribeiro: Eu me sinto muito bem, porque se eu não me sentisse capaz de me desincumbir da encomenda, não aceitaria. Mas me disseram: "Nós estamos precisando, estamos querendo fazer essa experiência. Precisamos de um texto relativamente curto. Você não teria, não poderia escrever uma história aí...?" - não pediram sobre Itaparica - "... uma história curta aí?". Eu vivo disso. No Brasil é que se inventou - no Brasil e numa certa área mais atrasada pós-romântica da intelectualidade ocidental - que esse negócio de encomenda é uma coisa secundária. Na verdade, a encomenda é a regra. Desde Aristófanes [(445 - 385 a.C), dramaturgo grego tido como o maior representante da Comédia Antiga, escreveu peças carregadas de sátiras e críticas a grandes momentos da história, como a Guerra do Peloponeso, entre Atenas e Esparta, e temas diversos, como educação, filosofia, política e sociedade], desde Ésquilo [(525-456 a.C.), poeta da Grécia Antiga considerado o criador da tragédia, cuja obra destaca o sofrimento, narra as sagas dos deuses e dos mitos, como em Prometeu Acorrentado], desde a dramaturgia... desde antes da grafia que se escreve por encomenda.

José Castello: É, mas o que me impressionou aí não foi a encomenda, foi o tempo: quatro semanas.Você é rápido para escrever?

João Ubaldo Ribeiro: Ah, sentei o rabo lá, e escrevi Não é escritor? Escrevo.

Cynara Menezes: Você vê uma volta do folhetim com essa história, por exemplo, do e-livro [livro eletrônico, para internet], você vê uma volta do folhetim à literatura?

João Ubaldo Ribeiro: Não, ainda não. Ainda acho que há muito a... a progredir, ainda, em matéria de facilidade. Acho que nossa geração, por exemplo, e aí incluo muito injustamente na minha geração, estou falando da geração que ainda foi criada com livros impressos, nas gerações que foram criadas com livros impressos, o hábito da leitura no monitor não será fácil de implantar. Mas, ao mesmo tempo, já estão se desenvolvendo aparelhos cada vez mais parecidos com o livro.

Joana Monteleone: Você já pegou num desses aparelhinhos?

João Ubaldo Ribeiro: Não, mas eu sei que eles estão melhorando.

Joana Monteleone: Eles vêm para o Brasil esse ano.

João Ubaldo Ribeiro: É. Pois é. Daqui a pouco eles vão estar flexíveis, vão estar com várias características até mais cômodas do que o livro de papel.

Paulo Markun: É, se a gente pensar no gramofone, por exemplo, e no mini-disc de CD que você ouve na rua, caminhando, evidentemente que tem um caminho a percorrer nisso aí.

Marcelo Rubens Paiva: O problema do e-book é quando acaba a bateria, não é? O cara está lendo na praia, o livro, e acaba a bateria.

Cynara Menezes: E ainda tem o fetiche do papel, também, não é?

Marcelo Rubens Paiva: Já o livro, não.

João Ubaldo Ribeiro: Tem várias coisas, tem o cheiro, não é? Tem o fetiche do livro.

Marcelo Rubens Paiva: Deixa eu fazer uma pergunta estilística. Você já se viu se auto-censurando, ou se controlando para, por exemplo, popularizar um pouco mais o seu livro... pra... preocupado um pouco com o leitor brasileiro, que é um leitor, assim, com uma cultura um pouco menor do que um leitor francês...?

João Ubaldo Ribeiro: Não, de jeito nenhum, eu...

Marcelo Rubens Paiva: Você pensa nisso, você pensa... "Não, essa palavra o leitor médio não vai entender..."?

João Ubaldo Ribeiro: Não.

Marcelo Rubens Paiva: ..."Eu tenho que tornar isso aqui um pouco mais claro..."?

João Ubaldo Ribeiro: Eu penso na adequação da formulação que eu faça à situação que eu esteja descrevendo ou narrando, e penso na propriedade das palavras que eu estou empregando. É só o que eu penso.

Moacir Amâncio: João, a propósito dessa questão estilística. Uma vez, um escritor espanhol se recusou a... ele não permitiu que os livros dele fossem adaptados para os leitores juvenis. Ele disse assim: "Olha, o fácil ninguém precisa ensinar. Essa garotada precisa ler é o Cervantes". Aqui no Brasil, um setor editorial que vai muito bem é exatamente esse, do livro juvenil, o livro facilitado. O que você acha disso? Está formando o leitor, isso aí, ou está...?

João Ubaldo Ribeiro: Eu acho que está formando leitor, sim. Acho que há um excesso de radicalismo. Eu acho que os estudantes deviam ser obrigados a ler no original, ou seja, as versões originais de vários clássicos que eu não vou enumerar aqui porque seria uma maluquice, e ia omitir ou ia exagerar na relação. Mas eu acho que devia ser definida, se é que não é, por alguma instrução ou portaria, ou equivalente, do Ministério da Educação... eu acho que certos textos deviam ser lidos no original, realmente. Mas não vejo nada de mais no texto “juvenilizado”, digamos assim. Eu mesmo li, as duas... das duas formas, eu li Swift, As viagens de Gulliver. Das duas formas, eu li um pouco de Shakespeare. Das duas formas eu li o Cervantes, e o Monteiro Lobato é o [autor de] Dom Quixote para crianças. E assim por diante, não vejo nenhum conflito. Quem gosta de ler, gosta de ler. Há todo um prazer em ler. Há todo um... um conjunto em torno do ato de ler que... que o caracteriza para o leitor. É como um fumante.

Alberto Quartim de Moraes: Mas, na sua opinião, esse prazer é uma coisa inata ou é possível incutir o prazer da leitura nas pessoas?

João Ubaldo Ribeiro: Não, eu acho possível incutir o prazer da leitura. Assim como ninguém gosta de cerveja. Se vendesse em farmácias, ninguém bebia. Eu comecei a fumar por causa de uma namorada minha. Eu detestava cigarro. Mas, na minha época, não só era elegante e másculo, como ela comentou, ela fumava e comentou com uma amiga dela que era o contrário no casal. E ela era um ano mais velha do que eu. Eu tinha 15 anos e ela tinha 16. Eu era muito inseguro, achava que os rapazes mais velhos não só tinham mais dinheiro, como mais traquejo, mais tudo do que eu, para tomar minha namorada, e ela disse assim: "Você tem um cigarro aí?" - eu me lembro do nome das duas, mas não vou citar, evidentemente. Disse a outra: "Você tem um cigarro aí?". A outra disse: "Tenho.". Ela fez "É, porque aqui é ao contrário: o homem não fuma e a mulher fuma.". Eu achei que ela estava agredindo minha... minha masculinidade, e achei que estava realmente, que eu era um efeminado...

Alberto Quartim de Moraes: E passou a fumar...

João Ubaldo Ribeiro:... e comprei uma carteira de Columbia, um maço de Columbia, ao sair da casa dela, nesse mesmo dia. E passei cerca de uns dois meses me forçando a fumar, até que me viciei. Até hoje. E tenho 59 anos, isso aconteceu quando eu tinha 15.

Alberto Quartim de Moraes: E a cerveja, demorou mais ou menos tempo?

João Ubaldo Ribeiro: Cerveja, eu nunca me "cervejeei", não. Eu me "uisquiei".

João Ubaldo Ribeiro: E não me lembro quanto tempo levou, não. Mas são coisas diferentes, não é? Álcool e tabaco, apesar de ambos serem drogas, têm uma fisiologia diferente, têm uma conduta fisiológica diferente.

Marcelo Rubens Paiva: Você já escreveu de porre, e percebeu que é melhor do que lucidamente?

João Ubaldo Ribeiro: Não, eu acho escrever de porre absolutamente impossível. Quer dizer, possível, fisicamente, é. Mas só sai porcaria. Na minha experiência. Eu já escrevi de porre pouquíssimas vezes, porque acabei desistindo logo quando vi o resultado. É... A ponto de chorar de emoção com a beleza e a grandeza literária do texto que eu estava fazendo, para no dia seguinte, descobrir que se tratava de um delírio de bêbado [Marcelo ri], uma besteirada completamente asnática.

Marcelo Rubens Paiva: Porque tem escritor que bebe para escrever, porque desinibe, o cara fica mais solto...

João Ubaldo Ribeiro: Eu conheço um sujeito que fuma maconha regularmente, para escrever, tem outros... eu não consigo escrever com música, por exemplo. Bota música perto de mim, ou eu ouço música, ou escrevo. Mas conheço gente, passando do terreno das drogas – a não ser que você queira estender o conceito de droga à música, também... é discutível...

Orlando Fassoni: Ô João, você acha que a literatura brasileira tem sido bem tratada pelo cinema nacional?

João Ubaldo Ribeiro: Você sabe que eu não acompanho muito? Eu não sei, eu vou rarissimamente a cinema e não acompanho a literatura nacional contemporânea. É... Eu não sei se tem sido bem tratada, não posso responder essa pergunta, não.

Paulo Markun: Então, vamos sintetizar: você gosta do resultado do seu trabalho posto na tela?

João Ubaldo Ribeiro: O Sargento Getúlio foi o único longa-metragem que foi feito, a partir de algo escrito por mim. Eu gosto do filme, mas costumo afirmar, sem demagogia nenhuma, sem nada de... sem charme nenhum, sem hipocrisia nenhuma, costumo afirmar, com toda a convicção, que... que é um filme de Hermano Penna, não é um filme meu. Porque filme é filme, livro é livro, não é? O sujeito pode perfeitamente ver, assistir a [O] Sargento Getúlio e nunca ler O Sargento Getúlio. E, de certa forma, pode-se dizer: "ele não perdeu nada.". Como vice-versa: ele pode ler O Sargento Getúlio e nunca viu [o filme] O Sargento Getúlio, e também não perdeu nada. Ele deixou de ver um bom filme, ou teria deixado de ler o que, a modéstia me impede de dizer que é um bom livro. Mas eu acho que é bom.

Alberto Quartim de Moraes: Se é que é possível fazer a comparação, o que é que você acha melhor, o livro ou o filme?

João Ubaldo Ribeiro: Pois é... Eu acho que não há comparação, acho que o livro é livro, filme é filme.

Cynara Menezes: E a adaptação para televisão, de O sorriso do lagarto, você gosta?

João Ubaldo Ribeiro: Não, eu acho horrível.

João Ubaldo Ribeiro: Eu achei péssima, eu achei abominável. Eu nem assisti.

Marcelo Rubens Paiva: Por que você achou péssimo?

João Ubaldo Ribeiro: Achei que não tem nada a ver com que eu escrevi, e aí não gostei. Achei bonito, visualmente bonito, assim. Não assisti toda, era muito tarde. Eu tinha preguiça, não era o que eu tinha escrito, não gostei, não assisti. O que não impede que... o que não significa que eu despreze quem gostou ou que vá brigar com quem diga "Gostei da série e detestei o livro.". Que é que eu vou fazer? Isso faz parte da minha profissão, da minha atividade.

Orlando Fassoni: Qual outro livro seu... você tem idéia de qual outro livro seu que poderia ser... receber uma boa versão para o cinema brasileiro?

João Ubaldo Ribeiro: Pô, rapaz, isso depende tanto do cineasta, do sujeito que meter na cabeça adaptar qualquer coisa... eu acho que o camarada... é... que... que a cabeça de um artista é tão louca que... evidentemente há uma certa hipérbole [figura linguística de exagero] no que eu digo, mas eu acho que haveria um maluco capaz de filmar Uma tábua de logaritmos. Quer dizer... Não acho impossível você...

Paulo Markun: E ainda ganhar algum festival.

João Ubaldo Ribeiro: Ou ganhar algum festival.

[Risos]

Paulo Markun: E ia estar cheio de crítico dizendo que é bom para caramba.

João Ubaldo Ribeiro: Pois é. "Você viu ali o logaritmo de...?".

[Risos]

Marcelo Rubens Paiva: A gente, os escritores brasileiros têm sido bastante assediados pela indústria cinematográfica, tem muito diretor agora e... sempre estão nos procurando para comprar os direitos dos livros. Você tem alguns direitos já vendidos, dos livros?

João Ubaldo Ribeiro: Tenho, tenho parcialmente vendidos, ainda não integralmente pagos, mas quase tudo pago, os direitos de Viva o povo brasileiro.

Marcelo Rubens Paiva: Para quem que você vendeu?

João Ubaldo Ribeiro: Eu não vou dizer, porque eles estão em dívida comigo [Marcelo ri], eu não quero botar o nome deles no ar injustamente, porque eles estão em dificuldades...

Marcelo Rubens Paiva: Guilherme Fontes [(1967-), ator, diretor e produtor de cinema brasileiro]...?

[Risos]

João Ubaldo Ribeiro: Não, são gente honesta. E estão lutando para pagar as parcelas que eles atrasaram para... no contrato. Eles pagaram com multa contratual, com correção e assim por diante. De forma que eles, agora, obtiveram a vitória parcial, parece que conseguiram algum progresso na obtenção de recursos e vão me pagar a última parcela, o último pedaço que resta. Agora, todo dia se fala em fazer um livro meu, todo dia eu recebo convite para almoçar. Se almoço se tornasse cinema, a produção cinematográfica através da minha gastronomia já seria, pelo menos, umas dez vezes maior do que é.

[Risos]

Paulo Markun: João, a imagem que tem o público de você, ou boa parte do público, é a de um sujeito sentado em Itaparica, ali, de bermuda e chinelo, pontificando sobre o país, daquela paradisíaca ilha. No entanto, você mora no Leblon, no Rio de Janeiro - não é isso? - e estava nos dizendo, um pouco antes do programa, que vai pouco a Itaparica. Por que é que você vai pouco e qual é a tua rotina, hoje em dia?

João Ubaldo Ribeiro: Bom, eu vou pouco, basicamente porque não tenho tempo, eu tenho que trabalhar, eu tenho muitos compromissos. Na verdade, eu já brinquei com isso em crônica, mas não chega nem a ser uma brincadeira: a coisa que o escritor de certo nome menos faz é escrever. [O que mais faço] É ficar dando entrevistas, ficar dando palestra, atendendo pedidos de uma amiga que vai posar pelada e precisa de uma frase, "Pra você não é nada, uma frase.".

[Risos]

João Ubaldo Ribeiro: O sujeito leva, às vezes, um mês para bolar uma frase, o sujeito que não é frasista. E assim por diante. E eu não tenho tempo... nem dinheiro para isso. Porque, também ao contrário da opinião popular, a maior parte dos escritores, a esmagadora maioria dos escritores, isso não só no Brasil como no mundo inteiro, tem que ter uma atividade paralela, para sobreviver, e não dorme com a Sharon Stone toda noite.

Paulo Markun: Só se for por escrito...?

João Ubaldo Ribeiro: Só se for por escrito.

Orlando Fassoni: Você não conhece nenhum escritor brasileiro rico?

João Ubaldo Ribeiro: Rico de...?

Orlando Fassoni: De grana.

João Ubaldo Ribeiro: Rico com o fruto de seu trabalho, não. A não ser que você...

[...]: Ué, tem um pelo menos, não é?

Cynara Menezes: Jorge Amado?

João Ubaldo Ribeiro: [Negando com a cabeça] O Jorge Amado não é rico, não.

[...]: Não, o Paulo Coelho.

Paulo Markun: O Paulo Coelho, certamente...

João Ubaldo Ribeiro: Ah, Paulo Coelho, esqueci.

Alberto Quartim de Moraes: A não ser que você não o considere escritor.

[Risos]

João Ubaldo Ribeiro: É, não. Paulo Coelho... Eu não sei se Paulo Coelho é rico num nível realmente alto. Ele é rico.

Paulo Markun: Está bem na foto.

João Ubaldo Ribeiro: É... Ele... é, está bem na foto.

Marcelo Rubens Paiva: Ele vendeu 28 milhões de exemplares.

João Ubaldo Ribeiro: É... Não, deve estar bem. Deve estar bem.

Alberto Quartim de Moraes: Pode ter certeza que ele está muito bem. Tanto é que ele está pouco se incomodando, hoje, com o mercado editorial brasileiro. Ele vende mesmo é lá fora, na Europa.

Cynara Menezes: É o segundo que mais vende no mundo, hoje...

Marcelo Rubens Paiva: João, conta umas fofocas para a gente, lá da Academia [Brasileira de Letras].

João Ubaldo Ribeiro: E eu sei lá da Academia...

Marcelo Rubens Paiva: Como é que foi o namoro do Paulo Coelho lá, que fez o lançamento do livro lá na Academia?

João Ubaldo Ribeiro: Eu não fui, não. Eu vou muito pouco à Academia Eu sei que ele está cogitando entrar para a Academia.

Marcelo Rubens Paiva: O que os acadêmicos têm conversado a respeito?

João Ubaldo Ribeiro: Explicar a Academia [Brasileira de Letras] é mais fácil... é menos fácil... é mais difícil... do que explicar o seu relacionamento com uma mulher de... o seu relacionamento de 20 anos com uma mulher, minuciosamente. A Academia é um mecanismo muito misterioso, delicado e complicado para ser explicado com essa simplicidade toda. Não existe uma entidade Academia, um ente de razão Academia, ou coisa assim, que funcione monoliticamente. Existem apenas certas tradições que são mantidas. Mas a Academia... eu costumo dizer que política acadêmica é mais complicada do que política florentina. E realmente é mais. É muito difícil dizer... é... fazer alguma generalização sobre a Academia.

Marcelo Rubens Paiva: Mas entre... a gente sabe aqui, nós, os mortais - vocês são os imortais - sabemos que existem duas correntes na Academia: a corrente que defende que a Academia se dedique apenas aos escritores, à literatura, e a corrente que afirma que a Academia tem que se abrir e trazer personalidades, também, que não necessariamente sejam do mundo literário...

João Ubaldo Ribeiro: Não, a Academia sempre se pautou pelo modelo francês que ela copiou. E o modelo francês não é de Academia de Letras, é de Academia, a Academia Nacional, e é de uma Academia que pertence ao governo. Foi criada por editorial. E é bastante diferente da Academia Brasileira nesse sentido, porque ela incorpora, não precisa... não tem no título "de Letras", a expressão "de Letras"... incorpora personalidades nacionais de várias áreas. De certa forma, pondo... mesmo pondo o nome "de Letras" na Academia Brasileira de Letras, a Academia Brasileira de Letras faz a mesma coisa. É costumeiro que a Academia Brasileira de Letras tenha pelo menos um membro do clero ilustre, um político ilustre, não importa que sentido você queira dar a essa palavra, quero dizer "ilustre" no sentido de conhecido, famoso, renomado, e assim por diante. Tem um militar, que agora o nome eu não tenho, mas é freqüente que tenha em toda a sua história... diplomatas, e assim por diante. O Zé Rubem Fonseca [(1925-), escritor e roteirista brasileiro, venceu o Prêmio Camões em 2003], que é muito amigo meu, me disse... me disse aos berros - disse aos berros amistosamente, porque somos amigos, não ia dizer aos berros brigando - mas me disse aos berros, na casa da filha dele, onde a gente estava almoçando, que, na convicção dele, sincera, os melhores escritores brasileiros estão na Academia. "Eles estão, estão, estão lá. Tem dois ou três que estão fora. Mas os melhores estão lá mesmo.". Não é frescura, não. E é uma opinião que eu estou reproduzindo sem ter pedido autorização dele, mas tenho certeza que ele não renegaria, e que é sincera, e que eu acho defensável.

Marcelo Rubens Paiva: Quer dizer que, então, em resumo, você concorda com o fato de a Academia abrir as portas para...

João Ubaldo Ribeiro: Concordo. Concordo. [assente com a cabeça]

Marcelo Rubens Paiva... cirurgião plástico, para empresários de comunicação...?

João Ubaldo Ribeiro: Não, você faz uma injustiça com o [Ivo] Pitanguy [(1926-), famoso cirurgião plástico brasileiro com centenas de trabalhos científicos publicados e prêmios de reconhecimento de seu trabalho, em cujo consultório passam várias celebridades da televisão e do cinema].

Marcelo Rubens Paiva: Não, não... não estou falando... não estou fazendo nenhuma injustiça. Só estamos conversando sobre o elenco da Academia.

João Ubaldo Ribeiro: Se você... se fui eu que injetei a injustiça no que você disse, eu desinjeto. Mas é comum, porque eu já sou, digamos, já que estou falando em injeção, eu já sou vacinado contra argumentação contra gente contra o Pitanguy. Ivo Pitanguy é um intelectual de extraordinário valor, um homem de uma cultura humanística respeitabilíssima, um homem que, se você for brincar, fala mais e melhor línguas estrangeiras do que o nosso renomado presidente da República [Fernando Henrique Cardoso], que é notório por essa atividade que, talvez, seja a básica dele, provavelmente. O... o.... o Ivo Pitanguy é um homem autor de papers e trabalhos científicos de notoriedade internacional, de importância incalculável. É até inventor de aparelhos cirúrgicos... Ivo Pitanguy é uma eminência nacional. Não é nenhuma pouca porcaria que está lá na Academia Brasileira de Letras. A Academia Brasileira de Letras deve honrar-se com a presença de Ivo Pitanguy...

Marcelo Rubens Paiva: Mas aí você não acha que ele deveria estar na Academia Brasileira de Ciência, por exemplo, em vez de estar...

João Ubaldo Ribeiro: Sim, mas por acaso se constituiu como Academia Brasileira de Letras, ficou o nome, e ficou assim.

Cynara Menezes: Já o presidente Fernando Henrique, o senhor considera um sociólogo medíocre...?

João Ubaldo Ribeiro: Considero.

Cynara Menezes: E que só entraria na Academia em sua vaga, ou seja, sobre o seu cadáver...?

João Ubaldo Ribeiro: Bom, isso é um pouco de exagero meu, porque eu não ia dar um tiro na cabeça se ele fosse eleito...

João Ubaldo Ribeiro: ... eu pararia de ir lá.

Orlando Fassoni: E aquela carta ao presidente?

Cynara Menezes: Por que é que o senhor acha ele um sociólogo medíocre?

João Ubaldo Ribeiro: Porque ele é um sociólogo medíocre. Eu sou do campo. Eu sou... eu fui professor de ciência política, li os livros dele, e você não tem nos livros dele nenhuma contribuição significativa para o pensamento sociológico brasileiro. É um sociólogo medíocre.

Paulo Markun: A carta aberta, que você... que o Fassoni havia mencionado, que você escreveu ao presidente, logo depois da reeleição, não foi isso? Da aprovação da reeleição... ela.. me pareceu que tem, no ponto central da sua crítica, a sensação de ter sido traído na confiança de eleitor.

João Ubaldo Ribeiro: É, de eleitor, sim, mas na minha própria confiança, não. Porque eu fui um pouco pelos outros, pela minha companhia ideológica, digamos assim, pelos meus amigos, pelo clima ideológico da nação, me pareceu adequado votar nele. Mas eu já tinha sido, já tinha participado de um grupo em Salvador, quando saiu o livro dele, O modelo político brasileiro, que se atribuiu como tarefa ao grupo a leitura e discussão desse livro. Eu tentei ler esse livro e jamais vi apanhado de lugar... um apanhado tão grotesco de lugares-comuns e bobagens e coisas repisadas e "nadas" unidos numa obra com a pretensão de ser um trabalho sociológico... é que.... se eu tivesse paciência... é que eu não ganho para isso, eu não vou fazer isso, nem ele quer saber disso, e não me deve ter em muito boa conta, também, com toda razão. Então, eu não vou reler - aliás, eu não cheguei a ler tudo -, [não vou] reler o livro, para me munir de argumentos para ficar discutindo se o livro é ruim. O livro é ruim, vá ler.

José Castello: João, eu não estou fazendo aqui uma defesa do Fernando Henrique, mas você não acha que no Brasil – talvez no mundo todo – as pessoas tendem sempre a ter uma imagem muito fechada a respeito das outras, e que talvez por isso se decepcionam tanto? Eu estava até pensando numa declaração sua que eu li, numa das entrevistas que foram cedidas, de que, na verdade, existem dois João Ubaldo e não um, quer dizer, existe o grande [enfatiza] Ubaldo, que é um sujeito livre, sem culpa... enfim, que faz o que quer, e existe o pequeno Ubaldo, você dizia nessa entrevista, pelo menos, que é um sujeito culpado, que se vigia... às vezes, a gente se decepciona com a gente mesmo, você não acha?

João Ubaldo Ribeiro: Acho que sim. Eu não estou advogando aqui nem a deposição... do presidente da República... pelo contrário. Pelo contrário: considero os termos do que escrevi naquela carta... aquilo eu não gosto muito, depois eu fui ler, não gosto muito, não acho muito bem escrita. Mas está escrita, eu assinei e continua assinada. Não quero a deposição do presidente. Me manifestei contra o “Fora FHC”, não me considero o dono da verdade em relação a ele... agora, eu me reservo o direito de pensar o que penso a respeito dele. Esse direito não foi ele que me deu.

José Castello: Claro, mas então me fala um pouco desses dois Ubaldos,

João Ubaldo Ribeiro: Ah, isso aí já é uma brincadeira psicanalítica, isso é uma besteira.

José Castello:... mas é interessante.

João Ubaldo Ribeiro: É... é quando eu... porque eu tenho fama de bonachão, alegrão, não sei o quê. Na realidade, eu tenho um temperamento melancólico. Na verdade, sou um sujeito de temperamento... é... melancólico. Não sou um sujeito alegre, assim. Mas tenho essa contradição na minha conduta, as pessoas pensam que eu sou a alma da festa, na realidade...

Paulo Markun: As pessoas te tomam pelo que você escreve...?

João Ubaldo Ribeiro: Muito. Muito, muito.

José Castello: Agora, quando você dá uma entrevista, como agora, quem é que está mais presente, o grande Ubaldo ou o pequeno? É o mais tímido ou é o...

João Ubaldo Ribeiro: Eu gostaria de crer que ambos estão aqui, equilibrados, agora, no momento aqui. Estão me deixando em paz para eu ser o Ubaldo sem adjetivos.

José Castello: Tá certo.

Cynara Menezes: Já que o senhor falou do presidente... e o senador Antônio Carlos Magalhães, seu conterrâneo, teria lugar na Academia Brasileira de Letras para ele?

João Ubaldo Ribeiro: Para mim, não. Mas ele era... ele era da Academia... ele deixou, porque a Academia de Letras da Bahia é renunciável, quer dizer, o posto na Academia de Letras da Bahia é renunciável, o que não acontece na Academia Brasileira de Letras. Ele renunciou porque se aborreceu lá com... segundo eu sei, com a eleição de um novo membro, e renunciou ao cargo.

Cynara Menezes: Você gosta dele?

João Ubaldo Ribeiro: Pessoalmente, me dou muito bem com ele. Sempre fui... ele, se estivesse aqui, ele estava dando risada. Sempre fui inimigo político dele. Inimigo talvez seja uma palavra forte, mas, no caso...

Paulo Markun: Opositor.

João Ubaldo Ribeiro: ... adversário, opositor. Adversário político dele. Escrevi muito contra ele. Tomei atitudes públicas contra ele. Nunca votei nele. Ele está cansado de saber tudo isso que eu estou dizendo aqui para, certamente, milhões de pessoas, e se ele não está vendo, ele saberá. Claro, ele sabe tudo...

João Ubaldo Ribeiro: ... o que se passa. E ele sabe que eu estou sendo perfeitamente honesto. E ele me trata muito bem, nas poucas vezes que nós nos vemos, ele me chama de “ilustre representante da esquerda democrática”.

Cynara Menezes: [Risos] E diz que você é um dos escritores favoritos dele, não é? Ao lado de Jorge Amado.

João Ubaldo Ribeiro: Eu não me lembro de ter lido isso. Mas não acho impossível que ele tenha dito isso, não. Nem acho que... ele pode ter sido até sincero, dizendo isso. É... é... é...

Cynara Menezes: Ele lê?

João Ubaldo Ribeiro: Lê. O Antônio Carlos... [sorrindo] eu não sei com que intenção você fez essa pergunta...se você teve uma intenção irônica ou não... mas você não é, não chega a ser... Antônio Carlos deitado numa rede, fazendo bolinhas de sabão.

Marcelo Rubens Paiva: E essa loucura que o baiano tem pelo ACM? Essa paixão que os baianos têm pelo ACM?

João Ubaldo Ribeiro: Não é exato que os baianos tenham paixão...

Marcelo Rubens Paiva: ...que nós, de outros estados não entendemos direito por quê...

João Ubaldo Ribeiro: Não é exato que os baianos tenham paixão pelo Antônio Carlos. Agora, discutir Antnio Carlos é transformar, e se vocês quiserem vamos transformar, este programa num debate político, porque Antonio Carlos Magalhães é, na minha convivência, e eu fui professor de ciência política, estudei ciência política, era bom professor de ciência política, é, dos que eu conheço, o político mais competente que eu já vi em minha vida. É uma coisa impressionante. Dos menores detalhes, ele é um craque, digamos assim. Ou seja, ele tem, como você falaria de um jogador de vôlei, ou mesmo de um jogador de futebol, ele domina todos os fundamentos excepcionalmente bem. Desde a memória, se você disser a ele: "Ah, eu me lembro do senhor. Nós estivemos em setembro de [19]91, nós estivemos juntos, eu fui apresentado ao senhor...". Ele vai dizer [com o dedo em riste]: "Não, isso foi em agosto de [19]82, às 3 e meia da tarde mais ou menos...a Rua Viveiro de Castro, na casa do deputado fulano, estávamos eu, você, não sei quem e não sei quem.". Se do seu bolso, você tirar do seu bolso - não que ele faça isso como um abutre, mas eu estou dando um exemplo exagerado - se você tirar do seu bolso uma nota de lavanderia e jogar assim na frente dele, na hora em que você sair, e ele achar que aquela nota de lavanderia pode servir para ele, ele pega a nota de lavanderia e guarda. E ele mostra, depois. Antônio Carlos é um homem que, quando a Bahia, quando o então brigadeiro Délio Jardim de Matos, ministro da Aeronáutica, em pleno regime forte, militar, foi à Bahia e disse umas indiretas a Antônio Carlos, Antônio Carlos foi à TV e reagiu com uma dureza que só pode ter feito o coração machista do nordestino que o via bater orgulhoso. Antônio Carlos disse a Tasso de Castro, que era um jornalista cuja verve ferina e cuja irreverência todos conhecem, pelo menos de legenda, Antônio Carlos deu uma entrevista, na minha frente, uma entrevista cordialíssima a Tasso de Castro... é... e... pegou e disse assim: "Quer ver uma coisa?". Aí abriu uns armários, e mostrou exatamente isso. Ele tem – eu não vi nenhuma nota de lavanderia, eu inventei a nota de lavanderia, aqui agora – mas vinha equivalentes a isso. Tudo, sabe tudo. E disse coisas, sabe tudo. Antônio Carlos não fuma, não bebe e dorme pouco. Ele só faz isso, ele é craque. Não é à toa que ele está na situação em que ele está... Agora, explicar por que é que ele é assim é querer explicar Pelé... eu não sei...

Alberto Quartim de Moraes: Se você me permite e perdoa, eu não acredito que a persistência nesse assunto seja o melhor serviço que a gente possa prestar à inteligência e à democracia brasileira...

João Ubaldo Ribeiro: Mas é porque foi puxado, não fui eu que puxei...

Alberto Quartim de Moraes: Portanto, eu faço um convite para a gente voltar a falar de livros.

João Ubaldo Ribeiro: Vamos embora.

Alberto Quartim de Moraes: Você é um autor famoso, requisitado. Conta para a gente, como é que é a sua relação... a pergunta é feita pelo editor, agora, eu tenho interesse. E um editor novo, recente, eu tenho cinco anos e pouco nesse métier. Quer dizer, como é que é sua relação com a editora, como é que a coisa funciona, como é que você vê isso? Você tem contrato de exclusividade com a [editora] Nova Fronteira, não?

João Ubaldo Ribeiro: Tenho. Agora, tenho. Não tinha, não, mas agora tenho. Tenho um relacionamento muito bom com a Nova Fronteira. Eu tive outras editoras, antes, e tive esse interregno proporcionado pela Casa dos budas ditosos, porque eu não tinha ainda exclusividade com a Nova Fronteira, e topei a encomenda feita para a coleção dos Pecados Capitais. Mas tenho um relacionamento extraordinariamente bom com...

Alberto Quartim de Moraes: [Interrompendo] Evidentemente, para escrever para a Objetiva, você teve que ter uma autorização especial da Nova Fronteira, não foi?

João Ubaldo Ribeiro: Não.

Alberto Quartim de Moraes: Quer dizer, o seu contrato com ela prevê a possibilidade de...

João Ubaldo Ribeiro: Não previa isso, não.

Alberto Quartim de Moraes: Ah, não? E como é que foi?

Paulo Markun: Mas mudou. Hoje você tem um contrato de exclusividade com...

João Ubaldo Ribeiro: Agora, hoje eu tenho.

Alberto Quartim de Moraes: Ah, hoje, depois da...?

João Ubaldo Ribeiro: Mudou. Depois que compraram o meu passe.

Paulo Markun: Existe no mercado brasileiro, você imagina, um circuito de lançamentos e de eventos que faça... que permita ao autor divulgar o seu trabalho no Brasil inteiro?

João Ubaldo Ribeiro: Não sei, porque eu faço isso com relutância. Cada vez mais, o escritor é obrigado não só a escrever, como, com a avalanche de informações que cai sobre o cidadão hoje em dia - e é, portanto, a necessária voracidade com que os meios de informação buscam as informações -, torna o escritor uma figura pública tão marcante que o camarada perde inteiramente a privacidade. Eu mesmo não tenho praticamente privacidade nenhuma. Não posso sair na rua sem ser comentado... se eu estou bebendo, se eu estou fumando, se estou não sei o quê, se eu saí uma vez com minha filha, que tem 30 anos hoje, ela na ocasião tinha 29, 28, eu fui jantar com ela, eu acho, sei lá... fui em algum lugar com ela, já saiu fofoca, que eu estava com um broto na rua, não sei o quê...

[Risos]

João Ubaldo Ribeiro: E eu faço isso com extraordinária relutância. Além de tudo, porque são sempre as mesmas perguntas. Eu compreendo que sejam sempre as mesmas perguntas, mas é muito difícil. Hoje mesmo eu já respondi, aqui...

Paulo Markun: [completando] ... meia dúzia delas.

João Ubaldo Ribeiro: ... meia dúzia delas. Não... não... não estou me queixando de vocês, vocês estão no seu papel. Mas que é fogo responder... por exemplo, eu... eu vou com muito prazer a reuniões de estudantes, por exemplo, como no outro dia fui a Niterói, para a Universidade Federal Fluminense. Mas quase enlouqueço com a resposta às mesmas perguntas, que chegaram a me levar a um hospital, na Espanha. Eu comecei a passar mal. Eu já tenho um problemazinho de arritmia cardíaca, comecei a passar mal com aquele negócio, aquele inferno, das mesmas perguntas. Você tem que fazer as mesmas perguntas... Mas eu acho que tem um circuito aí. Eu acho que atingi um nível, pessoalmente, eu não sei porque, essas coisas acontecem, você não pode explicar o destino das pessoas, eu atingi uma condição que me permite certas, digamos, regalias. Eu não faço mais lançamento, por exemplo. Não vou mesmo, acabou-se. "Ah, vai fazer, a gente bota uísque para você, bota uma porção de moça bonitinha para fazer cafuné, bota não sei o quê...". Pode botar o que quiser, eu não vou lá. Porque me reservo o direito de não ficar dando autógrafo. Mas ainda me submeto ao recurso...

Paulo Markun: Você passou dois períodos fora do Brasil, trabalhando. Quer dizer, um na Alemanha e um nos Estados Unidos, se não me falha a memória...

João Ubaldo Ribeiro: Trabalhando, não. Não fazendo nada.

[Risos]

Paulo Markun: Sim, mas a convite da Alemanha, por exemplo, para escrever, não era isso?

João Ubaldo Ribeiro: Não. Era para não fazer nada.

Paulo Markun: Mas que convite bom, hein?

João Ubaldo Ribeiro: É. É verdade.

Joana Monteleone: Você tem saudades da Alemanha? Do embate cultural que foi...?

João Ubaldo Ribeiro: Não, eu não tenho propriamente.... eu tenho certas saudades especializadas da Alemanha. Do lugar onde eu morei, da rua onde eu morei, que era uma rua privilegiada, uma rua perto do movimento e ao mesmo tempo uma rua tranqüila e pacata. Tinha supermercado na esquina, banco na outra esquina, farmácia na outra esquina. Era perfeito, e era na beira do Kudamm, que é a avenida principal de Berlim, da então Berlim ocidental, que já estava virando Berlim pura...

Joana Monteleone: E como foi o relacionamento com os alemães, assim...? Foi difícil? Quer dizer, é bem diferente...

João Ubaldo Ribeiro: Muito bom. Meus livros se dão bem na Alemanha. Eu me dou muito bem com a Alemanha. Não tenho problema nenhum com a Alemanha. Gosto muito da Alemanha.

Moacir Amâncio: João, por favor. Você deve ser, olha, provavelmente, o único escritor brasileiro que teve uma competência, um talento excepcional para traduzir os próprios livros para uma outra língua. Eu gostaria que você falasse sobre essa experiência, como é que ela se dá... como é que você...

João Ubaldo Ribeiro: Aqui no Brasil, é considerado duas coisas: ou mentirosa - já disseram na minha cara que era mentira minha - ou é trivial, o que é um absoluto escândalo. Em primeiro lugar eu não ia mentir, está lá escrito nas edições: “translated by the author”, e quem traduziu fui eu, que eu sei, tenho os originais, acho que tenho em algum lugar, os originais das traduções, fui eu que fiz, mesmo. E segundo, para você notar como no Brasil o grau de informação é tão baixo, uma jornalista brasileira estava havia quatro meses em Berlim, mais ou menos... telefonou uma moça, para saber – uma jornalista brasileira – para saber quanto tempo eu ia passar em Berlim. Estava previsto... eu acabei passando 15 meses, mas estava previsto 12. Estavam previstos 12. É... eu disse... é... "vou passar um ano aqui”. "Ah, quer dizer que você foi para aprender alemão e traduziu o livro Viva o povo... para o alemão?”

[Risos]

João Ubaldo Ribeiro: Eu não tive nem o que dizer. Quer dizer, para você traduzir um livro para uma língua estrangeira, de um lado para o outro, da sua para outra, ou da outra para a sua, você tem que ter uma familiaridade extraordinária com a literatura da outra língua, de ambas as línguas. Você... As pessoas pensam que você pega um dicionário, vai freqüentar a ACBEU [sigla de Aliança Cultura Brasil Estados Unidos, escola de idiomas que oferece ensino de alemão, entre outros] durante seis meses e aí traduz Faulkner [(18971962) escritor norte-americano vencedor de vários prêmios, como o Nobel de Literatura (1949), o National Book Awards (1955) e o Pulitzer (1955 e 1962), cujo estilo de escrever, em "fluxo de consciência", é considerado complexo]. Quer dizer... [leva as mãos à cabeça] E no Brasil, não é nada demais. Vai traduzindo... [faz gesto displicente com as mãos]. Eu sou dos únicos casos no mundo, para esse tipo de coisa, mas aqui se acha umca coisa trivial, bobagem ... ou então mentira, como já me disseram.

Moacir Amâncio: Você nunca pensou em escrever um livro diretamente em inglês, por exemplo?

João Ubaldo Ribeiro: Não, porque não tenho tempo e tenho minhas... minhas... minhas mumunhas de grandeza, meus delírios semi-secretos de grandeza. Eu tenho... não tenho muitas ilusões mais, sobre... sobre as gloríolas desse mundo. Estou sendo muito honesto. Eu não ambiciono mais. Eu acho que se eu fosse escrever – eu tenho 59 anos, vou fazer 60 agora em janeiro – se eu fosse escrever minha autobiografia, acho que o título seria Então é isto? Porque eu...

José Castello: Tem uma decepção aí? Nesta pergunta, evidentemente.

João Ubaldo Ribeiro: É. É isto? Quer dizer, aqueles sonhos que eu tinha, de juventude, aos 18 anos, 19 anos, é isto. Que é que eu posso ser mais? Eu posso tirar, é possível, não é impossível, que eu tire o Prêmio Camões um belo dia. Não têm a quem dar, "Ah, bota o João Ubaldo aí. Ele vive aqui em Lisboa. Bota aí o João Ubaldo." [faz gesto displicente].

[Risos] Poderia tirar, se fosse o caso, de um absurdo qualquer, dessem um Prêmio Nobel, lá, resolvesse algum maluco lá da Academia de Letras da Suécia dar um Prêmio Nobel a mim... eu estou falando em termos do que eu posso aspirar, em matéria de glória e tal, aonde eu já cheguei. Já estou na Academia Brasileira de Letras, já vivo de escrever, que era minha ambição...

Alberto Quartim de Moraes: Mas é pouco, isso? Você acha pouco? Você acha que a contribuição que você tem dado, como literato, como autor...

João Ubaldo Ribeiro: Não acho. Não acho pouco, não.

Alberto Quartim de Moraes: E por que a decepção, então?

João Ubaldo Ribeiro: Porque eu não tenho mais... eu não tenho mais, se me permitem a palavra, acho que me permitem, porque até...

Paulo Markun: Está permitido.

João Ubaldo Ribeiro:... os componentes aqui da mesa atendiam por esse apelido há algum tempo...

[Risos]

João Ubaldo Ribeiro: Eu não tenho mais tesão para certas coisas. É... [apontando para um dos entrevistadores, que não se pode identificar na imagem] Ali está ele.

[Risos]

João Ubaldo Ribeiro: É.... é... é... Eu não tenho mais tesão para certas coisas. Certas coisas... Agora, tenho a ambição sim, de fazer uma obra que pelo menos reflita a minha condição de concidadão preocupado com o meu país e, de modo genérico, com o meu semelhante. Aí já falo na condição de concidadão do mundo. Eu quero... queria botar um tijolinho, ou meio tijolinho, ou uma pedrinha portuguesa, ou um grão de areia no edifício da compreensão e do engrandecimento humano. Somente isso.

Paulo Markun: Isso aí, com certeza, estás fazendo. Nós vamos para o nosso intervalo e a gente volta já já. João Ubaldo, você deu uma entrevista, tempos atrás, para o Espaço Aberto, da Globonews, com o Pedro Bial, e que na época você estava deprimido e falou muito francamente dessa situação, e causou uma grande repercussão. Então, a pergunta inevitável: acabou a história [da depressão]?

João Ubaldo Ribeiro: Não, não acabou de todo, porque eu nunca me recuperei de todo da depressão em que entrei. Eu hoje não posso me considerar, depois de tratado... eu continuo sob acompanhamento psiquiátrico, não diuturno, mas um acompanhamento... como quem vai ao clínico geral, mais ou menos, com uma freqüência maior. Continuo com o acompanhamento psiquiátrico e continuo sujeito a crises de... de... de... condição semi-depressiva, digamos assim.

Paulo Markun: E começou na UTI? Foi isso?

João Ubaldo Ribeiro: Eu não sei se começou na UTI. Começou depois que eu saí da UTI, desde quando fui internado. É... não sei se isso... se há uma relação de causa e efeito, ninguém sabe. É possível, é possível que não. Eu sei que, na ocasião, eu, que já bebia muito, comecei a beber mais, e comecei a usar a bebida como uma espécie de tratamento para a depressão, o que é de uma extraordinária insensatez. Bebida não é tratamento para nada. E isso eu comprovei através do estado a que eu cheguei, fiquei inchado, fiquei... praticamente imprestável alguns meses. E procurei ajuda. E hoje, não se pode falar nesses termos, hoje o álcool continua sendo uma coisa que eu tenho que ter, que eu tenho que ir... com a qual eu tenho que manter um relacionamento cuidadoso. Eu não sou um abstêmio. Pelo contrário, quando viajo, geralmente até eu gosto, às vezes venho a São Paulo, porque quando viajo é pretexto para um uisquezinho na ponte aérea, ou aí no hotel, seu eu ficar no hotel ou... enfim, coisa que eu não faço todo dia, em casa. Eu não faço mais. Continuo... agora, minha trilha nesse caminho da briga com a depressão e com o álcool não é uma trilha aplicável a qualquer um. Não que eu seja excepcional, seja melhor do que os outros, diferente dos outros, sou um ser humano como outro qualquer. Mas eu acho que cada um teria uma trilha própria a seguir. Eu não posso dizer a você que ganhei a briga. Porque eu estou sujeito a dar uma escorregada a qualquer hora. Agora, eu ganhei a briga no sentido que eu sei perfeitamente que eu estou sujeito a dar uma escorregada a qualquer hora. E já obtive vitórias significativas, por exemplo, que são bobas para quem não passou pelo que eu passei, mas... Eu vou lhe contar uma história boba, mas que na realidade é uma história seríssima. Mas é boba, é uma anedota, no sentido americano da palavra, boba. Bobíssima, sem graça nenhuma. Eu fui, há uma semana ou duas, jantar com um grande amigo meu num restaurante quase-boteco, a gente chama de boteco, mas é um restaurante tradicional que tem no Leblon, nós somos freqüentadores assíduos, é perto de minha casa. Ele fez: "É bom, porque eu estava chateado com umas coisas." - ele é muito amigo meu. Eu digo ‘'quero conversar com você.". Ele fez "É bom,você aproveita e toma um uisquezinho". Eu digo: "boa idéia, vou tomar um uisquezinho, você sabe?" E aí eu chamei o garçom e disse: "‘Bota um uiscão para mim.". Aí ele botou o uísque. E eu podia beber, porque tenho podido beber. Mas eu botei assim o uísque [leva a mão perto da boca, simulando segurar o copo], dei aquela bicada e disse "não". Não foi por remorso. Não foi por precaução. Não foi por culpa.

 

Paulo Markun [Interrompendo] Não estava a fim.

João Ubaldo Ribeiro: Não foi por preocupação. Mas foi porque me deu aquela coisa assim: "A cobra quer lhe morder novamente.". Entendeu? Aí, eu botei com naturalidade o copo... [faz gesto de colocar o copo de lado].

Paulo Markun: E você continua freqüentando os amigos que vão ao bar para beber e bater papo...? Tomando guaraná diet...?

João Ubaldo Ribeiro: Eu... no sábado e no domingo, ultimamente tenho feito essa experiência, mas não sempre, mas quase sempre. Eu ultimamente vou ao boteco e, às vezes - às vezes, não; quase sempre, agora - tomo duas doses de uísque, assim, como abrideira e digo: "bota aí." - o garçom já me conhece, sabe o tamanho da dose, enfim, eu já sou da casa, sou mobília. Ele já bota aquela dosezinha pra mim. Eu tomo aquilo e passo o resto da tarde tomando guaraná, coisa que era impossível antigamente.

Alberto Quartim de Moraes: Vamos falar sobre uma outra instituição brasileira, a que, de alguma forma, estamos todos aqui ligados: a imprensa. Gostaria que você falasse sobre dois aspectos. Primeiro, a que lhe diz respeito, mais particularmente, como escritor, portanto, a crítica literária brasileira, o que você acha dela? E depois sobre a imprensa em geral, quer dizer, como é que, na sua visão, ela cumpre o seu papel social, a sua função?

João Ubaldo Ribeiro: Rapaz, essa segunda parte da pergunta, eu vou pedir licença para tirar o corpo fora, porque... não me considero competente para responder. Não saberia responder. Quanto à crítica que é feita na imprensa... se você está procurando se reportar ou fazer comparações com o tempo em que... os áureos tempos da crítica de rodapé, de Álvaro Lins [(1912-1975), professor, jornalista, ensaísta, diplomata e crítico literário brasileiro cujas críticas não eram pautadas por regras, caracterizando a chamada "crítica de rodapé". Enfrentou conflitos com Afrânio Coutinho quando da criação da Faculdade de Letras no Brasil], do próprio Afrânio Coutinho [(1911-2000), professor, crítico literário e ensaista brasileiro, criou a Faculdade de Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1965, que recentemente morreu e é um homem a quem as letras brasileiras devem muito, como você sabe, eu hoje acho que o nível caiu muito. Hoje, acho que as revistas e jornais costumam pegar um jovem inexperiente, que não conhece os fundamentos, voltei a usar a palavra esportiva - quando digo que não conhece os fundamentos, é que ele não tem referências, ele não leu os clássicos, ele leu alguns livros que estão na moda, não necessariamente ruins, que são livros da época, sei lá, não me ocorre citar, não me ocorre um nome, assim, emblemático para citar, mas dois ou três... mas nunca leu [os clássicos mais importantes, como] Homero, nunca leu Virgílio, nunca leu Camões, nunca leu um clássico grego, nunca leu um Tucídides, nunca leu realmente um Balzac, nunca leu um Proust, nunca leu um Dostoiévski, nunca leu um Tolstói, nunca leu um Swift, ele não tem condição de avaliar. Uma das coisas mais embaraçosas que me aconteceram nessa área foi quando... existe um capítulo no Viva o povo brasileiro que, se não me engano, coincide em número com a rapsódia 14 da Ilíada, que é quando os deuses participam mais efetivamente do combate entre os homens - porque, como você sabe, na Ilíada, os deuses participavam da briga, tomavam partido e se juntavam, e lutavam junto a seus protegidos. Eu apenas transferi aquilo para os orixás. Havia um regimento de Itaparica na guerra, como de fato houve, na Guerra do Paraguai, e eu pus os orixás lutando ao lado de seus filhos, numa evidente paródia, no bom sentido da palavra, ou no sentido técnico da palavra, numa óbvia paródia para Homero, de Homero. E aquilo é propriedade de humanidade, aquilo que eu fiz ali é uma coisa... e aí eu, aqui em São Paulo, aconteceu aqui em São Paulo, por coincidência, veio uma pessoa, que eu tinha em melhor conta, até... me elogiar pelo estilo que eu tinha criado para gravar, para escrever aquela cena: "A maneira como você contou aquilo!". Eu fiquei assim... pensei que era brincadeira. Eu lhe disse: "‘rapaz, [em tom indignado] mas aquilo é Homero! Eu chupei Homero, botei Homero lá, aquilo é Homero! É uma homenagem a Homero... Ele [mudando o tom de voz, como se fosse seu interlocutor]: "Que nada! Aquilo você fez, não sei o quê....". Quer dizer, então, pega um livro meu qualquer, pode ser ruim, mas bota na mão de um menino desses, que não tem realmente condição de fazer resenha. É muito difícil você encontrar um resenhista de nível no Brasil. Além de tudo, a imprensa não paga. Você sabe que intelectual precisa, como todo mundo sabe, comer. É muito difícil você se expor, não só a seus pares, outros homens de letras, como ao público em geral, com a possibilidade de vir a fazer um inimigo, no caso de ele não gostar daquilo que foi resenhado, ou do resenhado não gostar do que eu escrevo, depende do temperamento dele... tem gente que sai até para dar tiro. Tem muitos que ouvem e lêem calados, não gostam, outros até apreciam, enfim, isso depende da pessoa. Mas... o sujeito não ganha nada. Para se aporrinhar? E aí isso está indo por água abaixo, me parece, de modo geral.

Moacir Amâncio: Mas por que é que acontece? Por que você acha que acontece isso? Se é que realmente acontece...

João Ubaldo Ribeiro: Eu não sei, eu não sei. Simplesmente eu acho que nós estamos vivendo numa cultura...

Moacir Amâncio: De banalização? O que é isso?

João Ubaldo Ribeiro: Não, nós estamos vivendo numa cultura muito baseada no audiovisual, mesmo, não é não? Quer dizer, os jornais... parece uma coisa contraditória, mas interessaria aos jornais a criação de leitores. No entanto, você encontra em jornal muito mais, mas muitíssimo mais dedicado à televisão e à música popular do que à literatura. Na comparação, não tem nem graça. Você tem quilos de jornal sobre TV e discos de música popular, de rock a música popular brasileira, a pagode, ao que seja lá e... duas folhinhas sobre literatura. Isso já é outra coisa, como ele [aponta para um dos entrevistadores] abordou ainda agora... já é um fenômeno sociológico a ser visto de uma maneira mais abrangente, que não dá para abordar aqui, em seus aspectos mais... pertinentes.

Moacir Amâncio: Você sabe que o Japão, que teve... tem uma indústria editorial poderosa, está sentindo o efeito do computador, dos jogos eletrônicos, e está apresentando uma queda de leitores, de literatura de primeira qualidade, que era fantástica.

João Ubaldo Ribeiro: Pois é. Pode ser que seja o futuro. [sorrindo] Quem sabe? Pode ser que, no futuro, eu seja um anacronismo. Eu, quer dizer, eu [mostra a si mesmo] e as pessoas como eu, ou como nós [mostrando os entrevistadores a seu redor]. Talvez.

Alberto Quartim de Moraes: Bom, não sei se você percebeu, mas de alguma forma você acabou dando uma resposta à segunda parte da pergunta que, por uma questão de modéstia, você havia declinado, não é?

João Ubaldo Ribeiro: É... é, porque eu julguei que mereceria mais capricho do que eu dei.

Alberto Quartim de Moraes: Obrigado, de qualquer forma.

José Castello: João, existe uma idéia que eu acho muito interessante... outro dia ouvi até o Saramago falando disso... de que o escritor, ao contrário dos outros homens, é um sujeito que, quanto mais dívidas tem, mais rico é. Eu queria te perguntar quais são as suas grandes dívidas literárias, quer dizer, quais são aqueles escritores com quem você dialoga dentro de você, que você volta a ler, que você, quando está escrevendo, sente a presença deles, ali por trás, de alguma forma... como referência, contra... não importa...

João Ubaldo Ribeiro: É muito difícil dizer, porque é um time tão desencontrado, e é tão variegado também, porque varia com a época que eu estou vivendo...

José Castello: Mas agora, por exemplo... nesses últimos tempos?

João Ubaldo Ribeiro: Agora eu tenho andado muito shakesperiano, muito, muito, muito. Sempre fui meio homérico, sempre fui bastante homérico. Bastante swiftiano, Bastante rabelaisiano. E bastante vieirense - gosto muito de Antônio Vieira. E... já fui um pouco shawiano , já fui um pouco um homem de Bernard Shaw. E agora estou cada vez mais lendo as mesmas coisas, sempre. Shakespeare. Eu sei de cor várias coisas de Shakespeare, não porque tenha decorado, pelo prazer de decorar ou para me exibir para uma moça qualquer numa festinha, mas...

José Castello: De tanto ler, mesmo.

João Ubaldo Ribeiro: De tanto ler.

Alberto Quartim de Moraes: Uma curiosidade: você lê Shakespeare em inglês ou em português?

João Ubaldo Ribeiro: Leio em inglês.

Alberto Quartim de Moraes: Ah, lógico.

Cynara Menezes: Como é que você tem lidado com a fama? É importante, para o escritor, ser um homem comum?

João Ubaldo Ribeiro: É, isso é... essa é uma pergunta irrespondível, porque se você me perguntar se eu queria ser obscuro, eu ia dizer a você que não, é mentira minha, seria uma irrematada hipocrisia eu dizer a você que eu não queria ser reconhecido como escritor, e que queria ser obscuro e ignorado. Não, senhora. Eu gosto muito do fato de ser um escritor notório, conhecido e respeitado. Gosto. Prefiro muitíssimo à condição de obscuro. Mas a condição de notório e de famoso, vamos dizer assim - eu fico com um pouco com pudores de usar a palavra famoso, mas é um pudor besta, eu reconheço, eu sei que eu sou famoso no Brasil, como escritor – requer, também uma acentuada dose de sacrifício. Às vezes, fica difícil.

Cynara Menezes: Dificulta, você criar, sendo conhecido?

João Ubaldo Ribeiro: Criar, não. Dificulta você existir. Porque o número de chatos que começa a encher sua vida é uma coisa inimaginável.

[Risos]

Alberto Quartim de Moraes: Qual é o tipo de chato para o escritor famoso?

João Ubaldo Ribeiro: Ah, tem todo tipo de chato. Tem o chato da conduta pública, o chato da bebida...

Paulo Markun: O autor iniciante?

João Ubaldo Ribeiro: ... o chato do cigarro, o chato... Hein?

Paulo Markun: O autor iniciante?

João Ubaldo Ribeiro: O autor iniciante até que não. Até que não muito, no meu caso.

Marcelo Rubens Paiva: Tem o chato do autógrafo, também, não é?

João Ubaldo Ribeiro: Não, o autógrafo também não me enche muito a paciência, não. Só quando eu sou assediado, [faz gesto de escrever] "Com um abraço do João Ubaldo", "Com um abraço do João Ubaldo"...

Marcelo Rubens Paiva: ... quando você está assim, assinando o cheque. Ou no banheiro, e o cara vem, e te pede o autógrafo...

João Ubaldo Ribeiro: É, é, é . Tem esse...

Cynara Menezes: Mas o escritor ainda é um famoso confortável, não é? Ele pode ir para o cinema, ele pode ir para qualquer lugar...

João Ubaldo Ribeiro: Às vezes, não. Às vezes é difícil, para mim, entrar num lugar público...

Marcelo Rubens Paiva: A sua casa em Itaparica, virou, uma época, uma espécie de um ponto turístico, não é? Isto te irritou, te atrapalhou?

João Ubaldo Ribeiro: Irritou, irritou. Faziam o diabo comigo, lá. Irritou. Acontecem as coisas mais bestas do mundo que, contadas assim, são tolas, engraçadas, e tal. Mas repetidas ad nauseam, você pode imaginar como você não... porque... do mesmo jeito que com qualquer outra pessoa, eu brigo com a mulher, eu tenho problema de dinheiro, eu vou a supermercado, eu tenho dor de cabeça, eu sou igual a qualquer um. As pessoas parecem... eu não sei como é direito... que acham que eu estou infenso a essas coisas, que isso não me afeta. Eu tenho sempre que estar de bom humor, tenho sempre que estar aberto...

Marcelo Rubens Paiva: Disponível, não é?

João Ubaldo Ribeiro: Disponível. Tenho sempre que ser o que elas querem. Já teve gente que já brigou comigo porque eu não era o que ela - isso já aconteceu em Itaparica - porque eu não era como ela pensava que eu era.

[Risos]

João Ubaldo Ribeiro: Brigou, ficou irritada.

José Castello: Você contou a história de uma senhora, me contou uma vez, que brigou contigo, logo depois da entrada na Academia [Brasileira de Letras], porque você estava com sandália de dedo, e o imortal não pode usar sandália de dedo...

João Ubaldo Ribeiro: Isso...

José Castello: É insuportável, não é?

João Ubaldo Ribeiro: Isso acontece o tempo todo. Se eu estou de sandália de dedo, sou freqüentemente parado para dizer: "Que beleza, que simplicidade!", "O imortal de sandália de dedo, e tal...". Aí, eu apareço de sapatos, como estou hoje, aqui: "Você, de sapatos, hein?"

[Risos]

João Ubaldo Ribeiro: Não tem jeito. Não tem saída.

João Ubaldo Ribeiro: É chato, mesmo, mas... o que é que vai se fazer...? Eu só fico chateado quando dizem que é o preço da fama. Não é o preço da fama, é o imposto [enfatiza] da fama.

[Risos]

Paulo Markun : Mudando de assunto, você é uma pessoa que admira, que gosta de futebol, não é?

João Ubaldo Ribeiro: Gosto.

Paulo Markun: Como é que você está vendo a situação do futebol brasileiro? E, por favor, não me diga que você não tem competência para opinar, porque...

João Ubaldo Ribeiro: Não, não tenho, não, eu não acompanho mais, não. Mas eu acho que o futebol brasileiro está acabando.

Paulo Markun: A gente abre a página de futebol, parece a de polícia. Abre a página de política, parece a de polícia, abre a página de polícia, parece a página de polícia...

João Ubaldo Ribeiro: Não, eu acho que está acabando mesmo, está acabando a... Nós não somos mais o país que... eu acho isso desempenha - também eu nunca pensei organizadamente sobre o assunto -, mas eu acho que isso desempenha um papel básico. Não só o incremento dos outros esportes, como o fato de que o Brasil não tem mais terreno baldio, nossa juventude de classe média virou juventude de playground. Ou o playground do condomínio...

Paulo Markun: Ou o do shopping center...

João Ubaldo Ribeiro: ... ou o playground do vizinho. Não temos mais a bola de meia, não temos mais o campinho da pelada, o terreno baldio ali, ou a própria rua. Eu cansei de jogar em rua... eu tenho vários amigos, eu não fui criança no Rio de Janeiro, fui criança em Salvador e adolescente em Salvador. E, adolescente em Salvador, joguei bola no meio da rua, onde passava carro. Na hora que o carro passava, a gente parava um pouquinho, e continuava a jogar bola no meio da rua...

Joana Monteleone: Qual era a sua posição preferida? Você jogava de atacante, goleiro...?

João Ubaldo Ribeiro: Eu, lamentavelmente, não posso me gabar de um passado futebolístico glorioso. Eu minto bastante.

[Risos gerais]

Paulo Markun: Você jogava mal em qual posição?

João Ubaldo Ribeiro: Comecei a jogar mal na ponta-direita. Fiz umas experiências como o que naquela época se chamava center-forward, depois virou centro-avante, agora nem existe mais, agora é tudo diferente, mas no meu tempo era... no meu tempo era “dáblio-mê”, como se diz em... em nordestês, WM [esquema tático 3-4-3 ou, mais especificamente, 3-2-2-3, com três jogadores na defesa, três no ataque e quatro homens no meio campo (dois para auxiliar o ataque e dois pela defesa)]. Era fulano, fulano e fulano; fulano, fulano e fulano, e mais cinco: [com sotaque francês, acentuando a última sílaba] Garrinchá, Didi, Vavá, Pelé e Zagalô, ou qualquer coisa assim [risos]. Como dizia o sujeito na França, eu ouvia na rádio da França, aquela Copa de [19]58. Eu comecei a carreira na ponta-direita, fiz umas breves incursões como center-forward, e encerrei, pendurei as chuteiras na lateral direita depois de não conseguir marcar nem a custa de carrinhos [lances em que o jogador desarma o adversário e atinge a bola, atirando-se ao chão e deslizando com o corpo parcialmente deitado].

Paulo Markun: [Interrompendo] Foi regredindo.

João Ubaldo Ribeiro: Fui regredindo.Tinha um ponta-esquerda chamado Sibaúna, em Itaparica, que era um diabo, no começo eu pegava ele com o carrinho, porque eu era magrelo, mas tinha a canela dura e era sarrafeador. Eu não era desleal, nunca cheguei a ser desleal, não era não, não gostava. Mas era duro. Mas nem no carrinho eu pegava mais o Sibaúna, ele passava [bate uma palma] e eu [faz gesto de deslizamento] caía de pé em cima... quando eu via ele já estava lá com a bola, do lado de lá, e eu aí deixei. Mas eu gostava muito de futebol. Mas eu acho que o futebol acabou como... como aquele esporte que era o único esporte brasileiro que o menino já aprendia do berço e já saía jogando, cujo primeiro presente era uma bolinha, que se achava voleibol coisa de bicha, ou de mocinhas casadoiras jogando assim [imita o toque do vôlei com um jeito efeminado, vorando os punhos]. [...] voleibol se jogava assim, manchete [simula o gesto da manchete, com os braços esticados e os punhos próximos] era uma coisa rara, era assim [mãos para cima, em gesto de toque de bola] que se jogava. Poucos homens jogavam voleibol. Basquete era pouco jogado, muitos baixotes jogavam basquete, enfim... o esporte era futebol. Hoje não, hoje é diversificado.

Alberto Quartim de Moraes: Mas João, essa diversificação, que certamente existe, hoje o futebol já não monopoliza mais a atenção dos chamados esportes, no Brasil. Do ponto de vista cultural, na sua opinião, isso é um avanço ou é um retrocesso?

João Ubaldo Ribeiro: Olha, eu não sei. Talvez seja um avanço, não é? Depende da sua... [ri] da sua condição ideológica. Se você é um nacionalista ferrenho, ufanista e é apegado à glória futebolística brasileira, talvez seja um retrocesso, "Vamos ficar na nossa, e tal.". Mas se você é um homem que vê na amplitude de oportunidades para outros talentos, que não os futebolísticos, aflorarem, para termos um... não sei de quem eu sou fã... eu sou fã do Guga [Gustavo Kuerten (1976-), tenista brasileiro], eu não assisto aos jogos do Guga. Não assisto aos jogos dele, não assisto nenhum, porque eu seco o pobre do Guga. Então, eu não assisto, já virou superstição, para você ver como eu me preocupo. Eu sou responsável por algumas das vitórias do Guga.

[Risos] Porque eu já criei... eu trabalho em cima de uma coberturazinha que tem no meu apartamento, e a televisão fica embaixo. Aí, uma vez, eu estava sozinho, trabalhando lá em cima, e liguei a TV. Quando eu vi, estava Guga ganhando, eu digo: "não, ele agora já está ganhando, eu não vou dar..." Rapaz, pra quê? Não acertou mais uma bola. E aí eu não assisto. Mas, do meu ponto de vista é um progresso, que é que adianta? Não somos mais os reis do futebol, não existe mais isso, acabou-se. É uma fase histórica.

Cynara Menezes: Mas você, como torcedor do Vitória, está gostando que o São Caetano está ganhando, não é? [risos]

João Ubaldo Ribeiro: Estou. Estou. Estou curtindo, o São Caetano, estou. Apesar que o Vasco vem aí pela frente, não sou vascaíno, mas... Eu já não sofro mais tanto com o futebol como sofria, não. Eu não sofro mais com nada, como sofria. Nem com dor de dente.

José Castello: Agora, não é estranho que o futebol tenha dado pouca literatura, no Brasil, o país do futebol?

João Ubaldo Ribeiro: É, é. É estranho. Eu também não...

José Castello: Você já pensou, já teve um rascunho, uma idéia...?

João Ubaldo Ribeiro: Eu tenho um conto sobre futebol, que já foi publicado várias vezes, em vários lugares, um conto razoavelmente grande. Tem algumas menções ao futebol em trabalhos meus, e tal... E pretendia, agora, escrever uma noveleta sobre futebol, mas não me deixaram. Quer dizer, não me deixaram, me assediaram tanto, durante o tempo que eu estava querendo começar, que acabou gorando, o livro desandou, sabe como é? Eu perdi o embalo.

José Castello: Mas talvez agora, que o futebol está menos hegemônico, menos sagrado, se torne mais possível, inclusive, trabalhar com ele...

João Ubaldo Ribeiro: É... é bem capaz. Porque é difícil. Eu não dei uma resposta conveniente, aliás, não darei aqui, claro, trata-se de um programa de família [o Roda Viva], respeitável, mas o Juca Kfouri [(1950-), jornalista esportivo brasileiro com passagens por jornais impressos, várias emissoras de televisão e internet, com um blog próprio], que é meu amigo, me convidou para o programa esportivo dele, eu fui, nesse dia eu conheci um sujeito de quem eu era fã, de quem sou fã até hoje, mas coincidiu o fato de eu ser fã a distância com eu me ter tornado fã e amigo na presença dele. Fui com a cara dele instantaneamente, um sujeito simpaticíssimo, bem falante, alegre, enfim, uma grande figura, que é o Sócrates [(1954-), médico e célebre jogador de futebol brasileiro da equipe do Corinthians na década de 1970, com estréia na seleção brasileira em 1979. Depois de deixar os campos como jogador, passou a exercer a medicina, escrever como articulista da revista Carta Capital e atuar como comentarista do Cartão Verde, programa da TV Cultura]. E aí, o Sócrates é que me soprou a pergunta, porque... porque eu tinha lançado aquele livro... é... [A Casa] dos budas ditosos, e o Juca disse, fez essa pergunta: "Por que é que não tem futebol? Você conseguiu fazer sobre os budas ditosos...". Eu disse, "porque [para escrever sobre] futebol, você precisa ter vivência... você precisa ter...". Ele disse, “Ah, vivência daquilo que você escreveu sobre os budas ditosos, você tem, não é?”.

[Risos]

João Ubaldo Ribeiro: Aí o Sócrates me disse: “Você devia ter respondido...” Aí, o Sócrates me disse o que eu devia ter dito com as palavras que eu devia ter dito: “Fazer isso, assim assim e assim, qualquer um faz, agora, jogar bola não.". E é verdade.

[Risos]

Paulo Markun: João Ubaldo, nosso tempo está acabando, mas eu queria colocar uma última pergunta. Qual é o próximo... também é uma pergunta inevitável, com certeza, em todas as entrevistas que você vai ouvir, mas... são os chamados ossos do ofício.

Alberto Quartim de Moraes: Nós combinamos que o Markun faria todas as perguntas inevitáveis.

Paulo Markun: Pois é. Deixou comigo, pois afinal eu vou estar aqui na próxima semana. Qual é o próximo projeto?

João Ubaldo Ribeiro: Eu não sei ainda, não. Eu sei que é um romance. Mas eu não sei ainda, não. Honestamente. Porque eu não sou... eu sou um escritor muito espontâneo. Eu passo um tempo enorme incubando um livro, eu não sei nem avaliar que tempo é esse, porque...

Paulo Markun: E essa incubação nasce em torno de uma idéia...

João Ubaldo Ribeiro: É, eu tenho uma idéia na cabeça, assim. Eu não sei de onde é que aparece, não. Mas começa aquele negócio, eu começo a conversar com minha mulher sobre o negócio que eu vou escrever, converso com amigos, converso com outras pessoas, e um belo dia eu sento, aí faço o título, a epígrafe, a dedicatória, e pau! Sai o livro. E, às vezes, é inteiramente diferente do que eu pensava, do que eu ia fazer. Geralmente, é completamente diferente.

Paulo Markun: João Ubaldo, muito obrigado pela tua entrevista.

João Ubaldo Ribeiro: Muito obrigado a vocês pela simpatia e pelo cavalheirismo com que me trataram.

Paulo Markun: O que é isso... Obrigado aos nossos entrevistadores e a você que está em casa. Nós voltamos na próxima segunda, sempre às 10 e meia da noite. Uma ótima semana, e até lá.

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